Guerra às drogas liderada pelos EUA leva narcotráfico
ao Norte e Nordeste do Brasil, diz analista
Em entrevista ao
podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialista afirma que a política de
enfrentamento militarizado às drogas liderada pelos EUA, além de violar a
soberania de países latino-americanos, leva ao deslocamento do narcotráfico,
efeito que está ocorrendo agora no Brasil.
No final de julho,
correu os noticiários a informação de que Joaquín Guzmán López, filho do barão
da droga mexicano Joaquín "El Chapo" Guzmán sequestrou Ismael
"El Mayo" Zambada, chefe de uma facção rival, e levou para os Estados
Unidos, onde se entregou para agentes da DEA (sigla em inglês para Drug
Enforcement Administration), o Departamento dos Estados Unidos de Antidrogas.
A notícia gerou
polêmica por não deixar claro se a negociação para entrega feita entre López e
a DEA foi feita sem envolvimento do governo do México, o que poderia configurar
um desrespeito à soberania do país.
Em entrevista ao
podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, Thiago Rodrigues, escritor e professor de
relações internacionais do Instituto de Estudos Estratégicos (Inest) da
Universidade Federal Fluminense (UFF), que acaba de lançar o livro "Drogas
e o capitalismo: uma crítica marxista", explica que, se confirmada a
informação de violação de soberania, "não seria uma novidade, porque os
Estados Unidos fazem isso rotineiramente".
"Houve algumas
vezes, inclusive, muito explícitas, como muitos anos atrás, em 1989, quando o
então presidente do Panamá, Manuel Noriega, foi condenado nos Estados Unidos à
revelia. Ele não estava presente no julgamento, ele foi condenado por narcotráfico
e soldados americanos capturaram ele na cidade do Panamá e o transportaram para
os Estados Unidos sem nenhum tipo de acordo de extradição, ou seja, do ponto de
vista do direito internacional foi completamente irregular e ilegal",
afirma.
Ele acrescenta que,
"desde o século XIX, sempre a questão da soberania mexicana foi testada,
burlada e violada pelos Estados Unidos", e que no caso de López tudo
indica que "houve alguma negociata", embora seja necessária mais
investigação.
"Se realmente
aconteceu isso, apesar de soar como um absurdo, não seria algo sem
antecedentes, algo não anunciado. Seria algo plenamente possível diante da
tradição dos Estados Unidos lidando com o México e com os países da América
Latina em geral."
Rodrigues enfatiza que
essa política é adotada pelos EUA desde a virada dos anos 60 para os anos 70,
quando o país enfrentava um salto no consumo de drogas legais e ilegais e o
governo do então presidente Richard Nixon declarou guerra às drogas ilegais.
"Foi uma
declaração de guerra, usando essa terminologia militar, belicosa, para
justificar o combate aos produtores e aos traficantes de drogas, principalmente
localizados nos países da América Latina e do Caribe."
Ele enfatiza que a
partir de então os EUA implementam uma política seguida tanto pelo Partido
Republicano quanto pelo Democrata, financiando forças militares da América
Latina e Caribe para que se envolvam no combate ao narcotráfico.
Paralelamente ao
financiamento, ele afirma que começa uma "chantagem econômica", com
Washington ameaçando cortar financiamento e empréstimos de países que não se
engajarem na guerra ao narcotráfico.
"Mas, ao mesmo
tempo, essas políticas têm servido de apoio para vários governos da América
Latina e do Caribe, para também fazer um populismo punitivista interno em seus
próprios países, e tentar se fortalecer em algumas situações específicas de crise,
lançando mão também desse discurso antidrogas", explica Rodrigues.
Rodrigues afirma que
"a fórmula de enfrentamento do narcotráfico pela via militarizada sempre é
um fracasso", porque resulta no fortalecimento do narcotráfico como forma
de responder ao aumento da repressão ou no deslocamento, como ocorreu no caso
Colômbia-México.
"O narcotráfico,
como uma grande indústria ilegal na América Latina, surge nos anos 70 para os
anos 80 e tem como centro funcional [...] a Colômbia. [...] Os Estados Unidos
miram especificamente na Colômbia, há uma série de iniciativas, a mais famosa
delas é o Plano Colômbia, que começa [...] em 2001, 2002. O que acontece? O
narcotráfico na Colômbia não acaba, [...] os grupos do México, que eram antes
empregados dos colombianos, [...] assumem a posição que o mercado deixou aberto
para eles, [...] são promovidos de meros contrabandistas para narcotraficantes
de primeira grandeza, que continuam traficando a cocaína da Colômbia, porque a
Colômbia continua sendo a maior produtora de cocaína do mundo até hoje."
Ele avalia que não
existe uma força militar capaz de dar conta do narcotráfico, mesmo com os
planos de ajuda dos EUA, "porque o narcotráfico é um negócio que se
especula que vai entre 800 bilhões e um trilhão e meio de dólares por ano, no
mundo inteiro".
"E uma parte
substancial desses recursos, mais da metade, circula pela América Latina. O que
acontece é uma depuração dos grupos. Grupos menores são eliminados, ou pelo
Estado, ou pelos grupos mais fortes do narcotráfico, e o que sobra, na verdade,
são organismos mais poderosos do que antes do ataque."
Segundo Rodrigues,
esse deslocamento do narcotráfico agora está mirando o Norte e Nordeste do
Brasil. Isso porque a via amazônica de escoamento da cocaína existe desde os
anos 80, mas era considerada uma rota mais difícil que o Caribe. Agora,
conforme "o Caribe e a América Central ficam mais congestionados nos
planos de repressão, a Amazônia brasileira passou a ser mais interessante
economicamente para os grupos narcotraficantes, o que atrai também os grandes
grupos brasileiros".
"Não é à toa que
a gente tem registrado nos últimos anos uma disputa muito violenta da projeção
do Comando Vermelho e do PCC em direção ao Norte e Nordeste do Brasil,
justamente porque eles são intermediadores desse processo de exportar a cocaína
brasileira, a colombiana ou peruana em direção à Europa", afirma.
O especialista afirma
ainda que a política belicista não é a única maneira de violação à soberania
praticada pelos EUA no contexto da guerra às drogas.
"Esses agentes da
DEA muitas vezes vão aos países da América Latina, do Caribe com outras
credenciais, eles não vão com credenciais da DEA, eles entram com passaporte
diplomático, eles vêm disfarçados de outras coisas, de emissários econômicos.
Isso já é uma violação de soberania na prática, porque ele não entra
apresentando-se abertamente como um agente federal dos Estados Unidos",
destaca.
Ele afirma que a DEA
tem jurisdição sobre o território dos EUA, logo um agente do departamento não
poderia fazer uma investigação muito menos negociar uma prisão fora de seu
país, sem autorização do governo do país em questão. Porém, ele afirma que é
isso que acontece nos últimos 45, 50 anos.
"Os Estados
Unidos já agem como xerife na questão do combate ao narcotráfico há muito
tempo. Essa ação às vezes tem a aprovação, a conivência ou a cooperação
explícita dos países, mas muitas vezes não. E isso faz parte da prática
diplomática militar dos Estados Unidos para com a América Latina e o Caribe e
não parece que vai deixar de fazer. E volto a dizer, independente do governo,
pode ser um governo republicano, um governo democrata, a relação com a América
Latina é sempre mais ou menos no mesmo tom."
Ele sublinha que a
política de repressão americana retira dos EUA a responsabilidade de reprimir o
consumo de drogas interno e coloca a culpa fora do país, na América Latina. Ele
afirma que esse discurso "é fácil de ser utilizado, porque há um grande
preconceito em parte da sociedade estadunidense contra nós,
latino-americanos".
"Há um grande
preconceito achando que todos nós somos bandoleiros ou criminosos organizados,
que a nossa região é uma região de malfeitores. Quando um político qualquer,
democrata ou republicano, diz que a culpa é do negro ou do indígena latino-americano,
isso daí não precisa de muita explicação, porque as pessoas meio que já têm
esse preconceito montado na cabeça nos EUA. E é um discurso que é facilmente
deglutido pelo eleitorado americano. É triste, porque é mentira, e motiva apoio
a políticas que são muito violentas, e, além de tudo, ineficientes",
afirma Rodrigues.
Fonte: Sputnik Brasil
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