Em MG, os Maxakali estão convocando os
espíritos para recuperar a Mata Atlântica
Em vez dos bois, os
indígenas. E nada mais muda na paisagem tão logo se cruza a placa que anuncia a
entrada da Terra Indígena Maxakali. O resto é capim. Nem mesmo o alto dos
morros escapou da pelagem parda que em certo momento vestiu o território
ancestral dos Tikmũ’ũn e a ele se agarrou como a casca das feridas se adere à
pele. Toda manhã, a névoa que devagar se levanta sobre o solo morto parece
agora expressar a trágica fisionomia das mortalhas.
Quando Joviano
Maxakali me pediu para acompanhá-lo na busca de embaúbas, não pensei que
fôssemos tão longe: duas horas de estrada entre imensas touceiras de
capim-colonião para alcançar um ponto muito além dos limites norte da Terra
Indígena, onde um naco de Mata Atlântica sobreviveu ao avanço do pasto. Lá onde
as embaúbas crescem robustas e os povos-espíritos não passam fome.
Tuthi, a fibra da
embaúba, é a “fibra-mãe” dos Tikmũ’ũn, árvore encantada com cuja linha os
ancestrais teriam tecido os mais diversos objetos mágicos, entre eles o fio que
antes conectava o céu e a terra e permitia que pessoas e espíritos transitassem
entre os dois mundos. Contam os indígenas que essa linha um dia se cortou, e os
espíritos, para poder descer à terra, tiveram que se converter em animais. Os
bichos seriam, então, a forma física com que hoje os parentes mortos se
apresentam aos vivos.
Tão sagrada é a
embaúba para os Tikmũ’ũn que há um canto para cada etapa do longo processo de
transformar a fibra da entrecasca na linha com a qual as mulheres tecem bolsas,
bodoques, arcos e redes de pesca, além das máscaras que os povos-espíritos
vestem quando visitam a terra. A música, para elas, é uma das formas de ativar
o poder xamânico da árvore. A outra é a saliva: molhando a linha durante o
processo de fiação, as mulheres Tikmũ’ũn transferem seu espírito à embaúba,
conferindo-lhe inclusive capacidade de cura.
É por tudo isso que
Joviano Maxakali não medirá esforços na busca de embaúbas, onde quer que elas
ainda existam naquele que um dia foi o território Tikmũ’ũn: uma vasta área que
cobria o nordeste de Minas Gerais e o litoral sul da Bahia, hoje reduzida a 6.578
hectares praticamente desprovidos de floresta, distribuídos em quatro reservas
separadas e distantes umas das outras — uma terra indígena de 5.305 hectares e
outras três microrreservas com tamanhos entre 120 e 600 hectares.
Todas elas repletas do
pior pasto possível, que é o capim-colonião, gramínea africana das mais
agressivas, cujas raízes inviabilizam qualquer tipo de cultivo: matam o solo
para que suas folhas cresçam vigorosas, para além dos dois metros de altura.
Difícil de capinar, além de tudo.
• “Igual gado”
Todo indígena
brasileiro tem uma história de extermínio para contar sobre si mesmo, mas é
especialmente trágica a saga deste povo que nós chamamos de Maxakali, mas que
se dá o nome de Tikmũ’ũn (“nós, homens e mulheres”).
Outrora acostumados a
percorrer os vales do Mucuri, do Jequitinhonha e do Rio Doce em busca de caça,
peixes e frutos, os Tikmũ’ũn/Maxakali se veem hoje habitantes de uma paisagem
distópica, cercada por arames — em tese para manter o gado das fazendas vizinhas
do lado de fora, o que na prática não ocorre — e desprovida de mata, rio, água
e terra para plantar e perambular.
“Tihik [pessoa
Tikmũ’ũn] gosta de andar. É nossa cultura. Mas hoje nós não temos como sair
daqui. Estamos presos”, diz Isael Maxakali, pajé, artista visual, cineasta e
uma das principais lideranças de seu povo. “Esta não é uma terra de liberdade,
está toda cercada. Nós somos igual gado. Tudo preso.”
Esse território
encurralado é praticamente tudo o que restou de uma devastação sistemática,
acelerada nos últimos cem anos, desde a implantação da Estrada de Ferro
Bahia-Minas em 1911 e a consequente expansão agropecuária — ambas empenhadas em
eliminar tudo o que estivesse no caminho, fossem matas ou indígenas.
Conta-se que os
fazendeiros, na época, contrataram um “amansador de índios”, de nome Joaquim
Fagundes, encarregado de conquistar a confiança dos Maxakali e torná-los mais
“dóceis”. O homem disse ter gastado 38 contos de réis nessa empreitada e exigiu
reembolso do governo. Ao não ser restituído, vendeu as terras Tikmũ’ũn a gente
de fora e depois sumiu, deixando que os compradores e os indígenas se
entendessem entre si.
O que se seguiu foi
todo tipo de violência, de incêndios intencionais a doação de roupas
contaminadas com varíola, além de numerosos assassinatos. Segundo o censo de
1942, restavam apenas 59 Tikmũ’ũn na região, concentrados ao longo dos córregos
Umburanas e Água Boa, no Vale do Mucuri — uma fração ínfima do território
original.
Foi nessa época que o
SPI (Serviço de Proteção ao Índio, órgão antecessor da Funai) demarcou uma
pequena reserva Tikmũ’ũn, embrião da atual Terra Indígena Maxakali. Mas não sem
também tomar parte do esbulho: terras do entorno, pertencentes aos indígenas,
foram arrendadas pelo próprio SPI a posseiros, entre eles seus próprios
funcionários, para a instalação de colônias agrícolas. A estratégia, na época,
era forçar uma convivência com os não-indígenas para “integrar” os Tikmũ’ũn à
sociedade hegemônica.
Essa lógica ganhou
tintas de crueldade durante o regime militar, com a chegada à região de Manoel
Pinheiro, capitão da Polícia Militar de Minas Gerais, idealizador do
Reformatório Krenak — presídio destinado a indígenas “rebeldes”, ali submetidos
a castigos físicos — e criador da Guarda Rural Indígena, milícia que recrutava
indígenas como soldados. Em terras Maxakali, com o apoio do SPI, o capitão
Pinheiro forçou os indígenas a trabalhar em um sistema de agricultura extensiva
sob estreita vigilância, proibindo a caça e as roças tradicionais. Além disso,
se apossou de parte do território e ainda enviou centenas de jacarandás a
madeireiras.
O território Maxakali,
que antes cobria três vales, hoje está reduzido a 6.508 hectares, distribuídos
em uma Terra Indígena e quatro microrreservas.
• “Eles começam a morrer aos 20 anos”
Quando enfim a Terra
Indígena Maxakali foi declarada em 1993, com 5.305 hectares, restavam 30% de
Mata Atlântica na reserva. Desde então, mesmo dentro da TI, segundo computou o
MapBiomas, outros 700 hectares de floresta foram cortados para dar lugar ao pasto,
deixando o território com 17% de vegetação original — e sem nenhuma embaúba
nela. Considerando que os Tikmũ’ũn não criam gado, é de se supor quem foram os
responsáveis.
Mas a falta de
floresta é só um dos problemas. Os rios da TI estão há muito empesteados pelos
dejetos das fazendas vizinhas, sejam fezes, lixo ou produtos químicos. Resta
aos indígenas beber a água dos poços artesianos, e com ela os coliformes fecais
e metais pesados ali contidos: um estudo detectou níveis de ferro 295 vezes
maiores do que o permitido pelo Ministério da Saúde (quase 30.000%) nos
córregos Umburanas e Água Boa, enquanto o teor de alumínio encosta nos 25.000%.
E há 18 vezes mais do que deveria de arsênio, substância usada em pesticidas.
Não é à toa que a
mortalidade infantil dentro da TI é dez vezes maior do que nos municípios do
entorno — que possuem os menores IDHs em Minas Gerais. Uma em cada quatro
crianças Maxakali morre antes de 1 ano de idade. E as que sobrevivem mal chegam
à fase adulta. “Eles começam a morrer aos 20 anos”, diz Rosangela de Tugny,
etnomusicóloga que há duas décadas desenvolve pesquisas com o povo Tikmũ’ũn,
enquanto mostra como a pirâmide etária da população local se afina conforme
avança a idade — apenas 5% dos cerca de 2.500 Maxakali existentes passam dos 50
anos.
“É uma história de
muita violação”, diz Douglas Krenak, coordenador regional da Funai em Minas
Gerais e Espírito Santo. “A gente precisa que o Estado brasileiro, que foi
cúmplice da devastação na ditadura, repare esse passivo que foi deixado.”
Por ora, segundo
Douglas, a Funai vem se responsabilizando por ajudar no monitoramento das áreas
invadidas pelo gado, quase sempre em decorrência dos incêndios provocados pelos
fazendeiros para renovar a pastagem, que acabam destruindo as cercas que protegem
o território. “Essas cercas precisam ser constantemente renovadas, e essa não é
uma tarefa fácil porque faltam recursos, e a burocracia para esse tipo de
trabalho é gigantesca.”
Inclua-se como
agravante o aquecimento provocado pelas mudanças climáticas, que tem aumentado
a potência dos incêndios no nordeste de Minas Gerais — atualmente a região mais
quente do Brasil. Em 2023, dos 20 municípios que mais aqueceram no país, 19
estão no Vale do Jequitinhonha. Araçuaí, a 250 quilômetros da TI Maxakali,
registrou a maior temperatura da história nacional: 44,8 °C em novembro de
2023. A ausência de áreas verdes para refrescar esse calor torna tudo ainda
mais dramático para os Tikmũ’ũn.
• Um porco para os espíritos
“Antigamente tinha
mato grande. Yãmĩyxop caçava bicho no mato e trazia pra gente queixada,
caititu, veado, anta”, lembra Manoel Damásio, pajé da aldeia Nova Vila, uma das
maiores da Terra Indígena Maxakali. “Agora nós estamos precisando de bicho pra
comer.”
Yãmĩyxop é o nome dos
povos-espíritos que habitam o mundo Tikmũ’ũn e se manifestam na forma de
animais, plantas e, em contexto ritual, mediados pelos homens das aldeias. As
caçadas acontecem exatamente nessa circunstância, com a presença dos yãmĩyxop.
Quem caça são eles. Porque também os espíritos precisam comer.
Como conta Marquinhos
Maxakali, o maior talento das artes visuais da aldeia Nova Vila, ao mostrar uma
pintura sua que retrata, de um lado, uma mata fechada povoada pelos yãmĩyxop e,
do outro, um pasto por onde vagam, famintos, o gavião-espírito (Mõgmõka) e a
fibra-da-mandioca-espírito (Kotkuphi): “Acabou mata, só tem capim agora.
Yãmĩyxop tá passando fome.”
Tanto que o pajé
Manoel não teve o menor constrangimento quando me pediu que lhe comprasse um
porco — vivo, porque os yãmĩyxop precisavam caçá-lo antes de comê-lo. Na
ausência de antas e caititus, o que resta aos Maxakali é reproduzir a caçada
ritual com animais domésticos. Ou é isso, ou comprar frutas, bolachas e frangos
congelados no supermercado com o dinheiro do Bolsa-Família, um dos poucos
recursos de que os Tikmũ’ũn dispõem para alimentar a si mesmos e aos espíritos.
Foi assim que, ao
entardecer de um sábado, o porco malhado de 200 quilos que providenciei,
amarrado ao mastro cerimonial da aldeia Nova Vila, viu seu fim chegar pelas
flechas do gavião-espírito. Na sequência, o suíno seria assado no fogo sagrado
para dar de comer, por muitos dias, tanto a pessoas humanas quanto não-humanas.
Cada povo-espírito,
explica Rosangela de Tugny, tem seu gosto alimentar: “O povo-morcego (Xũnĩm)
prefere as bananas; o povo-macaco (Po’op), a melancia; o povo-papagaio
(Putuxop), o milho”. E quem os alimenta, ela diz, são sempre as mulheres: “Os
espíritos são como filhos adotivos das mulheres da aldeia. Elas cuidam como se
fosse um parente”.
São as mulheres
Tikmũ’ũn também as únicas que não falam português, o que, segundo Rosangela, é
“estratégia de sobrevivência”. Elas são o receptáculo da língua maxakali, a
única sobrevivente de um grupo de idiomas do tronco macro-jê que desapareceu
com a colonização (o patxohã, falado pelos Pataxó e da mesma família, está
sendo retomado). Os Maxakali são hoje um dos raros povos da Mata Atlântica a
falar sua língua original, graças às mulheres. “Elas são a força da aldeia”,
resume Rosangela.
• 200 horas de cantos
Um dos grandes enigmas
do povo Tikmũ’ũn é a capacidade de manter sua cultura, sua espiritualidade e
seu repertório simbólico nesse contexto de absoluta devastação do território
físico. É como se houvesse outro território, anímico, que se mantém intacto mesmo
depois de dois séculos de contato com os brancos. Mesmo sem terra, mesmo com
fome.
Conta Isael Maxakali
que houve um tempo em que, na iminência do total apagamento, os pajés Tikmũ’ũn
se reuniram e chegaram a uma conclusão: “Se a gente segurar a terra, vai acabar
nossa cultura”. Foi assim que, segundo Isael, “o povo Tikmũ’ũn largou a terra
para ãyuhuk [não indígena] e levou a cultura, a linguagem, os cantos”, e foi se
esconder nas grutas da região. “Os pajés foram muito inteligentes. É por isso
que nossa linguagem está viva.”
Viva e vacinada contra
tudo que venha do mundo branco. É certo que os Tikmũ’ũn se servem dos mais
variados objetos para compor as máscaras e vestimentas dos yãmĩyxop: cuecas,
camisetas, sacos de lixo, linhas de blusas desfiadas, tintas industriais para pintar
o rosto, tudo vale. Até o povo-lontra usa celulares para se comunicar entre si.
Mas é tudo resultado
da tremenda escassez material deste território. Porque, embora os Maxakali
adorem ouvir forró e pisadinha, os cantos pelos quais os yãmĩyxop se expressam
permanecem incorruptos, imunes ao português, fronteira ainda mais impenetrável do
que as cercas que deveriam protegê-los do gado vizinho.
E estamos falando de
um dos mais ricos e complexos repertórios da musicalidade indígena brasileira:
pelo menos 200 horas de cantos distribuídos por doze grupos de povos-espíritos,
cada um deles um universo estético em si. “São doze repertórios associados a
mitologias e imaginários muito diferentes”, diz Rosangela de Tugny, atualmente
a maior pesquisadora no país desse acervo musical-espiritual.
Assim, o conjunto de
cantos do povo-gavião abarca não somente o espírito da ave de rapina como
também todos aqueles que são suas presas: a coruja, a perereca, a jacutinga. Já
os povos-antas incluem os ruminantes de médio e grande porte, como veados, capivaras
e até vacas. E o mais intrigante é que cada um tem suas próprias palavras,
relacionadas à língua maxakali, mas não pertencentes a ela; como explica
Rosangela, “é como se fosse o embrião de doze latins”.
Para a etnomusicóloga,
é a pista de que cada conjunto de cantos sagrados talvez seja o resquício de
línguas hoje extintas, faladas por povos aparentados com os Maxakali que
viveram na região. Uma prova é que os Tikmũ’ũn são capazes de apontar a origem
geográfica de cada povo-espírito: o povo-papagaio (Putuxop), por exemplo, teria
vindo do litoral sul da Bahia — terra, aliás, dos Pataxó (note a semelhança de
palavras). “Tem essa teoria de que o repertório viria da junção de vários povos
que, para sobreviver, vieram se agrupar neste local mais montanhoso”, diz
Rosangela.
• Reflorestar com a palavra
Mais do que
remanescentes de povos desaparecidos, os cantos Tikmũ’ũn são a lembrança de uma
Mata Atlântica que também já se foi. O repertório espiritual Maxakali descreve
centenas de espécies de plantas e animais extintos na região, muitos que nem os
mais velhos das aldeias conheceram.
O conjunto de cantos
do povo-gavião, por exemplo, cita mais de cem espécies de bichos, incluindo
umas trinta de aves que há muito já não cantam no território Tikmũ’ũn. “Tem
descrições precisas desses pássaros nos cantos, mesmo sem eles nunca terem
visto”, diz Rosangela.
Um dos cantos do
gavião-espírito enumera 18 espécies de serpentes, enquanto o do
papa-mel-espírito lista 33 espécies de abelhas nativas. Conta a pesquisadora
que “eles mesmos falam que só tem duas dessas abelhas aqui. Tive que ir com
eles no laboratório de Entomologia da UFMG [Universidade Federal de Minas
Gerais] para eles identificarem essas abelhas”. Algumas, diz ela, sequer têm
nome em português.
“Esses cantos são
memórias da Mata Atlântica”, resume Rosangela. Em outras palavras, um
inventário da biodiversidade da floresta que sobreviveu na voz dos Tikmũ’ũn,
mesmo em terra morta e corpos doentes. Mas, como explica a pesquisadora,
enquanto os Maxakali cantam, os limites do humano ganham força à medida que os
povos-espíritos emprestam aos homens seu corpo sadio, sua voz, sua visão. É
como se a natureza voltasse à vida, reflorestada pela palavra, em toda sua
força.
“Para eles, cada corpo
tem uma potência, uma capacidade de fazer coisas que a gente aqui não pode.
Quando cantam, é como se estivessem experimentando a potência de um
corpo-gavião, um corpo-morcego; tudo o que eles veem e ouvem”, explica a
pesquisadora, dando como exemplo um canto em que a saracura e o marreco
empreendem uma viagem xamânica até as Plêiades. “Nosso yãmĩyxop é muito forte”,
assegura o pajé Manoel.
É por essas e outras
que os yãmĩyxop aparecem nas aldeias sempre que uma força extra se faça
necessária — o que pode acontecer a qualquer momento. Como na ocasião em que os
Tikmũ’ũn fizeram uma retomada de terra: quando os fazendeiros vieram para cima
deles, quem veio lutar foram os yãmĩyxop, vestidos com máscaras, de pedras na
mão. “Com uma pedrada, eles quebraram o vidro do carro”, diz Rosangela.
Também nas doenças os
espíritos são fundamentais, pois os cantos dos yãmĩyxop trazem ao mesmo tempo o
diagnóstico e a cura. Quando alguém está doente, o pajé pergunta “com que canto
você sonhou?”. A resposta elucida qual é o povo-espírito que está causando
aquele mal; basta entoar seus cantos para que se opere a cura.
Como explica
Rosangela, “Uma vez perguntei para um deles: ‘por que vocês não esquecem esses
cantos?’, e eles responderam: ‘se a gente esquecer, a gente perde a
possibilidade de cura das nossas doenças.”
• “Pra ficar bonito”
Mas, como já vimos,
também os yãmĩyxop precisam comer para se manter fortes. Foi por isso, para
alimentar pessoas e espíritos, que um grupo de pesquisadores, junto com o
Instituto Opaoká, idealizou o projeto Hãmhi – Terra Viva: uma iniciativa que
visa povoar o território Tikmũ’ũn com áreas de Mata Atlântica e quintais
agroflorestais — pelas mãos dos próprios indígenas.
Com verba proveniente
de multas de compensação ambiental da Vale, mediada pela Plataforma Semente e o
Caoma (Cordenação Operacional do Meio Ambiente), do Ministério Público de Minas
Gerais, o projeto Hãmhi vem formando o que chama de “agentes agroflorestais”:
trinta homens Maxakali que recebem sementes, mudas, kit de equipamentos
agrícolas e formação em agroecologia, além de uma bolsa de 650 reais mensais,
para o trabalho de reflorestamento nas matas e a criação de quintais
agroflorestais nas aldeias. Como resume o pajé Manoel Damásio, “pra mata
voltar, bicho voltar e religião voltar também. Pra ficar bonito”.
Em apenas um ano de
projeto, iniciado em junho de 2023, os agentes agroflorestais Tikmũ’ũn já
recuperaram 55 hectares de Mata Atlântica e plantaram outros 35 hectares de
quintais agroecológicos. Em ambos, inclusive na mata, o alimento é a base, como
explica Rosangela: “As áreas de reflorestamento têm cultivo também. A gente
está lidando com uma população que passa fome. Não podemos passar por cima da
necessidade de plantar comida”.
É por isso que tanto
as áreas reflorestadas quanto as roças têm as frutíferas como alicerce — que,
dependendo do objetivo, podem ser bananeiras, goiabeiras e jaqueiras ou
espécies nativas como araçá, araticum, jerivá e mamãozinho-do-mato. Onde
estiverem, árvores frutíferas fornecem sombra, temperaturas amenas, nutrientes
para o solo, controle da erosão e, é claro, alimento a pessoas, bichos e
espíritos. Neste primeiro ano de Hãhmi, os agentes já plantaram cerca de 47 mil
mudas dessas árvores.
Ao rés do chão, nas
roças agroflorestais, mandiocas, abóboras, milhos, feijões, batatas-doces e
mais meia centena de cultivos contribuem para a meta de tirar os Tikmũ’ũn da
desnutrição, garantir-lhes soberania alimentar e, como diz Rosangela, “oferecer
uma possibilidade para essa juventude que está morrendo”.
Morrendo, inclusive,
de alcoolismo, um dos mais graves problemas sociais do território Maxakali —
estimulado, aliás, pelos donos dos estabelecimentos locais, que usam a venda de
álcool como forma de extorquir os indígenas. Não é mais o caso, felizmente, de
Roberto Maxakali: “Eu bebia pinga, mas depois que comecei a trabalhar como
agente agroflorestal eu não estou bebendo muito. Porque tem trabalho pra fazer,
né?”.
As mulheres, por sua
vez, se encarregam dos viveiros do projeto: são três deles, totalizando 35 mil
mudas de espécies da Mata Atlântica e outras 37 mil de frutíferas, zeladas
pelas quinze viveiristas do Hãmhi como o “útero da floresta”, como elas chamam.
As mudas foram doadas pelo Instituto Estadual de Florestas e pelo Programa
Arboretum, e cabe às mulheres garantir que cada planta cresça o suficiente para
encontrar seu lugar na mata. Esse trabalho inclui, às vezes, capinar o próprio
saco plástico que contém as mudas, pois, como conta Rosangela, “surge capim até
dentro dos saquinhos”.
O maior desafio do
projeto Hãmhi é justamente vencer o capim-colonião, uma corrida desonesta em
que a gramínea sai na frente, dado o vigor de suas sementes. A engenheira
florestal Viviane Barazetti, coordenadora técnica do Programa Arboretum explica
que “não é só plantar muda. O capim-colonião cresce mais rápido que as
frutíferas; precisamos voltar nos quintais a cada três meses”. “Olha lá uma
área que ninguém manejou”, complementa Rosangela, apontando para um capinzal
que já supera a altura das bananeiras.
Não há melhor metáfora
para a crise de sobrevivência dos Tikmũ’ũn do que esse capim que, como o nome
já diz, traz a marca do colonizador. Mas a fome é grande e, em se tratando do
povo Maxakali, convém não se esquecer que a mais sagrada de suas árvores é justo
a embaúba, espécie dita pioneira, capaz de germinar no solo mais hostil e, com
seus nutrientes, preparar o terreno para que outras plantas ali cresçam, até
surgir uma nova floresta.
Munidos da força da
embaúba, os Tikmũ’ũn têm ainda ajuda extra dos yãmĩyxop, que participam
ativamente de todas as etapas do projeto: “No dia que nós começamos o primeiro
mutirão de plantio, os espíritos vieram primeiro e cantaram para todas as mudas
do viveiro; depois ficaram acompanhando todo o processo de plantio, como se
estivessem supervisionando”, conta Rosangela. E a colheita, diz ela, não se faz
sem que os yãmĩyxop autorizem.
O esforço tem
compensado, como explica Rogério Maxakali, morador da aldeia Água Boa: “A gente
só comia coisa de ãyuhuk [não-indígena], que não combina com a gente. Yãmĩyxop
também. Hoje a gente come bastante mandioca, batata-doce, abóbora. Não precisa
mais comprar na cidade”. Rosangela comenta que os agentes agroflorestais do
Hãmhi viraram inclusive um exemplo multiplicador, ou seja, outros Maxakali
começaram a fazer suas roças agroecológicas por conta própria nas aldeias. Em
breve, poderão vender a colheita nas cidades próximas.
Douglas Krenak, da
Funai, enxerga mais longe: “O Hãmhi tem potencial de mostrar pro Estado que é
possível reconstruir um território que o próprio Estado destruiu. Aqui pode ser
um projeto-piloto para amenizar conflitos fundiários e problemas socioambientais
no Brasil”.
• Cantar para reflorestar
Enquanto na Terra
Indígena Maxakali os agentes agroflorestais travam uma batalha contra o
capim-colonião (e tudo o que ele representa), a 200 quilômetros dali, na zona rural
de Teófilo Otoni, Isael Maxakali respira, enfim, aliviado.
Isael é pajé do que
ele denominou Aldeia-Escola-Floresta, uma reserva de 121 hectares para onde cem
famílias Tikmũ’ũn se mudaram em 2021, depois de uma longa peregrinação em busca
de uma terra.
Desde a saída da TI
Maxakali em 2004, por conta de conflitos internos, foram 17 anos habitando
diversos territórios — cinco, para ser exato — repletos de capim, sem acesso à
água, e sofrendo com estelionatários, missionários evangélicos e uma usina
hidrelétrica com risco de ruir sobre as casas. Quando enfim descobriram as
terras devolutas da Fazenda Itamunheque, quase 400 Tikmũ’ũn, liderados por
Isael e sua mulher Sueli, ocuparam-na em apenas uma noite.
O território é pequeno
e ainda por cima cercado de morros, o que amplia a sensação de aprisionamento
que Isael relatou no início. Mas é, finalmente, terra Tikmũ’ũn: em 26 de abril
de 2024, o governo federal assinou o Contrato de Cessão de Uso Gratuito, reconhecendo
o direito dos Maxakali sobre a Aldeia-Escola-Floresta.
O nome, diz Isael, é
“porque aqui todo lugar é sala de aula”. A começar pela floresta, que em três
anos cresceu sozinha sobre os morros, abraçando, como num anfiteatro, os
quintais agroflorestais do projeto Hãmhi que se espalham pelo vale. O que a
Mata Atlântica ensina, aqui, é seu assombroso poder de regeneração — e seu
poder de pacto com os espíritos.
“Aqui não tinha nada.
Só capim e carrapato”, lembra Isael. “Aí nós chegamos e começou a chover. O
vizinho do assentamento aqui do lado perguntou: ‘ô, Isael, o que você fez?
Quando não tinha vocês aqui não chovia; agora tá chovendo direto'”. O que eles
fizeram, no caso, foi cantar para o morcego-espírito, “porque ele é quem chama
a chuva”. Depois as árvores, à medida que cresciam, se encarregaram de tirar
com suas raízes a força do capim-colonião.
“A terra é que nem um
cachorro quando pega sarna: você tem que dar remédio para ele ser curado”, diz
Sueli Maxakali, esposa de Isael e uma das mais importantes lideranças femininas
do povo Tikmũ’ũn. “A terra é a mesma coisa: quando a gente vê o capim, os pelos
da terra, é a casca que tá doente.” E, como sabemos, nas terras Maxakali, não
há cura melhor que a música dos yãmĩyxop.
Parece ter dado certo:
“Tem dois anos já que ela vem reflorestando sozinha”, conta Sueli. “E tem
muito, muito passarinho cantando. Eles estão felizes porque veem a mata
voltando. Tá ouvindo?”, e ela aponta a mão para o céu. Um pio rasga o vale,
pergunto o nome, e ela diz: “a gente chama xãmtut, não sei traduzir.” Fico
sabendo depois: é um choró-boi. “É um passarinho que é mãe pra nós.”
Fonte: Mongabay
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