Sangue e lucros no Capitalismo de
Plataformas
Em 1945, o poeta
brasileiro Carlos Drummond de Andrade escreveu sobre a morte de um entregador.
Tratava-se de um leiteiro, que foi confundido com um assaltante e baleado ao
tentar deixar garrafas de madrugada. O poema Morte do leiteiro,
parte do livro A rosa do povo (de Andrade, 2012), é
inquietante pela banalidade com que o trabalhador é assassinado.
Quase oitenta anos
depois, entregadores continuam morrendo de maneira cotidiana no Brasil. O
discurso perverso que abre espaço para execuções sumárias extrajudiciais
permanece, mas agora não é mais necessário ser confundido com criminosos para
morrer. Em vez de balas, é o trânsito que mata em ocorrências constantes,
potencializadas pela velocidade. A quantidade de fatalidades disparou,
impulsionada, nas metrópoles, pelo aumento de mortes de motoqueiros. Na cidade
de São Paulo, não há na história registro de tantas mortes de motoqueiros entre
1 de janeiro a 31 de julho, conforme os dados do Infosiga, sistema de registros do
Departamento de Trânsito de São Paulo, que reúne dados desde 2015.
Tal tendência está
diretamente ligada à expansão do capitalismo de plataforma e à multiplicação de
aplicativos de entrega, bem como à maneira como eles funcionam. Mecanismos como
a gamificação, em que, como em um videogame, jovens ganham pontos e vantagens
por metas e feitos extraordinários, estimulam comportamentos de risco, descaso
com regras de trânsito e desrespeito aos limites de velocidade.
A diferença é que, nos
jogos em que se pilota uma motocicleta e não um joystick, os
prêmios e recompensas são reais e monetarizados – ou seja, acelerar pode fazer
toda a diferença para quem precisa ganhar para sustentar uma família ou
sobreviver. E sobreviver talvez nem seja a melhor palavra, porque os riscos,
claro, também são reais. Não existem outras vidas para gastar jogando ou a
possibilidade de recomeçar a partida. A morte de entregadores disparou nos
últimos anos e isso tem relação direta com o avanço de plataformas. Alerta
sobre o fenômeno foi publicado no relatório da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) do município de São Paulo sobre sinistros de trânsito
ocorridos em 2018: “Os acidentes fatais envolvendo motociclistas apresentaram
alta em 9 dos 12 meses de 2018 […] demonstrando uma tendência consistente e
alarmante. […] Estas constatações levaram à intensificação das ações de
educação e fiscalização para motociclistas […], bem como à atuação sobre
aplicativos de entrega com motocicletas que operam na cidade à margem da
legislação municipal e federal sobre motofrete. A ação específica sobre
motofretistas foi resultado do levantamento das declarações de óbito que
indicou um aumento de 9% para 14% na participação de entregadores e
motofretistas entre as mortes de motociclistas no trânsito em 2018”.
Nos anos seguintes, os
motofretistas, que é como são nomeados os motoboys nas estatísticas, seguiram
como a categoria que mais morre ano a ano na cidade. Em 2018 ainda, os 50 que
morreram fazendo entregas representavam 5,8% do total de 849 mortes no
trânsito da cidade ao longo de todo o ano. Seja pela atuação da CET ou não, o
número diminuiu em 2019, em consonância com uma redução geral de mortes no
trânsito: foram 35
motofretistas de 791 pessoas mortas no
trânsito de São Paulo naquele ano, ou seja, 4,4% do total. Em julho, o então
prefeito Bruno Covas (PSDB) chegou a anunciar um termo, firmado
com as empresas iFood e Loggi, para, em suas palavras: “que não haja mais
bonificação por número de entregas, pois estimula o desrespeito às leis de
trânsito”.
Em 2020, porém, no
mesmo ritmo que o número de entregas crescia em meio à pandemia de Covid-19,
com parte da população em isolamento, o número de mortes de entregadores voltou
a subir. Foi o ano em que morreram 57 motofretistas, ou 7% dos 809 mortos no trânsito. Em 2021, morreram 77 de 823, já 9,35% do total.
Em outras palavras, de cada dez pessoas mortas no trânsito na capital em 2021,
praticamente uma estava trabalhando com entregas. De cinco em cinco dias, um
motoboy morreu na cidade de São Paulo em 2021.
O prefeito Bruno Covas
(PSDB) faleceu em 2021 e, desde então, os relatórios que vinham sendo
publicados anualmente sem interrupção desde 2012, não são mais publicados. Uma
das medidas tomadas pela nova administração do prefeito Ricardo Nunes (MDB) foi
suspender a divulgação das análises técnicas que subsidiavam políticas públicas
e intervenções. Em um cenário em que faixas exclusivas de motos foram abertas
em toda a cidade, em um ritmo muito superior ao de expansão de faixas de ônibus
e ciclovias, não é mais possível identificar facilmente quantos, dos 246
motoqueiros mortos no trânsito nos sete primeiros meses de 2024, estavam
trabalhando com entregas. Nas novas motofaixas, que induzem o aumento do uso
deste meio de transporte e funcionam como infraestrutura física para
consolidação do modelo de entregas, pelo menos dez morreram em 2024, conforme
levantamento de Georgia Briano, pesquisadora da Escola Politécnica da USP.
·
Quem ganha com as mortes?
Uma análise sobre o
período inicial de expansão dos serviços de entrega ajuda a entender melhor
como se fixaram as bases para um novo sistema de transportes que se espalha com
velocidade no Brasil. De 2019 a 2021, o iFood, principal plataforma de pedidos
do país, passou de 20 milhões para 66 milhões de pedidos entregues por mês, de
acordo com dados (não auditáveis) divulgados pela própria empresa. Em setembro de 2024, já eram mais de 100 milhões, ainda de acordo
com a empresa.
Na cidade de São
Paulo, um dos principais mercados do iFood, virou rotina ver motoqueiros
apressados arrancarem em alta velocidade e ignorarem semáforos, levando a
mochila vermelha da marca nas costas. Também passou a ser comum, infelizmente,
vê-los estatelados no chão após colisões e atropelamentos.
O crescimento
acelerado na pandemia consolidou o iFood como a principal plataforma de
entregas de alimentos no Brasil – motivando, inclusive, questionamentos no
Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) de concorrentes como Rappi
sobre os contratos de exclusividade com restaurantes e um possível monopólio da
empresa no setor. Originalmente uma startup brasileira, a
plataforma iFood foi adquirida pela Movile, empresa controlada pela holandesa
Prosus, uma subsidiária do grupo sul-africano Naspers, que é um conglomerado de
mídia, tecnologia e internet. O negócio foi concluído em 2022, quando a Movile
adquiriu 33,3% das ações, as últimas ainda sob controle da acionista Just Eat
Holding Limited, baseada no Reino Unido. A compra foi, segundo noticiado na época, de 9,4
bilhões de reais ou 1,8 bilhão de dólares, o que tornou a iFood a startup mais
valiosa do Brasil, com valor estimado em 5,4 bilhões de dólares.
Apesar do crescimento
de receita, que foi de 991 milhões de dólares entre março de 2021 e março de
2022, a empresa anunciou prejuízo líquido de 206 milhões de dólares no período,
aumentando a pressão por resultados e as promessas de “otimizar a operação”, conforme noticiado pela
consultoria especializada em mercado financeiro Suno. Os planos são de expandir
áreas de atuação e a dominação no setor, atuando com “sede de disrupção,
tecnologia e IA”, conforme o site da empresa. Desde 2022, além de delivery,
o grupo atua como uma fintech, oferecendo serviços financeiros e de crédito.
O sistema de entregas
já funciona no limite, e não há muito espaço para acelerar ainda mais as
entregas ou aumentar a cobrança por resultados sobre os entregadores. Em termos
de ocorrências de trânsito, mesmo quando não são fatais, a situação é grave. A médica
Júlia Maria D’Andréa Greve, do Instituto de Ortopedia e Traumatologia (IOT) do
Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo – um dos maiores centros de atendimento
do tipo na América Latina – estima que em torno de 70% dos atendimentos de sua
unidade são relacionados a aplicativos de entrega. Ela alerta para a evolução
rápida do número de ocorrências e aponta que, se em 2016 menos de 20% dos
pacientes internados em todo o HC haviam se envolvido em ocorrências de
trânsito com motos, em 2022, já eram 80%, sendo boa parte jovens entregadores.
As estimativas foram
apresentadas em depoimento formal durante audiência pública da Comissão de
Saúde da Câmara Municipal de São Paulo, em 15 de setembro de 2022, conforme
registrado no relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos
Aplicativos. Na sessão, a médica ressaltou a urgência
de encarar a questão: “Com o advento dos aplicativos e com essa explosão de
pessoas que, por falta de oportunidade de emprego, começam a trabalhar nos
aplicativos, a gente regrediu. Em dez anos, de 2013 para cá, houve uma
regressão e o número de acidentes voltou a crescer, o número de incapacidades e
de mortes voltou a crescer”.
Disse ainda: “Então,
temos o avanço da tecnologia com o uso dos aplicativos para entrega […] baseado
na atividade econômica de pessoas que não estão preparadas, que não podem
executar essa tarefa, que não têm seguro de vida, que nem têm seguro-saúde, que
não têm nenhum suporte social e que, além de estarem expostas a acidentes,
estão expostas a uma condição de trabalho muito ruim, como o estresse, o
barulho, o próprio uso da mochila com diferentes tamanhos, diferentes pesos.
Isso tem uma ação direta na saúde do trabalhador. Quer dizer, não é só a
questão de segurança, mas obviamente que a segurança se impõe pela gravidade
das lesões”.
Os dados sobre
entregadores mortos e feridos no trânsito da cidade de São Paulo ajudam a fazer
projeções nacionais. Não é tão simples levantar estatísticas de todo o país, já
que uma das características do modelo das plataformas corporativas é justamente
a informalidade, o que faz com que subnotificações de acidentes de trabalho
sejam uma constante. Mesmo a partir de dados que podem estar subestimados,
contudo, é possível constatar que a tendência de alta prevista no relatório da
CET de 2018 se concretizou. Conforme tabulação do Observatório de
Segurança e Saúde no Trabalho, em dez
anos, o número de registros de acidentes de trabalho envolvendo motofretistas
no país subiu de 4.154 para 4.782, sendo 2022 justamente o ano com mais
notificações.
A entrada de
multinacionais com modelos de entrega e transporte fundamentados na
precarização do trabalho e na falta de regulamentação mínima ajuda a entender a
quantidade de ocorrências envolvendo jovens apressados para entregar
hambúrgueres ou envelopes envolvidos em colisões ou atropelamentos na cidade. A
banalização da morte de entregadores é a dimensão mais grave de um novo modo de
organização do trabalho no transporte de pessoas e mercadorias. Mas está longe
de ser a única questão preocupante no redesenho distópico da mobilidade de
pessoas e objetos nas cidades brasileiras que se forma a partir do capitalismo
de plataforma.
O modelo de operação
da iFood é parte de um fenômeno também conhecido como uberização, assim nomeado
em função da Uber, empresa mais famosa a operar no capitalismo de plataforma no
mundo que, no Brasil, concentrou sua atuação no transporte de passageiros. Em
comum, as duas empresas e demais que atuam gerenciando o trabalho de motoristas
e entregadores operam com base na falta de regras e de cuidado em relação a
direitos básicos dos trabalhadores – tudo embalado em um discurso de liberdade
e empreendedorismo que mais confunde do que ajuda a entender o que está
acontecendo.
Uma análise mais
detalhada sobre o tema está disponível no capítulo publicado pelo autor no
livro “Um horizonte de lutas para a autogestão: o trabalho organizado
por plataforma digital” e também no livro Sem Catraca: da utopia à realidade da Tarifa Zero, também escrito pelo autor e publicado pela editora Autonomia
Literária.
·
Caminhos possíveis
Se o cenário em que
vivemos cada vez mais se assemelha a uma distopia, será que dá para pensar
também em utopias? A partir de alguns exemplos concretos, cabe uma reflexão
sobre novos modelos possíveis de organização social e econômica. O primeiro
passo talvez seja a regulação das plataformas digitais. Com base em pesquisa
sobre o tema, Renan Bernardi Kalil, autor de outro texto da mesma série já
mencionado, tem defendido a criação de uma nova categoria, considerando
critérios como o da dependência para definir a relação de emprego. Também
defende a necessidade de redefinir o conceito de empregador e de estabelecer
novos tipos de contrato, ampliando os direitos assegurados.
Tudo a partir da
premissa de que é possível “assegurar a flexibilidade que o capitalismo de
plataforma demanda na contratação de trabalhadores e não admitir que esse novo
modelo seja utilizado para rebaixar as condições de trabalho”, conforme defende
o autor em seu livro A regulação do trabalho via plataformas digitais. Outra referência que vai na mesma
direção é a do trabalho nos portos. Os portuários também são trabalhadores
avulsos com rotinas variáveis, mas que contam com proteção. Há espaço para
avançar.
Além de pensar a
regulação, vale acompanhar as novas formas de organização que têm surgido em
contraposição ao capitalismo de plataforma, impulsionadas pela sociedade civil
e pelo poder público. Das primeiras, uma das referências mais interessantes no
Brasil é a da experiência das Señoritas Courier, coletivo de entregas de
bicicleta formado exclusivamente por mulheres e pessoas LGBTQIA+.
O grupo se articulou
em 2017 em São Paulo a partir da luta por melhores condições de trabalho e,
além do transporte de mercadorias, têm realizado atividades relacionadas, como
formações e cursos, e participado ativamente do debate sobre novas formas de organização
centradas nas trabalhadoras e trabalhadores, entre as quais o cooperativismo de plataforma e
a economia solidária digital.
Em maio de 2024 o grupo lançou uma nova plataforma desenvolvida em parceria com
o Núcleo de Tecnologia do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), anunciada como “uma
plataforma cooperativista, de propriedade de trabalhadoras e trabalhadores,
pensada, desenvolvida, debatida por muita gente de cá e de lá, do Brasil e de
fora do país”.
Assim como no
cooperativismo tradicional, o cooperativismo de plataforma está centrado na
auto-organização dos trabalhadores, a partir de uma proposta de cooperação e
solidariedade. A diferença está no uso de novas tecnologias e na criação de
plataformas para potencializar o alcance e os resultados. Na mobilidade, dá
para imaginar de sistemas de distribuição inovadores a maneiras de conectar
passageiros e motoristas com mais facilidade, tudo intermediado por aplicativos
que pertencem aos próprios trabalhadores, e não a multinacionais buscando
maximizar resultados – ou “otimizar a operação” conforme o discurso da iFood já
citado.
As premissas do
cooperativismo de plataforma são muito parecidas com as da economia solidária
defendidas por Paul Singer, entre outros, na qual o Brasil tem longa tradição.
É por isso que, ao contextualizar o conceito de cooperativismo de plataforma a
partir da realidade brasileira, é possível pensar em algo como uma economia
solidária 2.0 ou em economia solidária digital. E
aqui o papel das cooperativas e coletivos é chave para o desenho de novos
modelos operacionais. Neste sentido, é preciso considerar a tecnologia como um
conjunto de técnicas e processos, e não como algo relacionado a aparelhos
digitais ou a algoritmos mágicos. Quebrar o fetiche pelos aplicativos e tentar
desenvolver soluções reais a partir da análise de problemas e de realidades
locais, é um bom caminho para se pensar a partir do local.
A aproximação de
movimentos da economia solidária com organizações que lutam por tecnologias
livres é especialmente promissora para o desenvolvimento de novas ferramentas e
aplicativos. A ideia é de que o uso de softwares livres e de licenças abertas
favorece o compartilhamento e a multiplicação de soluções, criando um
ecossistema benéfico aos trabalhadores. Códigos abertos permitem adaptação
conforme contextos e necessidades locais e os aplicativos podem ser
considerados bens comuns digitais, disponíveis para outras organizações e
movimentos, em uma lógica que distribui e amplia resultados, em vez de limitar
e concentrar ganhos e avanços, como a dos monopólios.
O poder público tem
papel-chave no processo, devendo criar condições para que tal economia digital
baseada em solidariedade floresça. O uso de licenças livres deveria ser
condição para financiamento público, partindo da premissa de que o que é
produzido com recursos públicos deve ser público. No Brasil, são muitas as
referências da história de resistência antipropriedade na construção de
uma cultura livre, com
políticas públicas baseadas em licenças abertas do tipo creative
commons.
No fim das contas,
reforçar a ideia de mobilidade como direito é a chave para desmontar a distopia
aberta pela rápida expansão do capitalismo de plataforma na mobilidade no
Brasil. Não basta restringir e regular as plataformas empresariais, é preciso
também estimular soluções alicerçadas nas garantias de direitos de passageiros
e passageiras, de trabalhadores e trabalhadoras e da população. Cooperação e
solidariedade deveriam ser premissas para imaginar e criar soluções na
mobilidade.
Fonte: Por Daniel
Santini, em Outras Palavras
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