Desconhecimento do calendário,
desinformação e capacitação de profissionais são desafios para imunização de
adultos
O Brasil possui uma
ligação histórica com a vacinação. Graças ao trabalho desenvolvido por décadas,
o Programa Nacional de Imunização (PNI) se tornou um exemplo global de
estratégia nessa área e foi o responsável pela eliminação de doenças, como
poliomielite.2,3 Mas a relação entre brasileiros e imunizantes começou a ser
maculada nos últimos anos, principalmente na imunização de adultos e idosos,
por razões como falta de conhecimento do calendário vacinal – que inclui
imunização em todas as fases da vida –, hesitação vacinal, desinformação, e,
até mesmo, capacitação dos profissionais de saúde.1
Em 2021 o Brasil
atingiu a menor cobertura vacinal em um período de 20 anos, com a média
nacional em 52,1% – de 2001 a 2015, essa taxa era acima de 70%, segundo o
Observatório da Atenção Primária à Saúde da associação civil sem fins
lucrativos Umane.3
“Eu cresci ouvindo que
vacina era coisa de criança. Se eu, como médica, ouvi isso, imagina o resto da
população”, diz Rosana Richtmann, infectologista do Instituto Emílio Ribas e
membro dos Comitês de Imunização da Sociedade Brasileira de Infectologia e de
Calendários da Sociedade Brasileira de Imunização. “A hora que você informa
para o paciente adulto ou idoso que ele tem uma vacina para tomar, que ele tem
um calendário vacinal a seguir, ele se surpreende. Essa falta de informação faz
com que as pessoas achem isso.”
• Vítimas do próprio sucesso
Um dos grandes
desafios na manutenção e ampliação da cobertura vacinal é a queda da percepção
de risco, de acordo com uma pesquisa realizada pelo Fundo das Nações Unidas
para a Infância (Unicef) em cinco capitais brasileiras.4 “As vacinas são
vítimas do próprio sucesso”, aponta Richtmann. Ela explica que, se hoje temos
gerações inteiras que desconhecem doenças como poliomielite, coqueluche e
difteria, é graças ao sucesso das estratégias nacionais de vacinação.
A infectologista cita
a pandemia como exemplo: “Em 2020, as pessoas brigavam nas filas, faziam
qualquer negócio para se vacinar, para conseguir fazer uma viagem aos Estados
Unidos. A hora em que a doença deixa de ter a mesma gravidade porque todo mundo
já estava vacinado ou já teve a doença, essa percepção de risco cai e as
pessoas não querem mais saber da vacina. Elas começam a valorizar só os efeitos
adversos e esquecem os benefícios.”
Richtmann destaca que
educar a população sobre a importância de se tomar determinada vacina é
fundamental. Especialmente para idosos, manter a carteira de vacinação
atualizada é uma das
principais estratégias
para evitar complicações e sequelas a longo prazo causadas por doenças. Isso
porque ao envelhecer, ocorre um processo natural chamado imunossenescência, no
qual o sistema imunológico se torna gradativamente mais frágil e apresenta piores
respostas no geral.5
Entre esse público,
uma das principais barreiras é a própria falta de informação e conhecimento
sobre o calendário vacinal após a adolescência, por parte da população em
geral.1 No fim de junho, a Fiocruz divulgou um alerta6 para o aumento de
síndrome respiratória aguda grave (SRAG) em pelo menos dez estados do país,
“decorrente fundamentalmente dos vírus influenza A, vírus sincicial
respiratório (VSR) e rinovírus”.
• Hesitação vacinal e desinformação
Mas a baixa percepção
de risco e a falta de informação não são os únicos fatores que contribuem para
a hesitação vacinal. De acordo com a OMS, os motivos podem estar associados
também a crenças negativas baseadas em mitos, falta de confiança nos profissionais
e sistema de saúde, posicionamento dos líderes influentes, custos e barreiras
geográficas.7
Para Renato Kfouri,
pediatra infectologista e ex-presidente da SBIm, todos esses elementos colocam
em xeque a necessidade de se imunizar: “É uma conjunção de fatores. A baixa
percepção de risco, a chegada das vacinas com tecnologias genéticas na pandemia,
o oportunismo de grupos com interesses alheios à saúde. Tudo isso favorece esse
cenário de desinformação.”
O sucesso das fake
news, segundo Rosana Richtmann, se dá por uma cadeia de ações. “Primeiro, um
indivíduo se posiciona como antivacina e publica uma fake news na internet.
Esse conteúdo encontra um disseminador que, às vezes, não se preocupa em checar
a informação, mistura a informação falsa com algumas verdades e compartilha com
a sua rede, viralizando.” Nisso, como aponta a infectologista, o conteúdo chega
até um indivíduo que consome os conteúdos disponíveis nas redes sociais sem um
olhar mais crítico.
“A própria OMS
desenvolveu uma escala que mede a afinidade ou não de uma pessoa em relação às
vacinas. Então, você tem os dois extremos. Um extremo é aquela pessoa que toma
todas as vacinas e confia em todas. O outro extremo é o totalmente antivacina,
que não confia em vacina nenhuma. E ambos os extremos reúnem uma minoria da
população, porque a maioria está no meio do caminho. São aquelas pessoas que
tomam a vacina da gripe, mas não confiam em outra, que ficam na dúvida se tomam
ou não determinada vacina”, complementa.
Ela destaca, contudo,
que embora o movimento antivacina tenha se popularizado em meados da década
passada, não é o principal responsável pela não vacinação. Isso porque, apesar
de fazer barulho nas redes sociais, a parcela da população que é completamente
contra a imunização é mínima, de acordo com Richtmann.
• Formação dos profissionais de saúde
Outro ponto levantado
pelos especialistas é a formação dos profissionais de saúde, que não costumam
ter o conteúdo ao longo do aprendizado: “Um pediatra foi treinado e aprendeu na
faculdade sobre imunização. Já um cardiologista, um endocrinologista, um clínico
geral e até um geriatra, não tiveram essa formação. E agora as coisas estão
mudando, temos novas vacinas e está se percebendo a obrigação de ter isso na
formação básica dos profissionais”, avalia Rosana.
O documento
“Imunização de Adultos e Idosos – base para estudos e decisões 2019”, elaborado
pela SBIm, em 2019, traz uma pesquisa qualitativa com 11 médicos de diferentes
especialidades a respeito da postura que adotam em relação ao diálogo com os
pacientes sobre a vacinação.1 De acordo com o levantamento, infectologistas,
obstetras e reumatologistas foram os que mais apontaram a relevância das
vacinas para os seus pacientes, enquanto os demais não apontaram aspectos
impactantes em suas áreas de atuação. Já quando a pergunta foi sobre o hábito
de prescrição de vacinas, a percepção foi de que uma parcela dos profissionais
não se considera “agente de difusão do recurso preventivo”.1
O mesmo estudo
conversou também com 27 adultos e idosos, e apesar das respostas dos
profissionais, nenhum dos pacientes entrevistados – exceto ex-gestantes –
afirmou ter sido aconselhado por médicos a se vacinar. “Ao contrário, o assunto
parece abordado somente quando o próprio paciente questiona o profissional”,
diz o texto.1
Para Renato Kfouri, é
fundamental que as escolas de saúde reavaliem as grades curriculares atuais e
deem mais protagonismo para a questão da imunização ao longo da formação,
independente da especialidade:
“É preciso que as
escolas de medicina, de enfermagem, estimulem a formação dos futuros
profissionais de saúde sobre a importância da vacinação em todas as áreas.
Deveria ser natural um cardiologista ou um endocrinologista abordar o tema
vacinação na consulta. O paciente com diabetes, doenças cardiovasculares ou
outra condição crônica, são consideradas populações mais vulneráveis à diversas
doenças como, por exemplo, infecções causadas pelo VSR, e certamente se
beneficiaram dessa postura.”
• Estratégias para imunização de adultos e
idosos
Ao lado de recursos
como saneamento básico e antibióticos, as vacinas contribuíram para a queda da
mortalidade infantil e até mesmo para o aumento da expectativa de vida – o
aumento foi de 30 anos em comparação com os números anteriores ao (PNI), de
acordo com a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).10,11 Segundo o Kfouri,
a confiança sempre foi um dos principais pilares para o sucesso do PNI e, por
isso, ele aponta que um dos caminhos para reverter o quadro é fortalecer não só
a confiança na vacina, mas também na política pública que disponibiliza o
imunizante para a população.
Ambos os especialistas
também defendem que estabelecer um diálogo empático é um passo importante para
superar a hesitação vacinal. Kfouri pontua que, embora a tendência inicial do
profissional de saúde possa ser de confronto, é preciso se colocar no lugar do
paciente: “Ele não quer o mal do filho dele, ele não vacina porque é impactado
com a desinformação. Então, a contrainformação é fundamental. No dia a dia,
precisamos estar munidos com panfletos, sites, conteúdos que desconstroem essas
inverdades.”
Além de levar
informações baseadas em evidências, abrir espaço para uma escuta ativa e
compreender os motivos por trás da hesitação do paciente também é fundamental
para saber como ajudá-lo a tomar essa decisão, como orientou o guia publicado
pela Associação Médica Americana (AMA)8. “A melhor forma de abordar é fazer com
que o paciente entenda que eu estou me colocando no lugar dele, e não responder
de um lugar de superioridade e dona da ciência. Não adianta falar que essa
dúvida é absurda, porque é o braço dele e no momento ele está saudável”, afirma
Rosana Richtmann.
Ela aponta que é
preciso também valorizar e capacitar os profissionais da enfermagem, que são
peças fundamentais para as estratégias de imunização. “Não adianta o
conhecimento ficar restrito a meia dúzia de pessoas. No dia a dia, não sou eu,
médico, que estou na linha de frente vacinando”, completa.
Diante do novo cenário
demográfico do país, que vive um envelhecimento acelerado, olhar para a
imunização e construir soluções intersetoriais para preencher esse gap é um dos
caminhos para uma longevidade saudável e sustentável.1,8,9 Kfouri menciona o trabalho
da Sociedade Brasileira de Pediatria, que tem tido uma atuação muito forte no
combate à hesitação vacinal formando multiplicadores, além da própria Sociedade
Brasileira de Imunização (SBIm) e do Ministério da Saúde, que tem uma página
sobre dúvidas relacionadas à vacinação.
“Mas isso ainda é
insuficiente, porque os grupos vão fazer barulho com as notícias, divulgar
informações, mas o depoimento falso ainda é mais impactante do que informar com
a ciência. A gente ainda está aprendendo a ter uma comunicação mais efetiva sem
se desviar das ciências”, conclui.
“Junto da mudança do
estilo de vida, exames preventivos e controle das doenças crônicas, o avanço na
plataforma de vacinas tem contribuído muito para o aumento da expectativa de
vida. Plataformas de vacinas recombinantes, baseadas em adjuvantes potencializadores
de resposta, mais concentradas e visando o público mais idoso, que
tradicionalmente tem uma resposta pior
em função do
envelhecimento, é algo que já vem sendo desenvolvido”, aponta Kfouri.
Fonte: Futuro da Saúde
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