As personal trainers rejeitadas por estarem
acima do peso: 'Padrão é ser feliz'
Bianca Martins é
formada em educação física, faz uma pós-graduação na área e dá aulas como
personal trainer há mais de seis anos.
Mesmo assim, ela conta
que é constantemente atacada nas redes sociais por considerarem que ela não
passa credibilidade suficiente para fazer seu trabalho — e já houve até mesmo
alunos que a trocaram por outros instrutores pelo mesmo motivo.
Mas as críticas e
desconfiança direcionadas a Bianca não questionam seu conhecimento sobre
exercícios físicos ou apontam falhas que ela poderia ter cometido.
O comentário mais
recorrente é que ela não tem um corpo considerado “atlético” ou “padrão” para
quem é personal.
“Jamais aceitaria
conselhos de alguém que eu achei que o corpo não é o qual eu quero atingir!”,
diz um dos comentários feitos nas redes sociais de Bianca.
Ela mesma diz que não
tem problema como isso e se define como uma personal fora do padrão que ajuda
outras mulheres “a aceitarem seus corpos por meio do exercício físico”.
Bianca conta que já se
acostumou com as críticas ao seu corpo, porque isso acontece desde que ela era
criança, mas diz que hoje é diferente e incomoda mais.
“Sempre sofri
bullying. Quando eu era criança, sofria na escola, depois no relacionamento.
Então, eu sempre tive isso na minha vida”, diz Bianca à BBC News Brasil.
“Mas agora são
comentários de pessoas que nunca me viram, não me conhecem e não sabem da minha
história e da minha capacidade. Então, o que eu fico mais chateada é quando a
pessoa não sabe do meu processo e vem jogar essas ofensas.”
Mundo tem 1 bilhão de
obesos, indica estudo1 março 2024
• ‘É um erro se basear na aparência’
Casos como o de Bianca
são comuns, segundo Fabio Britto, coordenador da rede de academias Bioritmo,
porque o corpo do personal funciona como uma espécie de vitrine para o aluno.
A forma física do
instrutor acaba muitas vezes se tornando um ideal a ser buscado por quem
contrata esse tipo de profissional e que, por isso, esse critério pesa na
escolha.
Britto conta que, em
20 anos de experiência na área, já viu excelentes personal trainers serem
preteridos por outros que ele considerava menos preparados, mas que tinham “o
corpo perfeito”.
“Trabalhei com várias
pessoas que não tinham um corpo assim por questão hormonal, não por falta de
cuidado ou conhecimento. São pessoas que treinam bastante e se alimentam de
forma adequada, mas que não têm resultado (físico) por questões de saúde”, diz Britto.
Ele diz que é muito
mais importante escolher o personal pela sua formação e filosofia de trabalho e
com base em como ele lida com os alunos.
“É um erro a pessoa se
basear apenas na aparência. Tem que avaliar o conhecimento e como o instrutor
se comporta. Se ele fica usando o celular durante a aula e se presta atenção no
aluno durante os exercícios”, diz Britto.
• 'Sou obesa, mas sou saudável'
A personal trainer
carioca Cinthya Albuquerque, de 43 anos, diz que já foi preterida por “não ter
uma barriga trincada e um corpo torneado”.
“O que eu vejo na
academia são olhares. Mulheres que procuram personal e olham para mim, mas
acham que eu não vou ajudar. Eu simplesmente não ligo e abstraio”, conta
Cynthia, que é formada em educação física há 15 anos.
Ela diz que já nasceu
bem acima do peso normal para um bebê e que sempre lutou contra a balança.
Cinthya diz que se
inspira em sua própria história de uma vida lidando com a obesidade para ajudar
outras mulheres
“O público que quero
ajudar não é para shape [ter um corpo torneado]. Meu objetivo é cuidar de
mulheres, visando primeiro a saúde e depois a estética", diz a personal.
"Já fiz dieta do
ovo, fiquei dias sem comer e tive orientações erradas sobre como emagrecer. Já
pesei muito menos, mas minha saúde não estava legal. Quero ajudar pessoas que
também passaram pelo mesmo.”
Cynthia reconhece que
muita gente não pensa desta forma e se guia mais pela estética.
“As pessoas não querem
melhorar a saúde, querem o gominho da blogueira, a cinturinha da blogueira.
Isso está piorando, mas não por nossa culpa. É mais por conta do que a mídia
vende, que é o estereótipo à frente da saúde."
Ela diz que usa suas
redes sociais para servir de exemplo como alguém que, embora esteja acima do
peso, segue uma rotina de exercícios, tem uma alimentação saudável e está com
os exames em dia.
“Eu sou obesa, mas
tenho saúde, não sou hipertensa, não tenho colesterol alterado", diz ela.
"O único problema
que tenho é um nódulo em uma parte da minha cabeça que me faz produzir menos
testosterona e exige cuidados.”
• 'Não existe obesidade saudável'
Marcio Mancini,
vice-presidente do departamento de obesidade da Sociedade Brasileira de
Endocrinologia e Metabologia (SBEM), alerta, no entanto, que os exames mais
básicos podem não detectar problemas de saúde relacionados à obesidade.
“Não existe obesidade
metabolicamente saudável", diz Mancini, autor de Tratado de Obesidade
(Guanabara Koogan, 2020),
"O fato de alguns
exames estarem normais não significa que a saúde da pessoa está normal, porque
o próprio aumento da gordura leva à produção de substâncias no tecido adiposo —
chamadas de adipocinas. Muitas delas são inflamatórias e contribuem para a
aterosclerose."
A aterosclerose é uma
doença causada pelo acúmulo de gordura e cálcio nas paredes das artérias e
veias do corpo humano.
Mancini afirma que
doenças como a aterosclerose muitas vezes se desenvolvem de maneira silenciosa
justamente porque não são detectadas nos exames de rotina.
"A carga do peso
em cima das articulações causado pela obesidade também danifica a cartilagem. A
apneia do sono também não é identificada por exame de sangue, mas sim do
acúmulo de gordura no pescoço. Há aumento do risco de cânceres ligados à obesidade,
ligados à insulina alta", enumera o especialista.
O médico afirma que a
pessoa obesa está exposta a uma série de riscos, mesmo que exames apontem para
uma normalidade.
"A pessoa com
peso excessivo tem risco maior de desenvolver mais de 200 doenças, como
diabetes, hipertensão, demência, Alzheimer, gota, problemas articulares e
apneia do sono. Não é possível aceitar a obesidade como algo normal."
O médico afirma que,
desde 2013, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a associação médica
americana consideram a obesidade uma doença e não um fator de risco para o
desenvolvimento de outros problemas de saúde.
Por outro lado,
Mancini alerta que ser magro também não é necessariamente sinônimo de ser
saudável.
O médico explica que
pessoas que tem um peso dentro dos parâmetros considerados normais também podem
ter problemas de saúde.
"Normalmente,
isso está associado ao acúmulo de gordura na região abdominal", afirma
Mancini.
"São pessoas que
têm um pequeno ganho de peso e, em vez dessa gordura ser distribuída pelo
corpo, esse ganho vai para a região interna da barriga, se acumulando no
fígado, nos rins e no pericárdio [em volta do coração]."
• ‘Tudo é visto aos olhos da gordofobia’
Criadora da feira Pop
Plus, voltada para pessoas gordas, Flávia Durante, de 47 anos, diz que as
críticas a personal trainers como Bianca Martins e Cynthia Albuquerque por
estarem fora do "padrão" são um reflexo da gordofobia, o preconceito
contra quem está acima do peso.
“A sociedade toda é
gordofóbica, então, tudo vai ser visto aos olhos da gordofobia”, diz Durante.
“A gordofobia faz com
que o corpo gordo seja visto logo de cara como incapaz, preguiçoso, sujo, mole
e incompetente. Você pode ter o melhor currículo e a melhor capacidade, mas, se
você é gordo, já tá descartado até em concurso público.”
Ela considera que a
gordofobia é mais difícil de combater do que outras formas de discriminação que
são consideradas crime, como o racismo e a LGBTfobia.
Mesmo assim, defende a
empresária, pessoas consideradas acima do peso devem buscar que seus direitos
sejam respeitados quando há preconceito.
“As pessoas gordas
devem entender que elas podem, sim, praticar uma atividade física. É direito
delas. Assim como ter acesso à saúde, ao transporte e ao mercado de trabalho.
Porque uma pesquisa [do Grupo Catho] aponta que 65% dos empresários têm
restrições para contratar pessoas gordas.”
• ‘Academia é um ambiente hostil’
Bianca conta que a
maior parte das pessoas a procuram como personal trainer não apenas por estarem
descontentes com seus corpos e rotinas de exercícios, mas também para buscar
conselhos para se aceitarem como são.
Uma das principais
queixas é de que a academia é um ambiente hostil, no qual pessoas gordas são
julgadas, nem sempre com palavras, mas olhares e comportamentos de rejeição e
descrédito.
“A academia deveria
ser um ambiente acolhedor, principalmente para pessoas com sobrepeso que
precisam estar ali para melhorar sua saúde, mas infelizmente isso não
acontece”, afirma Bianca.
“As mulheres sentem
muita vergonha de frequentar esse ambiente, principalmente porque pessoas que
têm um corpo no padrão da sociedade ficam julgando.”
Bianca afirma que nem
todos que fazem musculação querem ter um corpo musculoso ou emagrecer.
“Tem gente que está
ali só para ter uma qualidade de vida, melhorar a alimentação ou para esquecer
um pouco dos problemas do dia a dia”, diz Bianca.
“São muitas mulheres
que pagam uma mensalidade igual a todas as outras pessoas e precisam estar ali
pela saúde delas. São pessoas que buscam autonomia para se locomover sem
precisar da ajuda dos filhos e sem necessariamente serem magras”.
A personal trainer
recomenda que algumas de suas alunas iniciem os exercícios em casa e só depois
migrem para uma academia, para irem se ambientando aos poucos.
Ela explica que as
aulas em domicílio podem até ajudar, mas apenas um local estruturado terá todos
os aparelhos necessários para executar os exercícios de maneira completa.
“Estou trazendo para
elas esse começo em casa, mas com foco para entrar numa academia e para tirar
esse bloqueio da cabeça delas. Até porque não faz muito sentido isso”, diz
Bianca.
“A academia é
justamente um local onde você vai para para melhorar o condicionamento físico,
não ser julgado pelo seu peso.”
• Terapia e visibilidade
Bianca conta que faz
terapia para manter a saúde mental em dia para lidar com tanta agressividade e
diz que faz questão de responder aos comentários de quem desconfia que uma
mulher acima do peso pode ser personal trainer.
Ela usou em suas redes
sociais o exemplo da judoca brasileira Beatriz Souza, medalhista de ouro na
Olimpíada de Paris neste ano, para dizer que a conquista dela pode incentivar
outras pessoas.
“Que sua vitória
motive muitas outras a buscar uma vida mais saudável e ativa. Obrigado por nos
mostrar que o impossível é apenas uma questão de perspectiva”, escreveu em um
post.
“Eu não sei quem
inventou esse padrão de falar qual o certo. Porque o certo é você estar bem
consigo mesma. O certo, entre aspas, ou o padrão é você ser feliz”, diz Bianca.
“O padrão é você ser
saudável para você ter uma vida leve, boa, porque quem é feliz, quem está bem,
não enche o saco de terceiros.”
A personal diz que os
ataques acabam dando mais visibilidade para ela. “Estou tirando proveito disso
para alcançar o meu propósito de alcançar mais mulheres que se identificaram
comigo e estão vindo me pedir ajuda para lidar com seus problemas.”
Alvo de tantas
críticas e debates, Bianca Martins diz que apenas não quer ser julgada por sua
aparência.
“Eu sei do meu
potencial. Se você quer emagrecer, eu consigo te ajudar. Se você quer ganhar
massa, eu posso também. Eu sempre estudei muito para que a minha aparência não
seja algo que leve as pessoas a desconfiarem do meu trabalho”.
Fonte: BBC News Brasil
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