Paulo Nogueira Batista Jr.: ‘Sobre Ernesto
Geisel’
Na minha longa
experiência como colunista, aprendi que não é recomendável publicar artigos em
sequência. Entre um e outro artigo, acontecem mil coisas, vem uma torrente de
outros artigos e notícias, e o leitor do texto inicial já nem lembra dele ou
perdeu o interesse pelo tema. Mesmo assim, é exatamente o que vou fazer hoje –
retomar um aspecto do artigo que publiquei recentemente em homenagem aos 70
anos do suicídio de Vargas.
A razão é que nesse
artigo um ponto causou surpresa, quando não repulsa: a referência ao general
Ernesto Geisel como um dos quatro grandes presidentes da República da nossa
história, junto com Getúlio Vargas, Lula e Juscelino Kubitschek. Prometi
explicar um pouco melhor a inclusão de Ernesto Geisel nessa pequena lista, pois
sabia que ela seria controvertida. Estou aqui cumprindo a promessa.
O tema é vasto e o
tempo do leitor, curto. Vou abordar apenas três aspectos do seu governo –
economia, política interna e relações internacionais. Os méritos da sua
presidência, que foi de março de 1974 a março de 1979, são muitos e me parecem
inegáveis, mas não deixarei de apontar erros e pontos fracos. Vou mesclar
leituras e estudos com lembranças pessoais dessa época. Farei comparações com o
governo Lula e outros governos posteriores a Ernesto Geisel. Mas será uma
apertada síntese, como dizem os advogados. Em todo caso, “alerta de textão”,
como diz a gurizada.
• Nacional-desenvolvimentismo no governo
Geisel
Ernesto Geisel foi um
presidente desenvolvimentista e nacionalista, mais do que qualquer outro da
ditadura militar. E mais do que qualquer outro dos presidentes da República que
vieram depois – com as exceções de Lula e Dilma Rousseff. Ernesto Geisel retomou,
assim, a tradição de Getúlio e JK – não só em economia, mas também nas relações
internacionais do Brasil.
Sobre política
econômica e muitos outros aspectos da atuação de Ernesto Geisel recomendo
vivamente ao leitor ou leitora que consulte o livro Ernesto Geisel, editado
pelo Centro de Pesquisa e Documentação (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas – um
trabalho primoroso, baseado em longo depoimento do ex-presidente, tomado em
1993 e 1994, e cuidadosamente revisto por ele. Nessa revisão, Ernesto Geisel
acrescentou, em especial, longo trecho em defesa da intervenção do Estado na
economia.
No seu período de
governo, destaca-se o II Plano Nacional de Desenvolvimento, baseado na
ampliação e diversificação do parque industrial brasileiro, especialmente o
setor de bens de capital. O meu primeiro emprego, menciono en passant, foi como
estagiário do II PND e dou meu modesto testemunho do dinamismo do Ministério do
Planejamento na época, sob comando de João Paulo dos Reis Velloso.
Era um Brasil que
confiava em si mesmo e no seu potencial de desenvolvimento. Havia muitos
problemas não resolvidos e que sequer foram realmente enfrentados – em especial
a péssima distribuição de renda e riqueza –, mas a economia crescia rapidamente
e gerava empregos. O PIB cresceu 7% ano em média, resultado não igualado nos
governos posteriores. O II PND se baseava no chamado tripé – o Estado, o setor
privado nacional e o setor privado estrangeiro.
Uma economia mista,
portanto, com forte presença das empresas estatais, mas aberta ao capital
estrangeiro. Incluía-se, também, um apoio à indústria privada nacional, por
meio do BNDE e outros instrumentos. O meu segundo emprego, aliás, foi como
estagiário do BNDE e pude ver como o banco com entusiasmo no cumprimento da
missão de apoiar o desenvolvimento de setores estratégicos da economia nacional
privada. E ressalto: o apoio era a empresas privadas nacionais.
Os engenheiros,
economistas e advogados sob cuja orientação eu trabalhava resistiam ferozmente
a qualquer tentativa de empresas estrangeiras se travestirem de nacionais para
obter financiamento de longo prazo a taxas favorecidas junto ao BNDE. O
argumento, naquele tempo, era o de que filiais e subsidiárias de empresas
estrangeiras podiam recorrer ao capital de suas matrizes e tinham acesso mais
fácil ao mercado internacional de crédito. Não deviam e nem precisavam,
portanto, buscar apoio nos bancos públicos brasileiros.
A essa altura do
texto, já se percebe por que economistas nacional-desenvolvimentistas têm
razões de sobra para apreciar o que foi feito no período Geisel. Basta comparar
com o que aconteceu em governos posteriores em matéria de compromisso com o
desenvolvimento, com o último da ditadura militar, o governo Figueiredo, e com
o governo Sarney (exceção feita ao breve interregno do ministro da Fazenda
Dilson Funaro, do qual também participei, já na condição de economista).
Já nem peço a
comparação com os governos antinacionais de Fernando Collor de Mello e Fernando
Henrique Cardoso. No Lula II e Dilma I, foi retomada a tradição
nacional-desenvolvimentista. E Lula III faz agora nova tentativa, depois do
fracasso dos governos imediatamente anteriores.
• A gestação da crise da dívida externa
A bem da verdade,
entretanto, é preciso ressaltar que as enormes dificuldades dos governos de
João Figueiredo e José Sarney resultaram, em parte, de erros estratégicos
cometidos no governo de Ernesto Geisel. Diante do primeiro choque do petróleo
em 1973, período em que o Brasil era muito dependente das importações desse
produto, Mario Henrique Simonsen, ministro da Fazenda, o já mencionado João
Paulo dos Reis Velloso, e Paulo Lira, presidente do Banco Central, resolveram
permitir que a perda de termos de troca se refletisse em desequilíbrios
perigosos no balanço de pagamentos em conta corrente e um acentuado aumento da
dívida externa líquida do país. Os três eram economistas de grande valor, o que
não impediu que se dessem conta desses problemas a tempo.
Deu-se então a famosa
“reciclagem dos petrodólares”, realizada por bancos comerciais privados
americanos, europeus e japoneses. Isso levaria à crise da dívida externa da
década de 1980, agravada pela forma como Delfim Neto, no governo Figueiredo,
respondeu ao segundo choque do petróleo em 1979 e ao choque de juros promovido
pela Reserva Federal dos Estados Unidos a partir de 1980.
Uma questão essencial:
o governo Ernesto Geisel não percebeu a importância de acumular um volume mais
expressivo de reservas internacionais como forma de autoproteção. Quando veio o
segundo choque do petróleo e a alta das taxas de juro internacionais, houve
inesperado aumento da necessidade de financiamento externo da economia
brasileira. A liquidez internacional, em especial a oferta de crédito bancário
privado, que muitos supunham infinitamente elástica, secou abruptamente. E o
Brasil teve que recorrer ao FMI, perdendo soberania e autonomia de decisão.
Ressalvo que não era
tão fácil perceber plenamente esses riscos na época. Ainda me recordo de
assistir no Rio de Janeiro, por volta de 1979, uma interessante palestra do
economista John Williamson, que ficou célebre como pai do “Consenso de
Washington”. Durante a apresentação e no trabalho escrito que serviu de base a
ela, John Williamson sustentou que as reservas internacionais do Brasil (cerca
de US$ 13 bilhões) estavam altas demais…
Na verdade, a equipe
econômica do governo Ernesto Geisel se deixou seduzir por esse tipo de balela.
Quase imediatamente depois das lições ministradas por John Williamson, as
reservas brasileiras se mostraram dramaticamente insuficientes. O resultado foi
o colapso da economia – “a construção interrompida” a que faria referência
Celso Furtado.
• Meu encontro com Ernesto Geisel e
algumas comparações com Lula
Mesmo assim, os
méritos do governo Ernesto Geisel na área econômica me parecem inegáveis. O
presidente tinha certa sabedoria na condução da política econômica. Tive o
privilégio de conhecê-lo por volta de 1979/80. Ernesto Geisel, já
ex-presidente, veio almoçar na casa do meu pai onde ficamos os três
conversando. Eu, com 24 ou 25 anos, praticamente não dei um pio, limitando-me a
fazer algumas perguntas. Da conversa ficaram duas coisas importantes na minha
memória.
Primeira: referindo-se
à forma de lidar com o Ministro da Fazenda, Ernesto Geisel frisou que, em todo
governo, todos os ministros querem gastar, e só um, o da Fazenda, quer
economizar. E cabe ao Presidente, disse ele, prestigiar esse um – sob pena de
colocar o governo a perder. Assim faz o presidente Lula, que sempre apoia o
ministro Fernando Haddad.
Segundo aspecto da
conversa com Ernesto Geisel, esse não presente no governo atual: é
imprescindível, destacou ele, que o Presidente tenha dentro do governo acesso a
mais de uma opinião em matéria econômica. Lamentou que o seu sucessor, o
general João Figueiredo, tenha ficado na mão de um só superministro da
economia, Delfim Neto.
Ernesto Geisel
lembrou, por contraste, que ele contava com três vozes influentes e
independentes entre si: os acima mencionados Simonsen na Fazenda, Velloso no
Planejamento, além de Severo Gomes, o Ministro da Indústria e Comércio. Quando
havia uma questão econômica importante, ele convocava esses ministros, abria um
debate, ouvia os argumentos, as concordâncias e discordâncias – e então tomava
ele mesmo as decisões.
Nesse ponto, Lula
segue uma abordagem diferente. Só tem Fernando Haddad como ministro influente e
de confiança para questões econômicas. Talvez ele devesse criar, como sugeriu o
ex-ministro da Fazenda Guido Mantega, uma assessoria especial da Presidência,
no Palácio do Planalto, semelhante ao Council of Economic Advisors da
Presidência dos Estados Unidos.
Ela poderia funcionar
nos moldes da assessoria especial para assuntos internacionais, comandada pelo
ex-ministro Celso Amorim, que conta com o auxílio de uma equipe de diplomatas e
outros assessores.
• A dimensão política interna
Volto a Ernesto
Geisel. Ele foi um ditador, um dos cinco presidentes do regime estabelecido
pelo golpe militar de 1964. E, no entanto, é preciso notar, também, que foi ele
o responsável pela “distensão lenta, segura e gradual”, nas suas próprias
palavras. Essa “distensão” levaria ao fim da ditadura. Ernesto Geisel
enfrentou, inclusive, resistência feroz à abertura política por parte da “linha
dura” das Forças Armadas, como recapitulei no artigo anterior sobre Getúlio
Vargas.
Repare, leitor ou
leitora, num ponto que me parece crucial, ainda que controvertido: a
“distensão” veio, no meu modo de ver, essencialmente de cima para baixo, por
iniciativa do presidente Geisel, que teve a percepção de que a ditadura militar
não deveria e nem poderia se eternizar. Não veio de baixo para cima, por
pressão de setores da sociedade civil. Eu mesmo, como aluno de economia e
liderança estudantil, participei dessa pressão de baixo para cima cuja
ponta-de-lança era a agitação anti-ditadura em algumas universidades.
Em 1977, esse
movimento estudantil, dormente desde 1968, ressurgiu com certa força, sobretudo
na USP e na PUC do Rio de Janeiro, onde eu estudava e integrava o grupo de
líderes políticos na faculdade. Lembro bem da espionagem espantosamente
detalhada do SNI nas nossas reuniões de diretório, da convocação para
depoimento de alguns de nós no DOI-CODI (um órgão de repressão), dos
helicópteros militares sobrevoando ameaçadoramente o campus da PUC, enquanto
uma grande massa de estudantes bradava em coro, em resposta a um de nós que
gritava num megafone: “Jornalista Vladimir Herzog” – “Presente!”; “Operário
Manoel Fiel Filho” – “Presente!” – em referência que até hoje me emociona a
dois “subversivos”, como diziam os militares, que haviam sido assassinados nas
dependências do Segundo Exército.
Por conta desses
assassinatos e outros problemas, aliás, Ernesto Geisel demitiu em 1976 o
general Ednardo D’Ávila, o comandante do Segundo Exército, como lembrei no
artigo anterior.
Mas não me iludo. A
pressão dos estudantes e de outros setores não teria sido nem de perto
suficiente para levar à democratização. O mérito principal é de Ernesto Geisel.
E não me parece justo, acrescento, atribuir a ele a responsabilidade integral
por todas as violências políticas que ocorreram durante o seu governo. Isso não
equivaleria, pergunto, atribuir a Lula a responsabilidade por todos os
escândalos de corrupção que ocorreram na Petrobrás e outras áreas durante os
seus governos?
Também na área
política a sabedoria de Ernesto Geisel parece evidente. No depoimento ao CPDOC,
sem que tivesse sido perguntado a respeito, referiu-se a um futuro Presidente
da República nos seguintes termos: “Presentemente, o que há de militares no
Congresso? Não contemos com Jair Bolsonaro, porque o Jair Bolsonaro é um caso
completamente fora do normal, inclusive um mau militar”. E destacou que Jair
Bolsonaro, na época deputado federal, era um dos insensatos que queria voltar à
ditadura militar.
• Nacionalismo e relações internacionais
Na área internacional
o governo Geisel também se destacou positivamente, sob a égide do que ele
chamou de “pragmatismo responsável”. Com Ernesto Geisel voltou a política
externa independente, uma retomada da tradição de Getúlio e uma antecipação da
política que Lula faria de 2003 em diante.
Alguns exemplos,
listados rapidamente para não alongar mais um artigo já extenso demais.
Embora anticomunista,
Ernesto Geisel reconheceu a China de Mao Tsé Tung e abandonou as relações com
Taiwan em 1974 – isso anos antes o que os Estados Unidos o fizessem – um
“primeiro sinal de que o Brasil teria uma política externa independente”, como
notou Celso Amorim em entrevista recente. Ernesto Geisel reconheceu, além
disso, a independência e estabeleceu relações com os regimes marxistas de
Angola e Moçambique em 1975.
E abandonou um acordo
militar com os Estados Unidos em 1977, porque o governo Carter passara a
condicionar financiamentos à supervisão dos direitos humanos no Brasil. Outro
ponto crucial: Ernesto Geisel não aderiu ao Tratado de Não Proliferação
Nuclear, intensamente patrocinado pelos Estados Unidos e pela União Soviética.
A adesão só ocorreria durante o governo entreguista de Fernando Henrique
Cardoso.
Ainda mais importante,
também na área nuclear: acordo Brasil/Alemanha Ocidental, realizado no governo
Ernesto Geisel, que resultou no programa nuclear brasileiro e na criação de uma
empresa estatal para executá-lo, a Nuclebrás. Meu pai foi o principal negociador
desse acordo e o primeiro presidente da Nuclebrás.
Esse programa nuclear
sofreu, como seria de prever, forte oposição dos Estados Unidos e dos seus
aliados brasileiros, de um lado, e da União Soviética e seus aliados
brasileiros, de outro. O governo Ernesto Geisel resistiu a essas pressões e
tocou o programa nuclear para frente. Ele só viria a ser interrompido no
governo de João Figueiredo como consequência da perda de soberania associada à
crise da dívida externa.
A questão é polêmica,
reconheço, mas concluo com uma pergunta: todas essas considerações econômicas,
de política interna e de relações internacionais não seriam suficientes para
incluir Ernesto Geisel no rol dos maiores presidentes da República da nossa história?
Fonte: A Terra é
Redonda
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