Mineração ameaça produção de mel do maior
quilombo da Caatinga
Quando Júlio de Castro
começou com a apicultura, em 1986, ele não imaginava um dia chegar, junto com a
sua família, às 500 caixas de abelhas que mantém atualmente, capazes de
produzir até dez toneladas de mel por ano. Júlio é morador do Quilombo Lagoas e
um dos associados da Cooperativa Mel do Sertão, localizada na Serra da
Capivara, no Piauí, a região que mais produz mel no Nordeste.
“Eu comecei com a
abelha porque ela deu um retorno extraordinário. Eu mesmo nem trabalho mais com
a roça”, diz Júlio. “Em 2021, retirei mais de dez toneladas e fiz 100 mil reais
vendendo a R$ 16,50 o quilo de mel. Este lugar é excelente, eu não troco aqui
por nada. No inverno é verde, a gente trabalha bem, cuida das abelhas, é água
jorrando por todo buraco, e é só alegria respirando o ar puro desta região.”
O Quilombo Lagoas
possui mais de 140 famílias apicultoras associadas, tornando-se a comunidade
que mais produz mel na macrorregião da Serra da Capivara, com uma média anual
de até 500 toneladas por ano. Este é o maior território quilombola do bioma
Caatinga, com uma extensão de 62.375 hectares e 119 comunidades, atravessando
seis municípios: São Raimundo Nonato, Dirceu Arcoverde, Bonfim do Piauí, São
Lourenço do Piauí, Fartura do Piauí e Várzea Branca.
“As abelhas são o 13º
salário do sertão”, afirma Cláudio Tenório, liderança quilombola. “Elas
produzem muito mel e o mundo todo precisa de mel para a medicina e a produção
de cosméticos. Se a mineradora chegar e poluir aqui, nós vamos perder nosso
certificado de mel orgânico e não vamos conseguir vender para o exterior.”
Em 2019, a SRN
Mineração conseguiu uma licença prévia expedida pela Secretaria de Meio
Ambiente e Recursos Hídricos do Piauí (Semar) para pesquisar minério de ferro
na região. Neste mesmo ano, em audiência pública, foi apresentado o Estudo de
Impacto Ambiental (EIA/Rima) produzido pela empresa.
Para a surpresa da
comunidade, o estudo não reconhecia o território quilombola, excluindo o
certificado de reconhecimento de Quilombo expedido pela Fundação Zumbi dos
Palmares em 2009, e também escondendo o processo de demarcação da terra pelo
Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). O Relatório
Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) foi publicado em 2010, e a
finalização da titulação está em curso por meio do trabalho do Instituto Terras
do Piauí.
A SRN Mineração pretende
extrair até 300 toneladas de minério de ferro por ano do solo quilombola. “Não
resta dúvida que esse lugar aqui vai ser destruído. Dizem que é um buraco de
mais de 1 km de extensão. Pode trazer melhoria para alguém, mas para nós só vai
trazer problema”, relata Júlio de Castro.
E complementa: “Eles
vieram até aqui dizer que, se explorarem, não vai poluir, é uma máquina que
abafa. Mas eu não acredito. Dizem que quem tiver perto vai pagar para tirar os
apiários e mudar de local. Mas isso é difícil para mim, mudar do lugar onde eu
nasci e vivi minha vida. Dinheiro nenhum paga.”
Fotos: Rafael Martins.
Segundo Henrique Neri,
presidente da Cooperativa Mel do Sertão, estima-se que haja mais de 3 mil
pessoas trabalhando com a apicultura no Quilombo Lagoas. Na região da Serra da
Capivara, a economia em torno da produção de mel movimenta até 35 milhões de reais.
Flávia Fernandes,
engenheira de processo da SRN, relatou em entrevista concedida ao portal
Notícias da Mineração Brasil que existe a previsão para a criação de até 25
empregos diretos com a implantação da planta de extração de minério de ferro.
Mas, como diz Júlio,
“aqui 100% é contra. Porque eles andaram dizendo que ia vir emprego e nós
estamos vendo que é mentira esse negócio de emprego. Eles fizeram várias
escavações, passaram o avião por cima, vieram por terra de carro, furaram
buracos de até 200 metros de profundidade. Eles fazem tudo no sigilo, ninguém
aqui sabe das coisas. Se eles poluírem nossa floresta, o mel aqui já era”.
Henrique Neri explica
que, para conseguir o certificado de mel orgânico, é necessário fazer o
georreferenciamento de todos os apiários e garantir um raio de 6,4 quilômetros
de qualquer risco de contaminação. “Recentemente, eu tomei conhecimento dos
alvos que a SRN pretende explorar no território da Serra Capivara, e tem mais
do que 500 apiários no entorno destes raios da mineração. Uma coisa surreal que
não tem como existir junto com a apicultura”, diz.
• A Cova da Tia e a resistência quilombola
No meio da savana
verde e forte da Caatinga, avista-se uma pequena casa isolada, protegida por
uma cerca de madeira improvisada. No interior, a parede azul serve de fundo
para o altar simples, mas muito bem cuidado, composto por diversas imagens de
Nossa Senhora Aparecida, alguns outros santos católicos como São João e São
José, ex-votos encostados nas paredes, flores artificiais e a dona da casa: a
Tia.
A Cova da Tia é um
local de peregrinação dentro do território do Quilombo Lagoas, localizada no
município de Bonfim do Piauí. Diz a tradição oral que ali está enterrada uma
mulher negra que foi escravizada e fugiu. Caminhando pela mata durante dias,
ela acabou falecendo e foi encontrada por um grupo de vaqueiros já em
decomposição. Os vaqueiros tiveram o cuidado de enterrar o corpo e fizeram uma
promessa que, se encontrassem o rebanho de bois perdidos há alguns anos,
voltariam ali para fazer um cercamento no entorno do local onde haviam
enterrado a Tia e colocar uma cruz. No mesmo dia, o grupo encontrou os bois e
então começou a devoção pela Tia e a peregrinação pelo local.
“A Cova da Tia é um
santuário de mais de 200 anos e que remete muito ao nosso modo de pensar e ser
quilombola. Aqui não tem religião, recebe todo mundo de braços abertos. A gente
vê imagens católicas, do candomblé, espiritismo, balas e doces que remetem às
religiões de matrizes africanas”, define Salvador Viana, mobilizador cultural
do Quilombo Lagoas e responsável por promover encontros culturais com violeiros
e saraus de poesia no local.
Cláudio Tenório,
liderança histórica do Quilombo Lagoas e morador da comunidade do Calango,
relembra que sua mãe era devota da Tia: “Hoje eu estou com 71 anos de idade e,
quando eu me entendi como pessoa, já via minha mãe visitar a cova e fazer
promessas”.
Mas, segundo Cláudio,
também a Cova da Tia está ameaçada pela mineradora: “Os pontos de pesquisa de
mineração estão distantes apenas cem metros do local onde a Tia está enterrada.
É um local sagrado que a gente conheceu, nasceu e cresceu vendo as pessoas
fazendo suas promessas ali. A gente se sente desrespeitado pela mineradora
chegar e querer invadir o local. A mineradora nunca nos chamou para nenhuma
conversa. Só depois de insistirmos foi que eles marcaram uma audiência pública.
Mas o convite só chegou no dia anterior. E só estavam convidadas três pessoas,
entre elas eu. Como podemos falar por dez mil pessoas?”
Assim como uma mulher
preta e escravizada precisou fugir para tentar uma vida melhor e acabou
originando a Tia, os desafios para ficar na terra e poder utilizá-la na
construção de uma vida qualificada continuam. Segundo Cláudio, “até hoje existe
uma área de terra de 5 mil hectares que a gente não pode mexer porque dizem que
são dos tais fulanos, pessoas que moram em São Paulo ou Belo Horizonte. A gente
respeita porque conhece, sabe que é herança dos herdeiros do fazendeiro que
escravizava. Mas a gente continua até hoje praticamente escravizado. Morando em
cima da terra, mas sem poder trabalhar a terra.”
A cultura do Quilombo
Lagoas é uma das principais fontes de resistência. As danças e músicas como o
reisado e a roda de São Gonçalo reúnem as comunidades em datas especiais e
fortalecem o senso de coletividade, além dos rituais de umbanda. Mas ainda existem
também desafios para o respeito à diversidade religiosa, como explica Cláudio:
“Algumas pessoas dizem que é macumba, mas não é macumba, são os trabalhos de
terreiro que a gente faz. Até agora, as pessoas que fazem esse trabalho se
escondem por medo. Mas têm, e é a nossa cultura que é respeitada.”
Manuela Viana faz
parte do grupo de umbanda Mãe Jaciara de Yemanjá, que se apresentou na feira
agroecológica promovida na comunidade Umburana, em Várzea Branca. Ela relata
que ainda hoje é difícil se apresentar para um grande público: “É muito difícil
a gente estar no meio das pessoas se apresentando sem saber o que elas estão
pensando, ainda existe muito preconceito. A apresentação mostra que isso aqui
não é do mal e que a gente transmite amor, compaixão e união”.
A comunidade do
Quilombo Lagoas respondeu às ameaças da mineradora movendo uma ação civil
pública em parceria com a Defensoria Pública da União e do Estado do Piauí e o
Ministério Público Federal, e continua aguardando o julgamento pelo Tribunal
Regional Federal- TRF 1. Em 2022, a licença prévia expedida pela Semar venceu e
não foi renovada automaticamente. Os quilombolas relataram que ainda avistam
esporadicamente os veículos da empresa no local e aguardam ansiosamente pelo
julgamento do mérito da ação.
Fonte: Mongabay
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