André Márcio Neves Soares: ‘Governo Lula
3.0 — nem aplausos nem vaias’
Vou começar externando
minha opinião pessoal sobre o terceiro mandato de Lula no cargo mais alto do
país: estou um pouco decepcionado. Confesso que nutri maiores esperanças de
que, com adiantada idade, Lula pudesse abrir mão da sua tão sonhada tentativa de
ser um “estadista” mundial, em prol de um governo mais assertivo em termos de
governança local. De fato, se por um lado Lula foi o farol a nos guiar para
além do neofascismo bolsonarista, por outro se deixou enredar nas teias
nefastas do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, com as “emendas
parlamentares” e outras picuinhas.
É verdade que, nesses
quase dois anos de mandato, Lula conseguiu recuperar parcialmente nosso país,
que fora destroçado pelo governo anterior, em termos de políticas públicas, e
recolocá-lo no patamar das dez principais economias mundiais.
Nesse sentido,
indicadores como a taxa de desemprego atual em 6,9%; o crescimento do PIB de
1,4% no segundo trimestre; a retomada do programa Minha Casa Minha Vida, com
21,5 mil unidades habitacionais entregues em 2023 e previsão de entrega de mais
26 mil em 2024; e a revalorização do salário mínimo, embora não no patamar
prometido até agora, comprovam que o governo Lula realmente se preocupa em
promover a melhoria de vida dos/as cidadãos/ãs desse país, especialmente dos
menos afortunados.
Todavia, Lula se
comporta como se não soubesse que este governo será o seu último ou no máximo o
penúltimo, na hipótese de vir a se reeleger e reunir forças para permanecer até
o fim. Mas, de fato, até por sua idade, restam para Lula, sendo otimista, mais
seis anos de mandato. Infelizmente!
Seria bom, portanto,
que ele deixasse os conchavos políticos um pouco de lado — a exemplo das
recentes tratativas para elevar Arthur Lira e Rodrigo Pacheco ao seu ministério
quando acabar os mandatos dos dois no final do ano como presidentes da Câmara
dos Deputados e do Senado, respectivamente — e adotasse uma postura mais firme
em relação aos descaminhos que marcaram a nação sob influência do bolsonarismo
e ainda atrapalham o seu crescimento/desenvolvimento. Importa lembrar que
Arthur Lira sempre foi um aliado fiel de Jair Bolsonaro.
Nessas circunstâncias,
deixar um pouco de se preocupar com questões internacionais, como as guerras
pelo mundo afora, seara na qual o Brasil tem muito pouca influência, ou a
taxação global de grandes fortunas, poderia ser uma boa medida para permitir o
direcionamento das atenções para as principais preocupações internas. Ora, o
país pega fogo! Literalmente!
Os garimpeiros
continuam assolando as populações indígenas e envenenando seus territórios com
mercúrio. O presidente do Banco Central Campos Neto continua a desafiar a
razoabilidade econômica, com a manutenção dos juros nas alturas (acabou de
conseguir elevar em 0,25% a taxa Selic, com a economia do país em deflação no
último trimestre). Não temos uma política consistente de incremento da nossa
indústria bélica. A história mostra que nenhum país soberano manteve-se assim
por muito tempo, a saber, sem poderio militar interno.
De igual maneira, não
temos uma indústria farmacêutica nacional poderosa e condizente com o tamanho
do Brasil. Se continuarmos nessa linha de raciocínio, veremos que não temos uma
base sólida que nos permita evoluir para nos tornarmos uma nação desenvolvida e
com qualidade de vida para (quase) todos.
Veja bem, caro/a
leitor/a, a narrativa de que somos ainda um país jovem, com suas terras
descobertas há pouco mais de 500 anos, não deve mais pautar o itinerário da
nossa política. O ministro da Fazenda Fernando Haddad parece mais alinhado com
as demandas dos capitalistas/rentistas da “Faria Lima” do que com as reais
necessidades econômicas da população brasileira. Apesar do respeito que ele com
certeza merece, não dá para continuar a brincar com a questão da austeridade
fiscal em um país carente de maiores e melhores investimentos públicos.
Agora que o cenário
nacional melhorou, com a queda do desemprego e o crescimento econômico para
além das expectativas dos “experts” em finanças, Fernando Haddad deveria tentar
reverter paradigmas absurdos como o da meta de zerar o déficit primário, sob pena
de ver mais um soluço da nossa economia não se traduzir em crescimento
sustentado.
Ademais, faria bem à
saúde do país se Lula deixasse para as instâncias competentes o famigerado
golpe de Estado de 2016 — e os catastróficos governos antinacionais de Michel
Temer e Jair Bolsonaro — e focasse em desfazer as políticas contra o
desenvolvimento econômico e social que eles perpetraram. Em outras palavras, já
passou da hora de Lula transformar o país de mero agroexportador e extrativista
de recursos naturais em pleno século XXI para um verdadeiro “player” de novas
tecnologias, especialmente tecnologias de informação, se não em termos
mundiais, pelo menos na região sul do planeta. Esse poderia ser o seu legado!
O tempo urge! É
provável que Lula saiba que não terá mais tempo de vida política útil para ver
um Brasil evoluído, notadamente no campo das tecnologias de cunho ecológico,
mesmo que ele consiga aprumar o rumo da nossa política. Mas isso não é desculpa
para ele se enredar em acintes da política nacional, marcado por um histórico
de apadrinhamentos e interesses pessoais, verdadeiros conluios patrimonialistas
das oligarquias nacionais, sob pena de falhar mais uma vez no direcionamento do
país para o grande salto de qualidade de vida doméstica que a maioria da
população brasileira espera, pelo menos desde que nos tornamos uma República.
Ora, cadê o discurso
de reforma agrária que outrora animou a “alma de Sion” do discurso petista dos
anos de 1980? Por onde anda a narrativa da reforma educacional que militou pelo
discurso do PT quando da primeira eleição de Lula?
Não chega a
surpreender a recente estatística divulgada por diversos portais de notícias de
que sete em cada dez brasileiros não sabem resolver questões simples de
matemática. Na verdade, a carreira de professor segue sendo desqualificada cada
dia mais, com baixos salários e precárias condições de trabalho, o que, por
óbvio, impactará negativamente a educação no país no longo prazo.
É certo que grande
parte da política educacional compete aos estados e municípios. Mas é o governo
federal quem fornece o norte, que planeja o futuro estudantil de nossas
crianças e jovens, através do MEC. Cabe ao governo federal delinear políticas
públicas de incentivo (talvez o termo correto seja ajuda) para que os estados e
municípios possam capacitar seus professores de primeiro e segundo graus. Sem
crianças bem-educadas, não existe país desenvolvido. Muito menos cidadãos
conscientes da sua condição política.
Por tudo isso, para
quem acompanha a política nacional, especialmente o governo Lula, fica a
sensação de frustração. Não quero dizer com isso que o país estaria melhor sem
ele. Pelo contrário! Cobro de Lula porque tenho convicção de que ele pode fazer
mais. Definitivamente, não é tentando aumentar o número de membros do conselho
de segurança da ONU que Lula entrará para a história desse país.
Aliás, China e Estados
Unidos acabaram de frustrar essa intenção dele. Lula já faz parte do seleto
panteão de presidentes notáveis que tivemos. Independentemente do que aconteça,
ele já tem seu “ticket” para o Olimpo. Mas ainda precisamos do Lula de carne e
osso, do ex-metalúrgico “arretado”, do “sapo barbudo” radical que tinha o sonho
de transformar este país numa potência. Isso não se faz com acordos com a Faria
Lima. Também não se faz com congressistas golpistas, nem perfurando a região
amazônica atrás de petróleo.
Cidadania, caro/a
leitor/a, é o conceito mais importante de uma nação. Sem cidadãos não existe
Estado representativo. Mas se por um lado ser cidadão implica diversos deveres,
que não são tema desse breve texto, por outro assegura inúmeros direitos. No Brasil,
as elites que nos governam desde o Império inverteram a lógica que transforma o
povo, ou melhor, os súditos em cidadãos. Com efeito, a história nos mostra que
só através da luta pela conquista dos direitos civis e sociais as sociedades
ocidentais mais civilizadas conseguiram atingir seus direitos políticos com
maior maturidade.
Aqui, nas palavras de
CARVALHO (2016): “Até 1930 não havia povo organizado politicamente nem
sentimento nacional consolidado. A participação na política nacional, inclusive
nos grandes acontecimentos, era limitada a pequenos grupos … O povo não tinha
lugar no sistema político, seja no Império, seja na República. O Brasil ainda
era para ele uma realidade abstrata”.
Seria muito bom se
alguém do círculo mais íntimo de Lula conseguisse que ele fizesse uma “mea
culpa”, íntima mesmo, que o permitisse recalibrar os rumos do seu atual
governo. Como mudanças profundas de paradigmas sociais e econômicos só são
atingidas no longo prazo, receio que Lula não veria os frutos da sua nova rota,
como teria visto se tivesse feito a lição de casa nos seus dois primeiros
mandatos. Mas isso não é desculpa para não fazer agora.
Estamos na terceira
década do século XXI e, ainda hoje, boa parte dos/as brasileiros/as não pode
ser chamada de cidadão de fato e de direito. Por consequência, o Brasil
continua sendo um país de segunda classe, explorado e subjugado pelas
principais potências do planeta. Se é verdade que teria sido muito pior sem os
governos petistas nessas últimas décadas, vide o período de Michel Temer e Jair
Bolsonaro, é também fato que perdemos uma oportunidade de ouro, nessa quadra
histórica, para resolver de vez a questão da nossa cidadania.
Lula continua em
débito com a sociedade brasileira, pois. Não merece nem aplausos nem vaias. Mas
ainda é tempo, e, se Deus é mesmo brasileiro, Lula haverá de ser reeleito em
2026, e concluirá seu segundo mandato nesta década (no total serão quatro
mandatos). Assim, com mais seis anos pela frente, será ainda possível
direcionar seu governo para solucionar as principais questões que atrapalham o
desenvolvimento do nosso país. E, depois, torceremos para que, no futuro, novos
líderes deem continuidade ao seu legado.
Fonte: A Terra é
Redonda
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