sábado, 28 de setembro de 2024

Frei Betto: ‘Síndrome da Gata Borralheira’

Política é como salsicha, melhor não saber como se faz. Em se tratando de campanha eleitoral, tudo fica mais complicado, pois os ingredientes da receita quase nunca condizem com o paladar dos eleitores.

Os candidatos pertencem a um partido que, teoricamente, defende um programa para o município. Não sei qual seria o resultado de uma pesquisa que pedisse aos candidatos para destacarem dez pontos fundamentais do programa de seus partidos. Desconfio de que a maioria nunca o leu.

Ocorre que há quem prioriza a preferência partidária e não o candidato. Se o político troca de partido, corre o risco de perder a eleição, pois muitos eleitores negam apoio a quem cede ao pecado da infidelidade partidária.

Assim, os partidos transformam-se em confederações de tendências. São como a matrioska, a coleção de bonecas russas encaixadas uma dentro da outra. Abrigam partidecos que, por sua vez, travam disputas internas. Como diria tia Quitéria, deve ser por isso que se chamam partidos... Alguns deveriam ser qualificados de repartidos.

Na eleição o que conta – além do horário gratuito no rádio e na TV – é o marketing. Nessa área ocorre a mais evidente contradição, resultante de três afluentes que desaguam numa imensa pororoca: o candidato, o partido e a agência de publicidade contratada para maquiar o político.

Os partidos não costumam ter assessoria de imprensa e, muito menos, departamento de marketing, o que é uma falha. Aos candidatos, que em geral não podem dispor de assessoria permanente, não resta alternativa senão improvisar. Procuram um jornalista que tenha com eles um mínimo de afinidade ideológica e, se possível, afetiva, e o contratam.

Há casos em que o assessor de imprensa é um profissional de aluguel – trabalha para quem paga, não importa se o candidato é de direita (para não cair no chavão, recorro a Bobbio: ou seja, aceita como natural e/ou justificável a desigualdade social) ou de esquerda (não se conforma com a desigualdade social).

Tudo se complica quando chega a hora do rádio e da TV. Os marqueteiros eleitorais são poucos e, em geral, disputadíssimos. Por isso, são caros. E trabalham para quem paga.

Os partidos de direita, plenos de poder e dinheiro, contratam os mais competentes. Para a direita tudo é mais simples, pois se move por interesses, ao contrário da esquerda, que se move por princípios (ou deveria fazê-lo).

Na falta de clareza de seus princípios e no afã de ganhar a eleição, a esquerda acaba agindo espelhada na direita: contrata a preço astronômico uma equipe de publicidade que nada tem a ver com a sua proposta política.

Marqueteiros eleitorais dificilmente são de esquerda. Eis um complicador. Alguém deve ceder: o marqueteiro, ao se submeter às decisões da coordenação da campanha, ou o candidato, ao se conformar às exigências de marketing.

Em geral, cede o candidato e, com ele, o programa da campanha, a índole do partido e o perfil ideológico que atrai seus eleitores. Resultado: a síndrome da gata borralheira – o político é popular e progressista, mas, em mãos da fada marqueteira, ganha o perfil de linda donzela e ainda acredita que atrairá eleitores quais príncipes enamorados. Nesse baile de nobres, seu discurso adquire moderação, os temas polêmicos ficam debaixo do tapete, já não se pode distinguir entre a gata borralheira e as moças da corte.

Há na propaganda política uma abissal diferença entre o município real e o eleitoral. Muito do que se mostra na TV é cenário e montagem de estúdio. E haja fake news! Eis-nos em plena virtualidade política! O eleitor recebe, pela janelinha eletrônica, um produto tão maquiado quanto um presunto ou uma margarina. O candidato não fala o que pensa nem o que sente. Lê no teleprompter um texto elaborado pelos marqueteiros.

Tudo soa falso: o sorriso, o tom de voz, o gesto e, quase sempre, as promessas. A propaganda eleitoral pela TV e redes digitais pesa muito nas oscilações da bolsa eleitoral de um candidato. Ocorre que o meio é a mensagem e a TV e as redes veículos viciados. Nelas o conteúdo importa menos que a emoção.

Em se tratando de campanha, tudo se complica, porque sobe nas pesquisas quem produz mais efeitos especiais. O bonito ganha do feio, o rico do pobre, o histriônico do tímido, o mentor de assassinos daquele que defende os direitos humanos.

Em suma, essa engrenagem eleitoral é para manter o sistema e, com ele, as oligarquias no poder. A esquerda chegar ao poder é tão viável quanto acertar números premiados nas loterias. Mas vale tentar, desde que haja fidelidade ao drama de milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza e, nos municípios, sobrevivem em condições desumanas.

 

•        Os fenômenos da reta final das eleições 2024: as apostas e a violência político-eleitoral. Por Luísa Leite

Esta semana, o Tribunal Superior Eleitoral precisou intervir na indústria de jogos de azar. Um leitor mais desatento pode achar absurda a informação, mas sim: no Brasil de 2024, ainda não temos carros voadores, mas temos diversos sites de apostas oferecendo, a quem quiser se arriscar, a possibilidade de fazer uma “fezinha” sobre quem será o prefeito ou prefeita que logrará êxito no pleito.

O TSE agiu corretamente ao caracterizar como ilícito eleitoral a prática de vincular a votação a apostas, seja por quem for, seja como for. Eleição costuma ser coisa séria e, convenhamos, a democracia não deve se atrelar a jogos de azar. Na verdade, a nova cultura de apostas no Brasil começa a mostrar suas rachaduras.

Tudo começou em 2018, quando o governo Temer iniciou a legalização das apostas esportivas. Desde então, mais de 500 empresas passaram a operar no mercado. Em 2023, aproximadamente 15% dos brasileiros apostavam com regularidade, com gastos entre 100 e 150 bilhões de reais, segundo estudo do Santander. No campo das apostas esportivas, o Brasil hoje é o país com mais apostadores do planeta, segundo a Similarweb.

Na economia, formou-se uma bomba: aproximadamente entre 40 e 50 bilhões de reais, antes destinados a bens e serviços, agora viraram aposta. Admitir que há pessoas que deixam de comprar comida ou que o Bolsa Família tem sido usado para apostas revela um cenário ainda mais sombrio.

A democracia não deve cair nas mãos das casas de apostas. Da mesma forma, a violência eleitoral precisa sair do noticiário. A falta de civilidade atingiu níveis alarmantes. Para tentar conter essa selvageria, os Tribunais Regionais Eleitorais e outros órgãos competentes foram oficiados pela Ministra Cármen Lúcia a priorizar casos de agressão até o segundo turno.

A polarização política, que também se intensificou em 2018, assim como a liberação das apostas, tem manchado, pleito após pleito, as eleições brasileiras. O jeito de fazer política no país mudou. A animosidade e o “nós contra eles” assumiram contornos perigosamente afetivos. Há dois tipos de polarização: uma que aumenta o interesse e o engajamento político-ideológico, e outra, marcada pela desafeição entre grupos rivais, como explicam Iyengar, Sood e Lelkes.

Estamos inundados por apostas e polarização afetiva. Embora a Ciência Política nacional ainda tenha dificuldades em capturar as nuances da polarização no país e que, no campo das apostas, alguns defendam que o jogo pagará impostos e gerará lucros ao Estado maiores que os prejuízos. Mas quem apostará nisso?

Pergunta-se também: será que a humanidade mantém os vícios ou são os vícios que mantêm a humanidade? Saber que o homem é propenso aos prazeres e às maleficências de sua própria natureza não é novidade nos bilhões de anos do planeta Terra. O cérebro, a dopamina e os inúmeros prazeres que tiram a rotina dos eixos estão aí, mas deixo aqui os ensinamentos socráticos de que “louváveis são as coisas belas, censuráveis as vergonhosas. E consideram-se as virtudes entre as coisas belas, e entre as vergonhosas, os vícios.”

 

•        A disputa do parlamento e a importância de candidaturas do MST. Por Maíra do MST

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é o maior movimento popular da América Latina. Há quatro décadas, é referência na luta pela reforma agrária em um dos países com maior concentração de terras do mundo – concentração de renda e desigualdade que remontam a um passado colonial, escravocrata e de exploração da monocultura para exportação em nosso país. A luta pela terra é o berço da luta contra a desigualdade. Ao mesmo tempo, foi no espaço institucional que nos últimos anos se organizaram e foram aprovados retrocessos inimagináveis para a nossa democracia. Do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff à organização da bancada do agronegócio pautando liberação desenfreada de agrotóxicos e o absurdo Marco Temporal. Vale aquela frase: nas urnas não cabem nossos sonhos, mas com certeza cabem nossos pesadelos.

É nesse contexto que há meses eu e outras companheiras e companheiros pelo Brasil inteiro temos ouvido que “precisamos do MST disputando as eleições”. A participação eleitoral do movimento não é inédita, o Sem-Terra Valmir Assunção, por exemplo, está em seu quarto mandato como deputado federal pela Bahia. Mas, há, sim, uma novidade: hoje o MST está organizado para disputar as eleições pelo Brasil, levando a luta pela Reforma Agrária Popular e pela soberania alimentar para o centro da disputa política. Somos mais de 600 candidaturas ligadas ao movimento, distribuídas em mais de 350 municípios.

No Rio de Janeiro, em 2022, tivemos uma vitória política com a eleição da deputada Marina do MST, a primeira mulher Sem-Terra da ALERJ. De lá para cá, amadurecemos a necessidade de uma candidatura para a Câmara de Vereadores na capital fluminense. Meu nome foi escolhido por urgências concretas: o combate à fome e à emergência climática – e não dá para falar sobre sem lembrar do protagonismo das mulheres negras e da juventude nessa luta. São as mulheres negras que mais chefiam famílias e lutam todos os dias para colocar comida na mesa e é a juventude que se prepara para lidar com mudanças nunca vistas no nosso mundo. Nosso desafio é colocar o combate à fome no centro da disputa eleitoral em nossa cidade. Se avançamos no combate à fome nacionalmente com o retorno do presidente Lula, essa ainda não é a realidade local.

O I Inquérito de Insegurança Alimentar do Rio de Janeiro, publicado em junho, revela um quadro assustador: a fome, identificada como insegurança alimentar grave, entre a população carioca é quase o dobro daquela constatada a nível nacional. Em números absolutos, em 2023, quase meio milhão de cariocas (488.709) vivenciou a fome e mais de dois milhões de cariocas (2.043.492) conviveram com algum nível de insegurança alimentar. Obviamente, isso se acentua de acordo com o bairro e marcadores de raça, gênero e escolaridade. São os lares liderados por mulheres negras que mais sofrem, sobretudo na zona norte. Outro dado alarmante: a insegurança alimentar grave foi seis vezes maior entre casas em que o/a responsável tinha trabalho informal, comparando com as residências cujo/a responsável possui trabalho formal. A falta de acesso à água também se relaciona com a fome: entre os lares marcados pela insegurança hídrica, apenas 30,3% estão em segurança alimentar e 27% estão em insegurança alimentar grave.

O Poder Executivo tem algumas ferramentas que atuam nesse sentido, distribuídas entre várias secretarias, mas precisamos de mais. Desde a pandemia, o MST aposta em uma ferramenta que tem a solidariedade como princípio: as Cozinhas Populares. Essas cozinhas combinam três dimensões: a) a distribuição de refeições preparadas com alimentos saudáveis, lidando imediatamente com a fome; b) a geração de emprego e renda para as pessoas diretamente envolvidas; c) e a organização popular, na medida em que se torna um espaço de construção política da comunidade.

Uma das minhas principais propostas é a ampliação do número de Cozinhas Comunitárias, a partir da regularização de Cozinhas Populares promovidas por organizações territoriais e subsídio para construção de novas cozinhas. Diferentemente dos restaurantes populares, que são importantes e precisam ser revitalizados, as cozinhas são descentralizadas, sendo mais acessíveis para os moradores de cada local.

As cozinhas, por si só, não bastam. Precisamos da regulamentação da Lei Municipal 6691/2019, que dispõe sobre a agricultura urbana; de apoio técnico e subsídio para agricultura familiar, visando a ampliação do consumo desses alimentos em creches e escolas municipais, de acordo com o PNAE; de feiras populares nas favelas, alterando seu eixo de concentração geográfica; de transformação de terrenos baldios em terrenos de produção agroecológica; e a promoção de viveiros e hortas populares para produção de hortaliças para distribuição.

Uma candidatura do MST tem a responsabilidade de ser firme no projeto de combate à fome e à desigualdade em nosso país. Carrego o desafio de pautar alternativas ao modelo de destruição do agronegócio, tão enraizado nos parlamentos pelo Brasil. Não é à toa que 2024 marca uma virada de chave na ocupação dos Sem-Terra nas instituições: não temos tempo a perder.

 

Fonte: Correio da Cidadania/Le Monde

 

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