Frei Betto: ‘Síndrome da Gata Borralheira’
Política é como
salsicha, melhor não saber como se faz. Em se tratando de campanha eleitoral,
tudo fica mais complicado, pois os ingredientes da receita quase nunca condizem
com o paladar dos eleitores.
Os candidatos
pertencem a um partido que, teoricamente, defende um programa para o município.
Não sei qual seria o resultado de uma pesquisa que pedisse aos candidatos para
destacarem dez pontos fundamentais do programa de seus partidos. Desconfio de
que a maioria nunca o leu.
Ocorre que há quem
prioriza a preferência partidária e não o candidato. Se o político troca de
partido, corre o risco de perder a eleição, pois muitos eleitores negam apoio a
quem cede ao pecado da infidelidade partidária.
Assim, os partidos
transformam-se em confederações de tendências. São como a matrioska, a coleção
de bonecas russas encaixadas uma dentro da outra. Abrigam partidecos que, por
sua vez, travam disputas internas. Como diria tia Quitéria, deve ser por isso que
se chamam partidos... Alguns deveriam ser qualificados de repartidos.
Na eleição o que conta
– além do horário gratuito no rádio e na TV – é o marketing. Nessa área ocorre
a mais evidente contradição, resultante de três afluentes que desaguam numa
imensa pororoca: o candidato, o partido e a agência de publicidade contratada
para maquiar o político.
Os partidos não
costumam ter assessoria de imprensa e, muito menos, departamento de marketing,
o que é uma falha. Aos candidatos, que em geral não podem dispor de assessoria
permanente, não resta alternativa senão improvisar. Procuram um jornalista que
tenha com eles um mínimo de afinidade ideológica e, se possível, afetiva, e o
contratam.
Há casos em que o
assessor de imprensa é um profissional de aluguel – trabalha para quem paga,
não importa se o candidato é de direita (para não cair no chavão, recorro a
Bobbio: ou seja, aceita como natural e/ou justificável a desigualdade social)
ou de esquerda (não se conforma com a desigualdade social).
Tudo se complica
quando chega a hora do rádio e da TV. Os marqueteiros eleitorais são poucos e,
em geral, disputadíssimos. Por isso, são caros. E trabalham para quem paga.
Os partidos de
direita, plenos de poder e dinheiro, contratam os mais competentes. Para a
direita tudo é mais simples, pois se move por interesses, ao contrário da
esquerda, que se move por princípios (ou deveria fazê-lo).
Na falta de clareza de
seus princípios e no afã de ganhar a eleição, a esquerda acaba agindo espelhada
na direita: contrata a preço astronômico uma equipe de publicidade que nada tem
a ver com a sua proposta política.
Marqueteiros
eleitorais dificilmente são de esquerda. Eis um complicador. Alguém deve ceder:
o marqueteiro, ao se submeter às decisões da coordenação da campanha, ou o
candidato, ao se conformar às exigências de marketing.
Em geral, cede o
candidato e, com ele, o programa da campanha, a índole do partido e o perfil
ideológico que atrai seus eleitores. Resultado: a síndrome da gata borralheira
– o político é popular e progressista, mas, em mãos da fada marqueteira, ganha
o perfil de linda donzela e ainda acredita que atrairá eleitores quais
príncipes enamorados. Nesse baile de nobres, seu discurso adquire moderação, os
temas polêmicos ficam debaixo do tapete, já não se pode distinguir entre a gata
borralheira e as moças da corte.
Há na propaganda
política uma abissal diferença entre o município real e o eleitoral. Muito do
que se mostra na TV é cenário e montagem de estúdio. E haja fake news! Eis-nos
em plena virtualidade política! O eleitor recebe, pela janelinha eletrônica, um
produto tão maquiado quanto um presunto ou uma margarina. O candidato não fala
o que pensa nem o que sente. Lê no teleprompter um texto elaborado pelos
marqueteiros.
Tudo soa falso: o
sorriso, o tom de voz, o gesto e, quase sempre, as promessas. A propaganda
eleitoral pela TV e redes digitais pesa muito nas oscilações da bolsa eleitoral
de um candidato. Ocorre que o meio é a mensagem e a TV e as redes veículos
viciados. Nelas o conteúdo importa menos que a emoção.
Em se tratando de
campanha, tudo se complica, porque sobe nas pesquisas quem produz mais efeitos
especiais. O bonito ganha do feio, o rico do pobre, o histriônico do tímido, o
mentor de assassinos daquele que defende os direitos humanos.
Em suma, essa
engrenagem eleitoral é para manter o sistema e, com ele, as oligarquias no
poder. A esquerda chegar ao poder é tão viável quanto acertar números premiados
nas loterias. Mas vale tentar, desde que haja fidelidade ao drama de milhões de
brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza e, nos municípios, sobrevivem
em condições desumanas.
• Os fenômenos da reta final das eleições
2024: as apostas e a violência político-eleitoral. Por Luísa Leite
Esta semana, o
Tribunal Superior Eleitoral precisou intervir na indústria de jogos de azar. Um
leitor mais desatento pode achar absurda a informação, mas sim: no Brasil de
2024, ainda não temos carros voadores, mas temos diversos sites de apostas
oferecendo, a quem quiser se arriscar, a possibilidade de fazer uma “fezinha”
sobre quem será o prefeito ou prefeita que logrará êxito no pleito.
O TSE agiu
corretamente ao caracterizar como ilícito eleitoral a prática de vincular a
votação a apostas, seja por quem for, seja como for. Eleição costuma ser coisa
séria e, convenhamos, a democracia não deve se atrelar a jogos de azar. Na
verdade, a nova cultura de apostas no Brasil começa a mostrar suas rachaduras.
Tudo começou em 2018,
quando o governo Temer iniciou a legalização das apostas esportivas. Desde
então, mais de 500 empresas passaram a operar no mercado. Em 2023,
aproximadamente 15% dos brasileiros apostavam com regularidade, com gastos
entre 100 e 150 bilhões de reais, segundo estudo do Santander. No campo das
apostas esportivas, o Brasil hoje é o país com mais apostadores do planeta,
segundo a Similarweb.
Na economia, formou-se
uma bomba: aproximadamente entre 40 e 50 bilhões de reais, antes destinados a
bens e serviços, agora viraram aposta. Admitir que há pessoas que deixam de
comprar comida ou que o Bolsa Família tem sido usado para apostas revela um cenário
ainda mais sombrio.
A democracia não deve
cair nas mãos das casas de apostas. Da mesma forma, a violência eleitoral
precisa sair do noticiário. A falta de civilidade atingiu níveis alarmantes.
Para tentar conter essa selvageria, os Tribunais Regionais Eleitorais e outros
órgãos competentes foram oficiados pela Ministra Cármen Lúcia a priorizar casos
de agressão até o segundo turno.
A polarização
política, que também se intensificou em 2018, assim como a liberação das
apostas, tem manchado, pleito após pleito, as eleições brasileiras. O jeito de
fazer política no país mudou. A animosidade e o “nós contra eles” assumiram
contornos perigosamente afetivos. Há dois tipos de polarização: uma que aumenta
o interesse e o engajamento político-ideológico, e outra, marcada pela
desafeição entre grupos rivais, como explicam Iyengar, Sood e Lelkes.
Estamos inundados por
apostas e polarização afetiva. Embora a Ciência Política nacional ainda tenha
dificuldades em capturar as nuances da polarização no país e que, no campo das
apostas, alguns defendam que o jogo pagará impostos e gerará lucros ao Estado
maiores que os prejuízos. Mas quem apostará nisso?
Pergunta-se também:
será que a humanidade mantém os vícios ou são os vícios que mantêm a
humanidade? Saber que o homem é propenso aos prazeres e às maleficências de sua
própria natureza não é novidade nos bilhões de anos do planeta Terra. O
cérebro, a dopamina e os inúmeros prazeres que tiram a rotina dos eixos estão
aí, mas deixo aqui os ensinamentos socráticos de que “louváveis são as coisas
belas, censuráveis as vergonhosas. E consideram-se as virtudes entre as coisas
belas, e entre as vergonhosas, os vícios.”
• A disputa do parlamento e a importância
de candidaturas do MST. Por Maíra do MST
O Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é o maior movimento popular da América
Latina. Há quatro décadas, é referência na luta pela reforma agrária em um dos
países com maior concentração de terras do mundo – concentração de renda e
desigualdade que remontam a um passado colonial, escravocrata e de exploração
da monocultura para exportação em nosso país. A luta pela terra é o berço da
luta contra a desigualdade. Ao mesmo tempo, foi no espaço institucional que nos
últimos anos se organizaram e foram aprovados retrocessos inimagináveis para a
nossa democracia. Do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff à organização da
bancada do agronegócio pautando liberação desenfreada de agrotóxicos e o
absurdo Marco Temporal. Vale aquela frase: nas urnas não cabem nossos sonhos,
mas com certeza cabem nossos pesadelos.
É nesse contexto que
há meses eu e outras companheiras e companheiros pelo Brasil inteiro temos
ouvido que “precisamos do MST disputando as eleições”. A participação eleitoral
do movimento não é inédita, o Sem-Terra Valmir Assunção, por exemplo, está em seu
quarto mandato como deputado federal pela Bahia. Mas, há, sim, uma novidade:
hoje o MST está organizado para disputar as eleições pelo Brasil, levando a
luta pela Reforma Agrária Popular e pela soberania alimentar para o centro da
disputa política. Somos mais de 600 candidaturas ligadas ao movimento,
distribuídas em mais de 350 municípios.
No Rio de Janeiro, em
2022, tivemos uma vitória política com a eleição da deputada Marina do MST, a
primeira mulher Sem-Terra da ALERJ. De lá para cá, amadurecemos a necessidade
de uma candidatura para a Câmara de Vereadores na capital fluminense. Meu nome
foi escolhido por urgências concretas: o combate à fome e à emergência
climática – e não dá para falar sobre sem lembrar do protagonismo das mulheres
negras e da juventude nessa luta. São as mulheres negras que mais chefiam
famílias e lutam todos os dias para colocar comida na mesa e é a juventude que
se prepara para lidar com mudanças nunca vistas no nosso mundo. Nosso desafio é
colocar o combate à fome no centro da disputa eleitoral em nossa cidade. Se
avançamos no combate à fome nacionalmente com o retorno do presidente Lula,
essa ainda não é a realidade local.
O I Inquérito de
Insegurança Alimentar do Rio de Janeiro, publicado em junho, revela um quadro
assustador: a fome, identificada como insegurança alimentar grave, entre a
população carioca é quase o dobro daquela constatada a nível nacional. Em
números absolutos, em 2023, quase meio milhão de cariocas (488.709) vivenciou a
fome e mais de dois milhões de cariocas (2.043.492) conviveram com algum nível
de insegurança alimentar. Obviamente, isso se acentua de acordo com o bairro e
marcadores de raça, gênero e escolaridade. São os lares liderados por mulheres
negras que mais sofrem, sobretudo na zona norte. Outro dado alarmante: a
insegurança alimentar grave foi seis vezes maior entre casas em que o/a
responsável tinha trabalho informal, comparando com as residências cujo/a
responsável possui trabalho formal. A falta de acesso à água também se
relaciona com a fome: entre os lares marcados pela insegurança hídrica, apenas
30,3% estão em segurança alimentar e 27% estão em insegurança alimentar grave.
O Poder Executivo tem
algumas ferramentas que atuam nesse sentido, distribuídas entre várias
secretarias, mas precisamos de mais. Desde a pandemia, o MST aposta em uma
ferramenta que tem a solidariedade como princípio: as Cozinhas Populares. Essas
cozinhas combinam três dimensões: a) a distribuição de refeições preparadas com
alimentos saudáveis, lidando imediatamente com a fome; b) a geração de emprego
e renda para as pessoas diretamente envolvidas; c) e a organização popular, na
medida em que se torna um espaço de construção política da comunidade.
Uma das minhas
principais propostas é a ampliação do número de Cozinhas Comunitárias, a partir
da regularização de Cozinhas Populares promovidas por organizações territoriais
e subsídio para construção de novas cozinhas. Diferentemente dos restaurantes populares,
que são importantes e precisam ser revitalizados, as cozinhas são
descentralizadas, sendo mais acessíveis para os moradores de cada local.
As cozinhas, por si
só, não bastam. Precisamos da regulamentação da Lei Municipal 6691/2019, que
dispõe sobre a agricultura urbana; de apoio técnico e subsídio para agricultura
familiar, visando a ampliação do consumo desses alimentos em creches e escolas
municipais, de acordo com o PNAE; de feiras populares nas favelas, alterando
seu eixo de concentração geográfica; de transformação de terrenos baldios em
terrenos de produção agroecológica; e a promoção de viveiros e hortas populares
para produção de hortaliças para distribuição.
Uma candidatura do MST
tem a responsabilidade de ser firme no projeto de combate à fome e à
desigualdade em nosso país. Carrego o desafio de pautar alternativas ao modelo
de destruição do agronegócio, tão enraizado nos parlamentos pelo Brasil. Não é
à toa que 2024 marca uma virada de chave na ocupação dos Sem-Terra nas
instituições: não temos tempo a perder.
Fonte: Correio da
Cidadania/Le Monde
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