sexta-feira, 27 de setembro de 2024

A base estrutural das novas direitas

Para explicar o fenômeno das novas direitas, assim como a sua ascensão vertiginosa no cenário político contemporâneo, Rodrigo Nunes, num artigo de grande qualidade (Nunes, 2024), aponta para a existência e persistência de um “operador ideológico” em sua base; para que ocorresse, segundo ele, era preciso que o seu crescimento fosse impulsionado pelo “empreendedorismo”. A base do fenômeno social aqui, portanto, é uma disposição psicopolítica.

Para que a aliança tácita de classe constitutiva desse movimento fosse posta, era necessário, segundo ele, que “algumas imagens e palavras produzissem uma identificação”. Só essa mediação tornou possível que interesses tão diversos, desde aqueles dos trabalhadores informais, de setores das classes médias até dos capitalistas financeiros, fossem soldados politicamente.

Assim como o extremismo fascista, nos anos 20 e 30 do século passado, reunira indivíduos comuns – “filhos de uma sociedade liberal, competitiva e individualista, condicionados a manterem-se como unidades independentes” (Adorno, 2015, p. 158) –, os quais se sentiam impotente diante de uma realidade esmagadora, agora uma reunião de pequenos, médios e grandes empreendedores, movidos por um “otimismo cruel”, passou a se desenvolver como extremismo neoliberal.

Em ambos os casos barreiras estruturais ao sucesso dos indivíduos socializados como “sujeitos” econômicos se apresentam como barreiras existenciais, as quais são então manipuladas por extremismos de direita. Contudo, subsistem diferenças.

O extremismo fascista evolveu num momento em que se acirraram os conflitos imperialistas, no qual prevalecia o capital industrial já sob o domínio do capital financeiro, enquanto o segundo progrediu mais recentemente no capitalismo globalizado, sob hegemonia do imperialismo norte-americano, no qual passou a prevalecer – como se esclarecerá – a lógica do capital portador de juros e do capital fictício. Em artigo anterior, procurei distinguir esses dois momentos distinguindo o ordocapitalismo e o anarcocapitalismo (Prado, 2024-A)

No primeiro caso, note-se, o “operador ideológico” era distinto; consistia em um apelo à nacionalidade – princípio de igualdade abstrato e forma de unificação –, pois só assim era possível juntar indivíduos contrafeitos de diversas categorias sociais para formar uma massa que se projetava num líder totalitário. Os fascismos, como se sabe, surgem em potências industriais constrangidas que lutam para ampliar os seus domínios econômicos.

No segundo caso, os extremismos vem juntar indivíduos que se pensam como sujeitos dispostos a prosperar numa sociedade competitiva – posta e estabelecida já por meio de uma hegemonia imperialista global – e que se projetam em líderes arrivistas bem-sucedidos. O móvel psicológico aqui não é a realização coletiva por meio de um projeto posto pelo Estado, mas a obtenção de máxima liberdade econômica em um Estado policial que renunciou a qualquer forma de solidariedade.

A ubiquidade da “ideologia do empreendedorismo” nas últimas décadas tem diversas fontes, que vão desde o neoschumpeterianismo do teórico de gestão Peter Drucker até a generalização de “empreender” como praticamente sinônimo de toda ação humana por parte da escola austríaca de Ludwig von Mises e Friedrich von Hayek. Em países como o Brasil, “sua difusão desde os anos 1980 se deveu principalmente ao (…) domínio absoluto das ideias neoliberais no debate público (…), mas também pesaram muito a crescente penetração das igrejas evangélicas que pregam a chamada “teologia da prosperidade” e o boom da indústria da autoajuda e do coaching” (Nunes, 2024).

Numa perspectiva marxista heterodoxa, centrada de fato no conceito de ideologia levantado por György Lukács em Para uma ontologia do ser social, Medeiros e Lima escreveram também um texto bem relevante sobre esse tema (Medeiros e Lima, 2023). Apresentando uma conexão não apontada por Rodrigo Nunes, mostraram aí que existe uma afinidade entre a concepção de trabalho como atividade empreendedora e a concepção pressuposta de que o trabalhador pode e deve ser apreendido como capital humano.

Para eles, essas duas teorias, baseadas ambas numa “mesma visão de mundo conservadora e atomista”, deram forma a um modo de pensar socialmente validado que extrapolou o campo teórico em que nasceu, que se difundiu no capitalismo contemporâneo e se tornou senso comum.

Agora é preciso notar que, em perspectiva lukacsiana, esses dois autores entendem ideologia como sistema de ideias que tem a função de dirimir, ou seja, de obstruir o desenvolvimento dos conflitos sociais (em particular, os de classe) evitando que eles produzam transformações. Na base do fenômeno da ascensão das novas direitas, para eles, encontra-se a “ideologia empreendedora”; eis que ela tem a “possibilidade de gerar uma resposta pessoal (e, eventualmente, coletiva) a problemas cotidianos numa sociedade em que os indivíduos se opõem com sujeitos de diferentes classes, raças, gêneros, etnias etc.”.

Como essa concepção julga que “a função ideológica não depende do caráter de conhecimento das ideias” postas em circulação, ela difere – apontam os autores – da concepção marxista mais difundida segundo a qual ideologia é “pensamento falso socialmente necessário”.

Nessa perspectiva, esses dois autores condensam do seguinte modo o julgamento que fazem sobre o empreendedorismo: “O sucesso da internacional capitalista tem relação com o próprio poder do capital, que hoje domina de modo muito estreito a chamada indústria cultural, de formação e difusão simbólica, do jornalismo a todas as formas de arte. (…) a prática de trabalhadores e trabalhadoras (…) configura uma reação às condições brutais do capital que, em vez de obstá-las, as reforçam deliberadamente. A rigor, esse é justamente a função ideológica das teorias que aqui examinamos: elas são, em sua versão vulgarizada, formas de consciência destinadas a desarmar impulsos revolucionários ou mesmo reformistas (…) da classe trabalhadora”. (Medeiros e Lima, 2023, p. 51).

Uma crítica amigável desses dois textos precisa partir de uma compreensão de ideologia que não seja apenas superestrutural. Para apresentá-la, é preciso convir que as ideologias, enquanto modos de selar e ocultar as contradições, têm sempre uma base objetiva e que, a partir daí, elas se levantam como construções intelectuais quase-autônomas, que ganham força quando conseguem obter grande acolhimento na esfera pública.

A base objetiva das ideologias consiste, numa perspectiva bem marxiana, na aparência da prática social que, por isso mesmo, deve ser considerada como socialmente necessária. Enquanto formações que moram na cultura, ou seja, na superestrutura, as ideologias são produtos do entendimento que apreendem as relações externas entre os fenômenos, mas que não deixam de se valer também, para realizar esse fim instrumental, de elementos apenas imaginários, ou seja, falsos.[i]

Nesse sentido, por exemplo, tenha-se em mente as noções de homo oeconomicus, algo diversas entre si mesmas, que foram formalizadas nas diversas teorias econômicas (clássicas, neoclássicas, austríacas etc.). Considere-se, também, que elas estão assentadas em características presentes nos comportamentos dos indivíduos sociais que pululam na economia mercantil generalizada. Se são noções de um saber raciocinativo – e normativo –, elas têm uma base real na realidade social a que se referem.

Ora, esse produto “puramente intelectual da ciência, que pensa o homem como uma unidade abstrata, inserida num sistema científico” – segundo Karel Kosik – “(…) é um reflexo da real metamorfose do homem, produzida pelo capitalismo”. Não se está diante, portanto, nem de uma mera ideia livre flutuante nem de uma determinação antropológica geral, mas do produto de um sistema, qual seja ele, daquele que está nucleado no automatismo da relação de capital. Eis que “o homo oeconomicus” – explica esse autor – é o homem como parte desse sistema, como elemento funcional desse sistema e, como tal, deve estar provido das características fundamentais indispensáveis ao funcionamento desse sistema” (Kosik, 1969, p. 82-83).

Na verdade, como Karl Marx já explicara em O capital, o homem econômico é o personagem por excelência da esfera da circulação mercantil, dentro qual ocorrem as vendas e as compras de mercadorias, inclusive das vendas e das compras de força de trabalho. Desse modo, os seus atributos se figuram como naturais. E ele habita um mundo concorrencial que se denota como “um verdadeiro éden dos direitos naturais do homem”. Se os homens aparecem aí como iguais, livres e auto-interessados, o próprio sistema figura como um “reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham” (Marx, 2013, p. 185).

Na verdade, nesse trecho de O capital, Marx apresenta as contradições que movem os sujeitos assujeitados que se apresentam como homo oeconomicus. E elas são duas: uma delas se encontra no capitalista que se julga um empreendedor, mas é, na verdade, apenas personificação do capital; a outra está no trabalhador que fica obrigado a se comportar como livre contratante de sua força de trabalho, mas que é, na verdade, um elemento explorável ou não, peça possível da “grande máquina” da relação de capital. Tenha-se presente, ademais, que essas contradições estão postas tanto na condição objetiva quanto na subjetividade dos “sujeitos” em geral que “prosperam” no capitalismo.

“Ao abandonarmos essa esfera da circulação simples ou da troca de mercadorias, de onde o livre-cambista vulgaris extrai noções, conceitos e parâmetros para julgar a sociedade do capital e do trabalho assalariado, já pode-se perceber certa transformação, ao que parece, na fisionomia de nossas dramatis personae. O antigo possuidor de dinheiro se apresenta agora como capitalista, e o possuidor de força de trabalho, como seu trabalhador. O primeiro, com um ar de importância, confiante e ávido por negócios; o segundo, tímido e hesitante, como alguém que trouxe sua própria pele ao mercado e, agora, não tem mais nada a esperar além da… despela”. (Marx, 2013, p. 185).

Note-se, agora, que essas duas dramatis personae assim se apresentam na interface da produção e da circulação mercantil, que nada mais é do que a aparência do capitalismo industrial na pujança que adquirira em meados do século XIX e que podia ser exposto assim teoricamente. Sendo assim, como a condição de empreendedor pode ganhar generalidade no desenvolvimento deste modo de produção, apresentando-se como condição existencial e subjetiva tanto de capitalistas quanto de trabalhadores assalariados ou por conta própria?

Pode parecer uma lembrança inesperada, mas é preciso apresentá-la aqui enfaticamente: a possibilidade dessa ilusão foi explicada por Marx muito antes que a onda do empreendedorismo assomasse na história, o que, como foi visto, aconteceu apenas após os anos 70 do século XX. Para melhor compreendê-la, note-se, já de início, que tal possibilidade depende da posição do capital portador de juros como forma de sociabilidade inerente ao modo de produção capitalista.

Na seção V do Livro III de O capital, encontra o seguinte: “a forma de capital portador de juros é responsável pelo fato de que cada rendimento determinado e regular em dinheiro apareça como juros de algum capital – ou não”, isto é, como ganho associado a uma soma que rigorosamente não é capital. Se um montante de dinheiro é emprestado por um banco ou outra instituição financeira para uma empresa da esfera do capital industrial ou comercial, trata-se sim, realmente, de capital portador de juros – ao final de certo período haverá o refluxo do principal acrescido de juros e esse acréscimo – juros – responde por parte do mais-valor gerado na produção de mercadorias.

Mas se um montante é emprestado por qualquer instituição financeira ao Estado, a bancos, a consumidores, então se tem o que Marx denominou de capital fictício, que parece ser, mas não é de fato portador de juros. O que ocorre aqui é que o fluxo de pagamentos se afigura – sem ser em efetivo – um refluxo do principal acrescido de juros. Eis como ele próprio explica para os casos do empréstimo ao setor público e do usurário: “para o credor original, a parte dos impostos anuais que lhe cabe representa juros de seu capital, do mesmo modo que para o usurário a parte que lhe cabe do patrimônio do pródigo, embora em nenhum desses casos a soma de dinheiro emprestada tenha sido despendida como capital”.

Eis que capital, a rigor – e isso é muito importante –, é a relação de exploração da força de trabalho que se manifesta de modo reificado, sucessivamente, como dinheiro, meios de produção, forças de trabalho e mercadorias.

Desse modo, Marx explica também a ilusão “capital humano” que chama de insana, sem usar, no entanto, essa nomenclatura consagrada depois. “A insanidade da concepção atinge aqui” – diz – “seu ponto culminante” – e ela já aparecera nos escritos de Willian Petty no século XVII. “Em vez de explicar a valorização do capital pela exploração da força de trabalho, procede-se de modo inverso, elucidando a produtividade da força pela circunstância de que a própria força de trabalho é essa coisa mística que se chama capital portador de juros” (idem, p. 523).

Dito de outro modo, como o ganho salarial se apresenta como um fluxo possível de remuneração futura do trabalhador, ele é tomado figuradamente como se fosse juros, os quais são então capitalizados, também de modo místico, para formar o “capital humano”.

É assim, pois, que a força de trabalho e o trabalhador passam a ser pensados, respectivamente, como capital humano e como empresário de si mesmo. Posto isso, resta explicar por que só a partir dos anos 1980 esse tipo de concepção invadiu e tomou a esfera pública nos países capitalistas em geral. A razão está em que, com a ascensão do neoliberalismo,[ii] o capital portador de juros – real ou aparente, ou seja, capital fictício – se tornou finalmente a forma por excelência do capital. Ao fim e ao cabo de um curso que se iniciou já nos primórdios do capitalismo com a criação das sociedades por ações, o que Marx denominou de processo de socialização do capital chegou então ao seu ponto de cume no Ocidente (Prado, 2024-B).

Nesse processo centenário, o grande capital industrial e comercial se tornou domínio do capital financeiro e o capitalismo como um todo se tornou financeirizado (Maher e Aquanno, 2014, contam essa história; Prado, 2024, tentou sintetizá-la). A ideologia empreendedora, agora oportunista, difunde-se na sociedade como uma nova naturalidade do homem econômico; a própria esfera da política se torna um domínio em que prosperam empreendedores políticos, eles mesmos insanos e, por isso, suicidários.

E aqui é preciso ver que uma diferença crucial entre o capital industrial e o capital de finanças em geral. Se o primeiro engendra uma sociabilidade voltada à transformação coletiva do mundo e, por isso, propensa à solidariedade (mas também ao autoritarismo), o segundo favorece um individualismo extremo que confia cegamente na capacidade do sistema econômico de gerar benefícios, como diria Friedrich Hayek, espontaneamente, a ponto de cair no ecocídio para “ganhar” mais-vida.

Eis que a perspectiva da circulação, dos mercados, domina o pensamento desse autor. Ora, se o primeiro capital cria o empreendedor construtivista, o segundo produz o empreendedorismo oportunista. Quando o segundo predomina como forma do capital, a figura central deixa de ser o industrialista para ser substituída pelo aproveitador de oportunidades de ganho, ou seja, o rentista.

De uma perspectiva global, vê-se que o imperialismo norte-americano, principal beneficiário da mundialização do capital e da dominância financeira ocorridas após o fim da II Guerra Mundial, parece disposto a destruir o mundo para manter a sua hegemonia. As novas direitas que operam nesse mundo, de qualquer modo, avançam mesmo porque a esquerda, representante do velho proletariado, parece ter perdido o rumo e a esperança. A civilização aparece finalmente como barbárie e a humanidade parece caminhar para a extinção.

Como encontrar uma fresta na história que leva a outro caminho? Quem pode compor um novo proletariado? Como as vítimas das catástrofes do capitalismo financeirizado podem ser mobilizadas para criar um modo de sociabilidade, superando assim as contradições dilaceradoras do modo atualmente prevalecente?

 

Fonte: Por Eleutério F. S. Prado, em A Terra é Redonda

 

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