sábado, 28 de setembro de 2024

Queimadas isolam indígenas em Mato Grosso

Encurralados pelo fogo, indígenas do povo Xavante, em Mato Grosso, dizem que escaparam vivos por sorte. Quando as chamas se aproximaram das ocas e parecia não haver mais saída, um vento forte mudou a direção do incêndio. Todos sobreviveram.

A cena aconteceu há poucos dias na aldeia Wederã, na Terra Indígena (TI) Pimentel Barbosa. No local vivem os parentes de Mara Barreto Sinhosewawe Xavante, nomeada por seu povo para denunciar a situação e buscar ajuda.

"Não tem brigada para combater. Fomos quase queimados vivos e estamos abandonados à própria sorte”, diz Mara, representante da Associação Aliança dos Povos do Roncador, à DW.

Faz pelo menos 60 dias que os Xavante assistem à vegetação ser consumida. A TI Pimentel Barbosa é coberta pelo Cerrado, mas há registro de fogo em pelo menos 38 dos 80 territórios indígenas no estado, que também incluem a Floresta Amazônica e o Pantanal.

Já vulneráveis pela seca severa, muitas comunidades estão isoladas, com dificuldade para acessar alimentos e sem água potável. "Minha aldeia está bebendo água do córrego que está quase seco. Há muitos casos de disenteria”, afirma Mara.

<><> Campeão do fogo

Segundo estado do país com maior número de territórios indígenas oficialmente reconhecidos, onde vivem 44 povos, Mato Grosso também é o maior exportador de soja.

Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) indicam que o estado é o campeão em queimadas de setembro, com mais de 18 mil focos de calor.

O governador do estado, Mauro Mendes (União Brasil), chegou a insinuar em declarações à imprensa que  os indígenas são os responsáveis pela gravidade dos incêndios em suas terras. A fala foi recebida com repúdio pelas lideranças.

"Responsabilizar os povos indígenas de Mato Grosso pelas queimadas é uma afronta à nossa dignidade, moral e principalmente à nossa história. Somos os verdadeiros guardiões da terra, e, se não estivéssemos aqui, toda a riqueza do nosso Cerrado, Pantanal

e Amazônia Legal já teria sido convertida em pasto de gado”, rebateu o cacique Paulo Cipassé Xavante por meio de nota, apoiada por todos os povos que vivem no estado.

A DW questionou o governo de Mato Grosso a respeito da declaração, mas não recebeu uma resposta até o fim desta reportagem.

<><> Pedido de ajuda

Diante do cenário, a Defensoria Pública da União (DPU) pediu providências urgentes ao governo federal. Segundo uma análise prévia do órgão, não há equipes suficientes para enfrentar o fogo e as condições são precárias. Em agosto, o brigadista Uelliton Lopes dos Santos morreu enquanto tentava conter as chamas na TI Capoto Jarinã.

"A situação ainda é muito grave e nós entendemos que há necessidade de um esforço maior de mobilização”, afirma o defensor Renan Souto Mayor à DW.

A preocupação também é com os focos de incêndio próximos a áreas onde vivem indígenas isolados, como a TI Kawahiva do Rio Pardo, no município de Colniza. "O impacto nesses casos é ainda maior, porque não é possível falar com eles, avisar que está pegando fogo”, diz o defensor público.

Em resposta à DPU, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) informou que, dentre as medidas adotadas, está a recomposição de seu orçamento para contratar 3,9 mil brigadistas, aeronaves, combustível e equipamentos para combater os incêndios. Numa ação conjunta com outros ministérios, a pasta busca mais dinheiro para prevenir o fogo, fiscalizar e reprimir crimes ambientais.

"Considerando a situação de emergência climática que o Brasil enfrenta, o MMA também tem trabalhado com medidas igualmente emergenciais e extraordinárias e na implementação do Plano de Emergência Climática com elevado risco de incêndios florestais no Pantanal e Amazônia”, diz um trecho da resposta ao oficio da DPU.                                            

O início do fogo é, majoritariamente, provocado por ação humana. Em áreas recentemente desmatadas, as chamas aparecem na etapa seguinte do processo de retirada da floresta, pontua Vinicius Silgueiro, coordenador de inteligência territorial do Instituto Centro de Vida (ICV), baseado em Mato Grosso.

"Colniza, por exemplo, que lidera o ranking de desmatamento ilegal, também está entre os municípios com maior área queimada neste ano”, diz Silgueiro sobre a associação dos fenômenos.

Quando o fogo é ateado diretamente na floresta, ele causa uma degradação que facilita a retirada das árvores. "As chamas deixam a mata mais frágil para a abertura total da área vir depois”, complementa, lembrando que a seca extrema e falta de umidade no solo facilitam a propagação dos incêndios.

Ainda em Colniza, a Reserva Extrativista Guariba-Roosevelt, unidade de conservação estadual, é marcada pelo desmatamento, grilagem de terras e exploração ilegal. Em julho, a Força Nacional foi acionada para proteger indígenas e servidores da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) ameaçados por essas atividades clandestinas. Segundo o monitoramento do Inpe, focos de calor consomem pontos da Guariba-Roosevelt e propriedades privadas do entorno.

<><> A crise pós-fogo

Em vários lugares do território Xavante ainda é possível avistar o fogo destruindo o Cerrado. As chamas deixaram muita destruição por onde passaram, queimaram casas e a esperança dos indígenas é que chuva logo caia do céu.

Eliane Xunakalo, da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso, Fepoimt, diz que há territórios devastados e muita preocupação com a segurança alimentar, já que plantios inteiros foram carbonizados.

"Se a gente for olhar o setor agropecuário, eles terão subsídios para recomeçar ou passar por este momento. E nós? O que teremos de fato? O nos será oferecido para o enfrentamento da seca com nosso território queimado?”, questiona em conversa com a DW, listando a necessidade de sementes, insumos, comida, água e ferramentas.

 

•        Brigadistas lutam contra o fogo e por direitos

Às vezes Francisca Eloide, de 46 anos, olha para o fogo e se sente frustrada. O sentimento, no entanto, não a impede de seguir combatendo os incêndios. "E quando volto para casa com o dever cumprido, sinto um conforto por ter feito um trabalho legal, de salvar a floresta, a fauna, os indígenas, os quilombolas, as comunidades", afirmou a brigadista florestal.

Eloide é voluntária da Brigada de Alter, de Santarém (PA). Neste ano, com a seca histórica e os grandes incêndios, tem atuado arduamente. Em uma de suas últimas missões, no início de setembro, combateu o fogo por dez dias nas terras indígenas de Apiaká-Kayabi, Ytu, Tatuí e Nova Munduruku, em Juara (MT), a dois dias de viagem de sua base.

"Em todos os lugares que a gente passava tinha fumaça. Não tinha para onde correr nas aldeias. Dormia e acordava respirando fumaça. E acabei ficando com o pulmão bem ruim, cansada, rouca e com muita tosse e secreção. Vai levar alguns dias para me recuperar. Mas creio que logo vou ficar bem, pronta para o próximo combate", contou Eloide.

Os brigadistas estão na linha de frente do combate aos incêndios. Mas ao mesmo tempo em que salvam pessoas, florestas e animais, colocam em risco a própria saúde. E seus atos, muitas vezes heroicos, contrastam com condições de trabalho muitas vezes inadequadas e a falta de direitos trabalhistas no caso daqueles que são contratados temporariamente pelos governos federal, estaduais e municipais.

"É um dever nosso mostrar quem são esses brigadistas, que doam a vida para a proteção dos territórios", analisou a professora Kelly Polido Kaneshiro Olympio, do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). "São pessoas que não estão sendo vistas nem pela sociedade nem pelo sistema de saúde. E que estão totalmente desamparadas pela previdência".

<><> Mortes e riscos à saúde

Pelo menos 11 pessoas morreram combatendo o fogo desde agosto, quando recrudesceram os incêndios. Um dos casos mais emblemáticos foi o de Uellinton Lopes, de 39 anos, que trabalhava para o Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo), do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Ele combatia incêndios na Terra Indígena Capoto/Jarina, no Parque Nacional do Xingu, quando morreu carbonizado. Dias antes, havia exaltado a atividade em suas redes sociais. "Só nós sabemos a luta pelo meio ambiente. A luta dos brigadistas poucos sabem, e só Deus vê tudo”, escreveu.

A morte é um dos riscos da atividade, mas não o único. Segundo a professora Olympio, a atividade pode estar relacionada a doenças cardiovasculares, respiratórias, renais, osteomusculares, além de acidentes como queimaduras, cortes e picadas de animais peçonhentos. A fumaça dos incêndios também é reconhecidamente causadora de câncer.

De acordo com a professora da USP, hoje não é possível saber quais doenças e agravos estão relacionados ao trabalho do brigadista florestal. Embora a atividade esteja reconhecida na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) desde 2020, não há um código específico para esta profissão no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). "É urgente que tenha um código específico no sistema para a notificação de agravos ocorridos com brigadistas florestais", afirmou.

O grupo de pesquisa Expossoma e Saúde do Trabalhador (eXsat), coordenado por Olympio, tenta compreender os riscos que o brigadista passa. Após serem procurados pelo Ministério da Saúde, iniciaram uma pesquisa em Santarém, focado na Amazônia. O objetivo é que, no futuro, as informações ajudem a formar políticas públicas.

Quando retornou da missão de Mato Grosso, Eloide não recebeu atendimento médico. Ela acha que seria até mais importante ter um acompanhamento psicológico. "Foi uma situação apocalíptica. Os povos indígenas têm sofrido muito porque não é qualquer fumaça. É como se fosse um nevoeiro constante, que ficam respirando por meses."

Eloide sente-se realizada com os trabalhos voluntários, que faz há 16 anos. "O maior pagamento é a sensação de voltar para casa com o dever cumprido."

No entanto, apesar da satisfação pessoal relatada por muitos voluntários, a ideia de tornar a atividade uma profissão regulamentada ganha força, seja para garantir direitos aos trabalhadores, seja para tornar o combate aos incêndios mais eficiente.

<><> Profissão regulamentada

Neste mês de setembro, que deve representar o recorde de incêndios no ano, foram apresentados dois projetos na Câmara dos Deputados para criar e regulamentar a profissão de brigadista florestal. O deputado Weliton Prado (Solidariedade) e Célia Xakriabá (PSOL), ambos de Minas Gerais, protocolaram sugestões semelhantes.

Na justificativa do projeto, Prado afirmou que o trabalho precisa ser contínuo, com" conscientização, educação e prevenção, não só combate direto aos incêndios." Xakriabá destacou que "é necessário que os profissionais tenham acesso a assistência médica e psicológica, bem como a um seguro de vida que os ampare em casos de incidentes ou acidentes."

O presidente do Sindicato dos Bombeiros Civis do Distrito Federal (SindBombeiros), Felipe Araújo, disse ver "com bons olhos" as propostas. Ressalta, no entanto, a falta de temas específicos, como escala de trabalho, tempo de descanso e adicional de periculosidade, benefício pago às profissões perigosas. E alerta que as propostas podem demorar para ser aprovada. "O nosso projeto demorou 28 anos para virar lei".

Araújo se refere à lei 11.901, de 2019, que regulamentou a profissão do bombeiro civil. "Nós temos usado essa lei para dialogar com alguns órgãos que contratam brigadistas florestais", disse. Segundo ele, o Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos do Distrito Federal (Ibram) passou a pagar uma porcentagem de periculosidade após negociação com o SindBombeiros.

Também houve conversas com o Ibama em busca de direitos dos trabalhadores. Mas, embora a autarquia tenha se mostrado receptiva, as conversas não avançaram devido ao foco nos incêndios.

O Ibama e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que juntos contratam de forma temporária mais de três mil brigadistas, não responderam ao pedido de entrevistas para tratar dos assuntos relacionados à profissão.

Davi Ferreira, 35 anos, chefe de brigada contratado pelo Ibram, de Brasília, destaca que uma das dificuldades é a necessidade de passar por sucessivos processos seletivos – ele já foi aprovado em oito. "É frustrante. Não existe segurança trabalhista nenhuma. Não somos nem celetista e nem servidor público". De acordo com o trabalhador, que também é bombeiro civil, a importância da ocupação justifica sua atuação.

<><> Prevenção ficou prejudicada

O indígena Cleber Oliveira Martins Javaé, de 36 anos, é chefe de brigada na Ilha do Bananal, em Tocantins. Começou a atuar em 2013, no primeiro ano em que o Ibama criou as brigas indígenas. "Foi muito desafiador porque não tínhamos muitos recursos. Hoje temos mais tecnologia, como mapas e sistemas de navegação, que facilitam bastante a orientação."

Como o trabalho é temporário, Javaé teve outras ocupações até retornar neste ano à atividade. "Tenho uma paixão muito grande pela manutenção dos territórios e da flora. Não só de combater o fogo e prevenir, mas salvar animais, monitorar os lagos". A função de brigadista no Ibama dá direito a um salário mínimo, adicional de insalubridade, auxílio transporte e auxílio pré-escolar. Chefes de esquadrão e de brigada recebem mais. 

Como os contratos são temporários, Javaé disse que muitos brigadistas experientes deixam a função. O indígena ressalta ainda que o trabalho de prevenção fica prejudicado. "Foi um ano atípico, com muitos incêndios. Assim que fomos contratados, em junho, iniciaram os incêndios. Não tivemos tempo de fazer a parte de conscientização, da educação ambiental, da prevenção."

A situação que mais marcou Javaé mostra a importância dos brigadistas florestais não só para combater o fogo, mas para salvar os animais. Eles encontraram o Lago do Bananal praticamente vazio, com a pouca água misturada com lama. "Era uma cena de morte. Vários peixes, principalmente pirarucus, tentando sobreviver. O lago nunca tinha secado." A brigada então agiu.

Usaram lonas para forrar as caçambas das caminhonetes do Ibama, enchendo-as de água, como se fossem piscinas. Os brigadistas entraram no lago enlameado, cheio de jacarés, para pegar os peixes com as mãos, principalmente filhotes de pirarucus, levá-los até os veículos e transportá-los até um rio.

Quando terminou de contar a história, Javaé desculpou-se pela voz rouca. "Estou com dor de garganta."

 

Fonte: DW Brasil

 

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