A jornada do herói: O sobejo dopaminérgico
no jogo da atenção
A “jornada do herói”,
conceito desenvolvido por Joseph Campbell em sua obra O herói de mil faces,
apresenta-se como um construto arquetípico que descreve o ciclo comum a muitas
histórias mitológicas — quer no âmbito da literatura, quer no terreno da
produção cinematográfica.
Essa jornada se
desdobra em etapas previsíveis, nas quais o protagonista enfrenta desafios,
evolui internamente e retorna transformado. A estrutura básica pode ser
dividida em três grandes blocos: Partida, iniciação e retorno. No início, o
herói é chamado para deixar o mundo ordinário e adentrar um mundo
extraordinário, enfrentando provações que o moldam e testam seu caráter.
Durante a iniciação, o herói é exposto a seu maior desafio, experimentando uma
metamorfose profunda. Por fim, ele retorna ao mundo de origem, trazendo consigo
o conhecimento ou o poder adquirido.
Quando aplicada à
publicidade, a jornada do herói posiciona o consumidor como o protagonista da
história. A marca ou produto, por sua vez, assume o papel de mentor ou
ferramenta essencial que ajuda o herói (consumidor) a superar seus desafios e
alcançar seus objetivos. No contexto político, a jornada do herói é um recurso
poderoso que começa muitas vezes com o candidato sendo chamado para atender a
uma crise ou injustiça que afeta o eleitorado.
Essa é a fase de
chamado à aventura, na qual o político, muitas vezes descrito como alguém
comum, mas com habilidades ou virtudes excepcionais, decide “sair do conforto”
de sua vida privada para lutar pelos interesses da comunidade. Esse momento é
crucial para estabelecer o candidato como alguém que está disposto a sacrificar
algo pessoal para cumprir um propósito maior, similar ao herói que aceita seu
destino.
Outro conceito que
merece nossa atenção é o plot twist: uma virada narrativa inesperada que altera
a percepção do público sobre os eventos ou personagens. A revelação de uma
verdade oculta, a traição de um aliado ou a descoberta de que o vilão tem uma
motivação redentora são exemplos de plot twists que ressignificam a jornada. Já
as popularmente conhecidas mitadas ou invertidas — derivações contemporâneas do
plot twist — referem-se a um momento de extremo sucesso ou genialidade do
herói, no qual ele realiza uma ação surpreendente e admirável, frequentemente
em situações críticas.
Esse tipo de momento é
muitas vezes celebrado pelo público como um ato de grandeza que coroa a jornada
do protagonista, à medida que acrescenta dinamismo e surpresa à jornada do
herói, quebrando a linearidade tradicional do arco narrativo. É possível, inclusive,
transformar um cidadão medíocre em herói somente pela utilização consistente
dessas derivações. Ao desafiar as expectativas, as reviravoltas criam momentos
memoráveis e intensificam a conexão emocional com a história, mantendo o
público engajado.
Nos últimos anos, as
redes sociais e plataformas digitais têm experimentado uma mudança
significativa no comportamento dos usuários, com uma queda notável na audiência
e no engajamento. Segundo o relatório Digital 2023 da We Are Social, houve uma
diminuição de cerca de 5% no tempo médio gasto nas redes sociais, o que reflete
um esgotamento por parte dos usuários em relação ao excesso de conteúdo
disponível, especialmente vídeos longos em plataformas como Netflix, Amazon
Prime e Disney+.
A saturação causada
por maratonas de séries e filmes tem impactado diretamente a atenção dos
usuários, que, ao buscarem conteúdo mais rápido e menos comprometedor, passaram
a consumir vídeos curtos, como os reels no Instagram e os vídeos do TikTok.
Essas plataformas ajustaram seus algoritmos para priorizar conteúdos sucintos e
diversificados, que mantêm os usuários presos em ciclos de consumo contínuo.
Estudos sugerem que
esse formato curto funciona de maneira semelhante a um sistema de recompensa
variável, algo já explorado há tempos em outras áreas, como as máquinas
caça-níqueis, nas quais o reforço intermitente cria uma expectativa de
recompensa e mantém o usuário entretido.
De fato, o chamado
“jogo da atenção” nas redes sociais refere-se à intensa disputa entre
plataformas digitais, anunciantes e criadores de conteúdo pela atenção dos
usuários. No ambiente digital, a atenção é um recurso valioso e limitado, uma
vez que os seres humanos têm uma capacidade finita de focar em informações e
estímulos ao longo do tempo.
Os agentes, portanto,
competem para capturar e manter o maior tempo possível de engajamento dos
usuários, utilizando estratégias projetadas para estimular o interesse contínuo
e a interação. Esse jogo envolve a criação de algoritmos sofisticados que selecionam
e exibem conteúdo personalizados e altamente envolventes, ajustando-se aos
comportamentos e preferências de cada usuário.
O impacto desse tipo
de conteúdo no cérebro também está relacionado à liberação de dopamina, o
neurotransmissor associado à sensação de prazer e recompensa. Uma pesquisa
conduzida por Trevor Haynes da Harvard Medical School explica como o design de
aplicativos, como Instagram e TikTok, explora os circuitos de recompensa do
cérebro, nos quais estímulos novos e variáveis desencadeiam uma resposta
dopaminérgica que pode levar ao comportamento viciante. Os vídeos de breve
duração, promovidos por algoritmos ajustados, são capazes de prender a atenção
dos usuários em decorrência de sua capacidade de ativar o sistema
dopaminérgico, criando uma sensação de recompensa imediata.
A propósito, temos
assistido nas redes sociais a uma adaptação da estrutura da jornada do herói
para versões pocket, distribuídas em formato de vídeos curtos, como reels no
Instagram, por exemplo, com o objetivo de aumentar o engajamento de marcas,
produtos e — por que não? — políticos.
Envelopadas como
mitadas e invertidas, a produção e edição desses vídeos podem condensar
momentos de impacto e surpresa em um espaço de tempo muito comprimido, tornando
o conteúdo dinâmico e atraente para a audiência. A mitada pode ser o clímax de
cada reels, oferecendo ao público um momento de triunfo ou ação engenhosa do
herói, que surpreende e impressiona, gerando reações instantâneas como curtidas
e compartilhamentos. Esse tipo de momento é especialmente eficaz em vídeos
breves, já que os espectadores costumam buscar emoções rápidas e recompensas
visuais imediatas, regadas à dopamina.
A edição de vídeos
desempenha um papel crucial nesse processo. Para que os vídeos tenham o máximo
impacto, é necessário usar transições rápidas e fluídas, efeitos visuais e
sonoros que intensifiquem a narrativa. Música e efeitos de som podem amplificar
uma mitada, enquanto mudanças bruscas de ângulo ou cortes rápidos ajudam a
transmitir o impacto de uma invertida.
Além disso, o uso de
legendas pode aumentar a acessibilidade e garantir que a mensagem seja
compreendida rapidamente, mesmo sem som.
Numa disputa política, uma boa edição pode, por exemplo, favorecer um
candidato na resposta afiada em um debate ou uma ação simbólica que demonstra
sua habilidade ou compromisso com o povo. Esses momentos são amplificados pelas
mídias sociais e pela cobertura da imprensa, criando um efeito de heroísmo que
pode impulsionar a imagem do político e aumentar seu apoio popular. Uma equipe
expert em mídias sociais pode, inclusive, se utilizar de eventos públicos com a
intenção consciente de induzir roteiros para confecção e pós-edição destes
vídeos curtos.
A produção de pockets
campbellianos associada ao estimulo dopaminérgico gerado por vídeos curtos
revela uma convergência eficaz entre narrativas épicas condensadas e o
funcionamento dos sistemas de recompensa cerebral, atualmente impulsionados
pelas plataformas de redes sociais. Em termos simplórios, os algoritmos
turbinam — de forma orgânica, isto é, sem custos — a divulgação e distribuição
desse tipo de conteúdo, aumentando seu alcance e capilaridade: os algoritmos
anabolizam gratuitamente o herói em cada novo reels.
A estrutura
condensada, em que mitadas e invertidas surgem como os momentos de maior
impacto retém a atenção do espectador e potencializa a liberação de dopamina ao
proporcionar sucessivos momentos de surpresa e triunfo. Essa abordagem, ao
alinhar-se com o comportamento atual de consumo digital, no qual usuários
procuram por recompensas rápidas e narrativas concisas, cria um ciclo de
engajamento no qual o público volta repetidamente a esses vídeos em busca de
novas experiências.
Obter esse mesmo
efeito, sem passar pelo mecanismo dopaminérgico envolve custos publicitários
que inviabilizam a distribuição do conteúdo. Em outras palavras, sem mitadas e
invertidas não há distribuição gratuita pelos algoritmos; é necessário investir
muito dinheiro para impulsionar um conteúdo e o retorno do investimento pode
não se justificar.
Convém mencionar que a
saúde mental da população brasileira é um tema que vem ganhando cada vez mais
atenção nos últimos anos, principalmente devido ao aumento dos casos de
transtornos como depressão, ansiedade e estresse. De acordo com a Organização
Mundial da Saúde (OMS), o Brasil tem uma das maiores taxas de depressão e
ansiedade no mundo, refletindo um cenário preocupante em termos de saúde
pública.
A natureza do “jogo da
atenção” e a sobeja dopaminérgica tem implicações profundas para a saúde mental
e o comportamento dos usuários. O foco incessante em capturar a atenção a
qualquer custo pode levar a uma sobrecarga de estímulos, promovendo ansiedade,
distração e dependência digital. Um batalhão que anseia pelo próximo reels. O
ciclo constante de busca por novidades e recompensas nas redes sociais gera um
estado de vigilância mental, dificultando o relaxamento e prejudicando a
capacidade de focar em tarefas mais prolongadas ou complexas.
Ao criar expectativas
de gratificação rápida e imediata, o excesso de dopamina reduz a capacidade de
concentração em atividades mais prolongadas e significativas, o que gera
frustração e sensação de vazio. Esse jogo pode ser interessante para
influencers e plataformas de social media, mas tem sido cada vez mais oneroso à
Saúde Pública.
Fonte: Por Tarcísio
Peres, em A Terra é Redonda
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