segunda-feira, 30 de setembro de 2024

A jornada do herói: O sobejo dopaminérgico no jogo da atenção

A “jornada do herói”, conceito desenvolvido por Joseph Campbell em sua obra O herói de mil faces, apresenta-se como um construto arquetípico que descreve o ciclo comum a muitas histórias mitológicas — quer no âmbito da literatura, quer no terreno da produção cinematográfica.

Essa jornada se desdobra em etapas previsíveis, nas quais o protagonista enfrenta desafios, evolui internamente e retorna transformado. A estrutura básica pode ser dividida em três grandes blocos: Partida, iniciação e retorno. No início, o herói é chamado para deixar o mundo ordinário e adentrar um mundo extraordinário, enfrentando provações que o moldam e testam seu caráter. Durante a iniciação, o herói é exposto a seu maior desafio, experimentando uma metamorfose profunda. Por fim, ele retorna ao mundo de origem, trazendo consigo o conhecimento ou o poder adquirido.

Quando aplicada à publicidade, a jornada do herói posiciona o consumidor como o protagonista da história. A marca ou produto, por sua vez, assume o papel de mentor ou ferramenta essencial que ajuda o herói (consumidor) a superar seus desafios e alcançar seus objetivos. No contexto político, a jornada do herói é um recurso poderoso que começa muitas vezes com o candidato sendo chamado para atender a uma crise ou injustiça que afeta o eleitorado.

Essa é a fase de chamado à aventura, na qual o político, muitas vezes descrito como alguém comum, mas com habilidades ou virtudes excepcionais, decide “sair do conforto” de sua vida privada para lutar pelos interesses da comunidade. Esse momento é crucial para estabelecer o candidato como alguém que está disposto a sacrificar algo pessoal para cumprir um propósito maior, similar ao herói que aceita seu destino.

Outro conceito que merece nossa atenção é o plot twist: uma virada narrativa inesperada que altera a percepção do público sobre os eventos ou personagens. A revelação de uma verdade oculta, a traição de um aliado ou a descoberta de que o vilão tem uma motivação redentora são exemplos de plot twists que ressignificam a jornada. Já as popularmente conhecidas mitadas ou invertidas — derivações contemporâneas do plot twist — referem-se a um momento de extremo sucesso ou genialidade do herói, no qual ele realiza uma ação surpreendente e admirável, frequentemente em situações críticas.

Esse tipo de momento é muitas vezes celebrado pelo público como um ato de grandeza que coroa a jornada do protagonista, à medida que acrescenta dinamismo e surpresa à jornada do herói, quebrando a linearidade tradicional do arco narrativo. É possível, inclusive, transformar um cidadão medíocre em herói somente pela utilização consistente dessas derivações. Ao desafiar as expectativas, as reviravoltas criam momentos memoráveis e intensificam a conexão emocional com a história, mantendo o público engajado.

Nos últimos anos, as redes sociais e plataformas digitais têm experimentado uma mudança significativa no comportamento dos usuários, com uma queda notável na audiência e no engajamento. Segundo o relatório Digital 2023 da We Are Social, houve uma diminuição de cerca de 5% no tempo médio gasto nas redes sociais, o que reflete um esgotamento por parte dos usuários em relação ao excesso de conteúdo disponível, especialmente vídeos longos em plataformas como Netflix, Amazon Prime e Disney+.

A saturação causada por maratonas de séries e filmes tem impactado diretamente a atenção dos usuários, que, ao buscarem conteúdo mais rápido e menos comprometedor, passaram a consumir vídeos curtos, como os reels no Instagram e os vídeos do TikTok. Essas plataformas ajustaram seus algoritmos para priorizar conteúdos sucintos e diversificados, que mantêm os usuários presos em ciclos de consumo contínuo.

Estudos sugerem que esse formato curto funciona de maneira semelhante a um sistema de recompensa variável, algo já explorado há tempos em outras áreas, como as máquinas caça-níqueis, nas quais o reforço intermitente cria uma expectativa de recompensa e mantém o usuário entretido.

De fato, o chamado “jogo da atenção” nas redes sociais refere-se à intensa disputa entre plataformas digitais, anunciantes e criadores de conteúdo pela atenção dos usuários. No ambiente digital, a atenção é um recurso valioso e limitado, uma vez que os seres humanos têm uma capacidade finita de focar em informações e estímulos ao longo do tempo.

Os agentes, portanto, competem para capturar e manter o maior tempo possível de engajamento dos usuários, utilizando estratégias projetadas para estimular o interesse contínuo e a interação. Esse jogo envolve a criação de algoritmos sofisticados que selecionam e exibem conteúdo personalizados e altamente envolventes, ajustando-se aos comportamentos e preferências de cada usuário.

O impacto desse tipo de conteúdo no cérebro também está relacionado à liberação de dopamina, o neurotransmissor associado à sensação de prazer e recompensa. Uma pesquisa conduzida por Trevor Haynes da Harvard Medical School explica como o design de aplicativos, como Instagram e TikTok, explora os circuitos de recompensa do cérebro, nos quais estímulos novos e variáveis desencadeiam uma resposta dopaminérgica que pode levar ao comportamento viciante. Os vídeos de breve duração, promovidos por algoritmos ajustados, são capazes de prender a atenção dos usuários em decorrência de sua capacidade de ativar o sistema dopaminérgico, criando uma sensação de recompensa imediata.

A propósito, temos assistido nas redes sociais a uma adaptação da estrutura da jornada do herói para versões pocket, distribuídas em formato de vídeos curtos, como reels no Instagram, por exemplo, com o objetivo de aumentar o engajamento de marcas, produtos e — por que não? — políticos.

Envelopadas como mitadas e invertidas, a produção e edição desses vídeos podem condensar momentos de impacto e surpresa em um espaço de tempo muito comprimido, tornando o conteúdo dinâmico e atraente para a audiência. A mitada pode ser o clímax de cada reels, oferecendo ao público um momento de triunfo ou ação engenhosa do herói, que surpreende e impressiona, gerando reações instantâneas como curtidas e compartilhamentos. Esse tipo de momento é especialmente eficaz em vídeos breves, já que os espectadores costumam buscar emoções rápidas e recompensas visuais imediatas, regadas à dopamina.

A edição de vídeos desempenha um papel crucial nesse processo. Para que os vídeos tenham o máximo impacto, é necessário usar transições rápidas e fluídas, efeitos visuais e sonoros que intensifiquem a narrativa. Música e efeitos de som podem amplificar uma mitada, enquanto mudanças bruscas de ângulo ou cortes rápidos ajudam a transmitir o impacto de uma invertida.

Além disso, o uso de legendas pode aumentar a acessibilidade e garantir que a mensagem seja compreendida rapidamente, mesmo sem som.  Numa disputa política, uma boa edição pode, por exemplo, favorecer um candidato na resposta afiada em um debate ou uma ação simbólica que demonstra sua habilidade ou compromisso com o povo. Esses momentos são amplificados pelas mídias sociais e pela cobertura da imprensa, criando um efeito de heroísmo que pode impulsionar a imagem do político e aumentar seu apoio popular. Uma equipe expert em mídias sociais pode, inclusive, se utilizar de eventos públicos com a intenção consciente de induzir roteiros para confecção e pós-edição destes vídeos curtos.

A produção de pockets campbellianos associada ao estimulo dopaminérgico gerado por vídeos curtos revela uma convergência eficaz entre narrativas épicas condensadas e o funcionamento dos sistemas de recompensa cerebral, atualmente impulsionados pelas plataformas de redes sociais. Em termos simplórios, os algoritmos turbinam — de forma orgânica, isto é, sem custos — a divulgação e distribuição desse tipo de conteúdo, aumentando seu alcance e capilaridade: os algoritmos anabolizam gratuitamente o herói em cada novo reels.

A estrutura condensada, em que mitadas e invertidas surgem como os momentos de maior impacto retém a atenção do espectador e potencializa a liberação de dopamina ao proporcionar sucessivos momentos de surpresa e triunfo. Essa abordagem, ao alinhar-se com o comportamento atual de consumo digital, no qual usuários procuram por recompensas rápidas e narrativas concisas, cria um ciclo de engajamento no qual o público volta repetidamente a esses vídeos em busca de novas experiências.

Obter esse mesmo efeito, sem passar pelo mecanismo dopaminérgico envolve custos publicitários que inviabilizam a distribuição do conteúdo. Em outras palavras, sem mitadas e invertidas não há distribuição gratuita pelos algoritmos; é necessário investir muito dinheiro para impulsionar um conteúdo e o retorno do investimento pode não se justificar.

Convém mencionar que a saúde mental da população brasileira é um tema que vem ganhando cada vez mais atenção nos últimos anos, principalmente devido ao aumento dos casos de transtornos como depressão, ansiedade e estresse. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil tem uma das maiores taxas de depressão e ansiedade no mundo, refletindo um cenário preocupante em termos de saúde pública.

A natureza do “jogo da atenção” e a sobeja dopaminérgica tem implicações profundas para a saúde mental e o comportamento dos usuários. O foco incessante em capturar a atenção a qualquer custo pode levar a uma sobrecarga de estímulos, promovendo ansiedade, distração e dependência digital. Um batalhão que anseia pelo próximo reels. O ciclo constante de busca por novidades e recompensas nas redes sociais gera um estado de vigilância mental, dificultando o relaxamento e prejudicando a capacidade de focar em tarefas mais prolongadas ou complexas.

Ao criar expectativas de gratificação rápida e imediata, o excesso de dopamina reduz a capacidade de concentração em atividades mais prolongadas e significativas, o que gera frustração e sensação de vazio. Esse jogo pode ser interessante para influencers e plataformas de social media, mas tem sido cada vez mais oneroso à Saúde Pública.

 

Fonte: Por Tarcísio Peres, em A Terra é Redonda

 

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