A importância das cotas raciais na ocupação
de espaços no Judiciário
As cotas raciais,
implementadas inicialmente em universidades e gradualmente expandidas para
outros setores, têm se mostrado uma importante política de ação afirmativa no
Brasil. No contexto do Judiciário, essa medida se torna especialmente
relevante, considerando o histórico de exclusão racial e a sub-representação de
pessoas negras em cargos de destaque no sistema de justiça.
O Brasil, apesar de
sua diversidade étnica e cultural, carrega uma profunda herança colonial que
perpetua desigualdades sociais, inclusive no campo do Direito. Embora o país
tenha avançado em diversas áreas, ainda são visíveis as barreiras que impedem a
plena inserção de pessoas negras – compreendidas como pessoas pretas e pardas –
em espaços de poder e decisão. No Poder Judiciário, onde decisões fundamentais
para a sociedade são tomadas, a presença de magistrados e magistradas,
promotores e promotoras de justiça, bem como advogados e advogadas negras,
ainda é limitada. Esse cenário precisa ser transformado para que o Judiciário
possa espelhar a diversidade da população brasileira e promover a justiça de
forma mais equitativa.
A implementação de
cotas raciais no Judiciário, seja em concursos públicos bem como em programas
de incentivo à promoção na carreira da magistratura e Ministério Público, visa
corrigir essas disparidades históricas e proporcionar uma maior equidade no
acesso aos mais diferentes cargos. A previsão de cotas raciais instituídas pelo
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil para as composições das
chapas eleitorais em todas as seccionais também fortalece a participação de
advogados e advogadas negras nos espaços de decisão da advocacia, contribuindo
para a pluralidade dentro do sistema de Justiça
Esse processo não deve
ser visto como uma concessão, mas como uma medida de justiça histórica, que
reconhece as barreiras que têm sido impostas a gerações de pessoas negras. Além
disso, a presença de mais profissionais negras e negros no Judiciário promove
uma maior diversidade de perspectivas na tomada de decisões. A vivência e a
compreensão das desigualdades sociorraciais podem influenciar positivamente o
julgamento de casos que envolvem questões relacionadas à pluralidade de nossa
sociedade, inclusive casos envolvendo abordagens raciais ou de discriminação,
trazendo uma visão mais próxima da realidade enfrentada por grande parte da
população brasileira, composta em sua maioria por pessoas negras.
Em alinhamento com o
compromisso do Poder Judiciário pela equidade racial, destaca-se o Pacto pela
Equidade Racial no Judiciário, que visa fomentar a representatividade racial na
magistratura, além de garantir um ambiente de trabalho mais inclusivo e diverso.
A instituição de Grupo de Trabalho para elaboração do Protocolo de Julgamento
com Perspectiva Racial, instituído pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), é
outro marco nesse processo, pois visa orientar magistrados e magistradas para
considerar o impacto do racismo estrutural nas decisões judiciais. Essas
iniciativas refletem a necessidade de um Judiciário mais atento à realidade de
desigualdade racial e comprometido com a justiça social.
A democracia racial,
entendida como a plena inclusão de pessoas de diferentes identidades raciais em
todos os espaços de poder e influência, só será possível quando políticas como
as cotas raciais forem amplamente aplicadas e defendidas. O Poder Judiciário,
como uma das instituições mais importantes na defesa da justiça e dos direitos
humanos, deve ser um espelho da diversidade da sociedade que serve. Portanto,
as cotas raciais são uma ferramenta imprescindível para garantir que essa
diversidade seja representada de forma justa e equilibrada.
As cotas raciais se
alinham ao princípio da igualdade previsto na Constituição Federal do Brasil é
um tema de grande relevância. O artigo 5º da Constituição assegura que “todos
são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, mas essa igualdade
deve ser compreendida de forma material e substancial, buscando garantir
oportunidades equitativas para todas as pessoas, independentemente de sua
identidade racial.
Sendo assim, as cotas
raciais são uma política de ação afirmativa que busca corrigir desigualdades
estruturais decorrentes do racismo e da exclusão social enfrentada por
populações negras ao longo da história do Brasil. Em sua essência, elas têm
como objetivo equilibrar o acesso a espaços de poder, educação e emprego,
promovendo uma distribuição mais justa de oportunidades. Nesse sentido, as
cotas raciais não se contrapõem ao princípio da igualdade, mas, ao contrário,
possibilitam corrigir distorções históricas com o objetivo de alcançar uma
equidade efetiva.
O Supremo Tribunal
Federal (STF), em diversas ocasiões, já se pronunciou a favor da
constitucionalidade das cotas raciais. Em uma decisão de 2012, no julgamento da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, o STF entendeu
que as cotas raciais em universidades públicas não violam o princípio da
igualdade, mas constituem um mecanismo legítimo de combate às disparidades
raciais no país. O tribunal destacou que a igualdade material, prevista no
artigo 3º da Constituição, implica a promoção de políticas públicas voltadas
para a redução das desigualdades sociais e regionais, entre elas as de natureza
racial.
Portanto, o princípio
da igualdade na Constituição Federal não pode ser interpretado de forma
restrita, ignorando as desigualdades históricas que afetam certos grupos. As
cotas raciais representam uma ferramenta que visa concretizar a igualdade
substancial, permitindo que pessoas negras, que historicamente foram
marginalizadas e excluídas, tenham melhores condições de competir em pé de
igualdade. Ademais, essas políticas são temporárias, ou seja, sua existência
está atrelada à necessidade de correção de desigualdades persistentes. Uma vez
que essas desigualdades sejam efetivamente reduzidas, a política de cotas
poderá ser revista. Entretanto, até que esse cenário de equidade plena seja
alcançado, as cotas raciais continuam sendo uma medida constitucional e
imprescindível para a promoção da justiça social.
As cotas raciais no
Poder Judiciário não são apenas uma política de reparação, são sementes de
esperança plantadas para uma efetiva transformação. Elas não apenas corrigem as
injustiças do passado, mas também abrem caminhos para um futuro em que todas as
vozes possam ecoar com igualdade de oportunidade. Em cada decisão tomada por
magistrados e magistradas negras, em cada julgamento pautado pela perspectiva
racial, reforçamos a certeza de que a Justiça deve estar atenta à diversidade e
à complexidade de uma sociedade que clama por equidade.
Assim, a ocupação de
espaços no Poder Judiciário por pessoas negras, por meio das cotas raciais, é
um movimento de coragem, competência e compromisso. Não se trata apenas de
preencher assentos, mas de transformar consciências, de garantir que o
Judiciário caminhe lado a lado com o povo que ele serve, refletindo suas cores,
suas histórias e suas lutas.
E, nesse horizonte, o
Poder Judiciário tem a oportunidade única de não apenas acompanhar a evolução
da sociedade, mas de ser agente dessa mudança, fazendo da equidade racial um
pilar de sua atuação. Pois, em um país como o nosso, a justiça só será plena quando
todas as pessoas puderem reconhecer nela um reflexo da sua própria dignidade.
Fonte: Por Ana Paula
Azevêdo e Paulo Arthur Monteiro, no Marco Zero
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