Sim, o “agro” é o vilão do colapso
climático
Enquanto a fumaça não
irrita os olhos, a garganta e os pulmões de crianças a idosos das zonas
metropolitanas na ou próximas da costa brasileira parece que o fogo que devora
milhões de hectares da vegetação de vários biomas não acontece neste país e sim
em outro continente ou outro planeta.
Estamos em plena crise
ambiental e nem o governo, o Congresso, a imprensa e os candidatos ao próximo
pleito municipal estão sensibilizados com a extrema gravidade da situação. Foi
preciso que a cidade de São Paulo fosse classificada em primeiro lugar entre
120 do planeta com a pior qualidade do ar durante dias seguidos para que
houvesse alguma reação, mesmo assim, ninguém (ou quase), fora do círculo
estreito dos ambientalistas e cientistas está denunciando as implicações do mar
de chamas para o futuro próximo do país e muito menos apontando as
responsabilidades.
As queimadas e
desmatamento são algo corriqueiro e crescente no Brasil desde que os militares
resolveram “integrar para não a entregar” a Amazônia, desde os anos 70 do
século passado. Foram 200 milhões de hectares desmatados e queimados nos
últimos 40 anos, desde que a ocupação das “novas fronteiras agrícolas” se
acelerou. 73 milhões destes hectares se localizam na Amazônia.
Em momentos de maiores
incêndios cientistas e ambientalistas gritam, alguns deputados discursam,
governos tergiversam e a imprensa especula. A opinião pública continua
ignorando as causas e consequências destes fatos assustadores e dormindo em
berço esplêndido, embora a lua e as estrelas (e até o sol) fiquem apagados ou
opacos por um tempo pela fumaça.
Comecemos pelos
impactos deste prolongado processo de destruição. Queimadas e desmatamento
estão provocando uma mudança climática no Brasil, mais acelerada do que na
maior parte do planeta. As ondas de calor estão ocorrendo em todo o mundo,
devido ao aquecimento global para o qual as emissões de gases de efeito estufa
e redução da captura de carbono provocadas pelo nosso desmatamento e queimadas
contribuem significativamente.
Somos o sexto maior
emissor de CO2, e o nosso aporte para a destruição do planeta provém
principalmente das queimadas e desmatamento. Mas o primeiro impacto deste
aquecimento é aqui mesmo e mais intenso do que em outras partes do mundo.
Enquanto no resto do
planeta o aumento das temperaturas médias está batendo os fatídicos 1,5º
Celsius este ano, prevê-se que já em 2025 a Amazônia vai registrar um aumento
de 2,5º C. Estes números parecem coisa pouca para os leigos, mas eles
significam máximas de temperatura superando os 40º C com muita frequência ao
longo do ano e não apenas nos meses de verão. Para quem não vive em ambientes
controlados pelo ar refrigerado isto significa mais do que um incomodo, mas uma
ameaça concreta para a saúde, sobretudo para crianças, idosos e trabalhadores
em espaços abertos.
Em quase todo o país a
previsão é de aumentos acima da média mundial: mais 2,5º C no Nordeste, mais 2º
C no Centro-Oeste e mais 1,5º C no Sudeste. Apenas no Sul o aumento previsto
(1º C) está abaixo da média mundial.
O segundo efeito grave
do processo de desmatamento e queimadas é a queda no volume das chuvas e talvez
ainda mais grave, na sua grande irregularidade. Como vimos este ano, Porto
Alegre foi afogada em um ano em que o resto do país vive uma seca prolongada
por dois anos consecutivos, sem perspectiva de alívio na próxima estação
chuvosa.
As previsões para o
ano que vem indicam reduções dos índices médios de precipitações de 20%, na
Amazônia, 25%, no Nordeste, 15% no Centro-Oeste, 10% no Sudeste. No Sul as
precipitações crescem 5%.
O sistema dos “rios
voadores” que irrigam o Sul, Sudeste e Centro-Oeste com umidade produzida pela
evapotranspiração da floresta amazônica está sendo desequilibrado pela
destruição do bioma. As regiões que concentram 80% da nossa produção agrícola
(quase totalmente dependente de água de chuva) estão sujeitas a perdas de 10 a
30% da produção, dependendo da cultura e da região. O impacto sobre a economia
será enorme, tanto na balança comercial como no preço dos alimentos. A fome,
problema mal resolvido no Brasil mesmo em períodos menos ambientalmente
desfavoráveis, vai afetar muito mais gente do que a que padece hoje.
O desequilíbrio
climático, com menos chuvas, temperaturas mais altas e menor umidade do ar, já
está provocando a redução da vazão dos nossos rios, sendo que o mais afetado é
o São Francisco, com 60% de vazão reduzida nos últimos 30 anos. Os efeitos
aparecem no abastecimento de várias cidades, inclusive com algumas já em
racionamento e outras com a piora da qualidade da água.
A redução na geração
de energia elétrica já é elevada em 9 usinas, cinco delas no São Francisco
(Sobradinho, Apolônio Sales, Paulo Afonso, Luiz Gonzaga e Xingó). Todo mundo
vai sentir no bolso o custo das bandeiras vermelhas do Operador Nacional do
Sistema que vai acionar as termoelétricas, aumentando a nossa contribuição para
o uso de combustíveis fósseis com o consequente aumento das emissões de CO2.
O ar irrespirável em
São Paulo dá manchete de jornal nas metrópoles, mas as cidades do norte e
centro-oeste já são afetadas ano a ano há muito tempo. E é bom ir se preparando
para uma repetição cada vez mais frequente deste “mau tempo” daqui para frente.
• E quem são os responsáveis por este
estado de coisas?
Segundo a maioria dos
jornais e comentaristas das televisões a causa mais citada é o “aquecimento
global”, sem que se aprofunde quem são os responsáveis por este fenômeno.
Pode-se dizer que há, na imprensa brasileira, um passo adiante na compreensão
do problema pois, pelo menos, não se nega o aquecimento global. Mas para muita
gente, este é um fenômeno natural, independente do fator humano. Entre
evangélicos é comum uma posição resignada do tipo “é a vontade de Deus”, ou
ainda “Deus nos pune por nossos pecados”. Nada mais paralisante do ponto de
vista da necessidade de se fazer alguma coisa.
No Congresso, mas
também nas Assembleias Legislativas, no executivo federal, mas também nos
Estaduais e nas prefeituras e Câmaras Municipais, prevalece uma paralisia e um
descaso com a catástrofe que nos assola agora e nos ameaça no futuro, a não ser
para pedir dinheiro federal para medidas paliativas.
A poderosa bancada
ruralista não dá um pio para discutir a crise, a não ser para pedir verbas
compensatórias para as perdas do agronegócio. Pior do que isso, os ilustres
parlamentares têm engatilhados 20 projetos de lei desmontando a nossa já muito
esburacada e ignorada legislação ambiental. É a “boiada passando”, tal como nos
tempos de Bolsonaro e seu criminoso ministro do Meio Ambiente, Ricardo Sales.
Dentre as avaliações
mais frequentes escutadas nas TVs, aparece o conceito do “agronegócio bom”,
aquele da propaganda (“agro é tec…”). Segundo vários comentaristas, há um setor
“moderno”, “sustentável” e “amigo do meio ambiente” e ele tem sido chamado a se
manifestar por mais de um âncora de programas de televisão. Não se aprofunda
quem seria, por oposição a este setor, o agronegócio “mau”, o predador do meio
ambiente. Seria ele o responsável pelas queimadas e desmatamentos? Ninguém diz
isso com todas as letras, fica subentendido na maior parte dos casos.
Alguns números podem
nos ajudar a pensar sobre este nosso agronegócio. As propriedades com mais de
mil hectares somam 51.203, segundo o censo de 2017, e ocupam 167 milhões de
hectares. Mas o nível de concentração de terras é ainda mais espantoso: apenas 2.450
proprietários rurais com áreas superiores a dez mil hectares ocupam 51,6
milhões de hectares! O primeiro grupo dos maiorais do agronegócio representa
apenas 1% do total de produtores rurais, patronais ou familiares. O segundo
representa 0,05% do total de produtores. Em termos de localização, perto de 75%
destes grandes produtores do agronegócio estão no Sudeste, Sul e Centro-Oeste.
São as grandes lavouras de soja, milho, cana de açúcar, café, laranja, algodão.
Na Amazônia e no Cerrado encontram-se os maiores criadores de gado, com perto
de 65% do rebanho bovino nacional.
O agronegócio se
apresenta ultra concentrado em termos de propriedade de terras, mas esta
concentração é ainda maior em termos de capital e de valor da produção. Apenas
25 mil destes superprodutores são responsáveis por 60% do valor básico da
produção (VBP) agropecuária. Esta concentração de poder econômico se reflete em
concentração de poder político.
A elite econômica do
agronegócio domina as entidades do setor, inclusive a Confederação Nacional da
Agricultura, mais convencional, e a Associação Brasileira do Agronegócio, mais
recente e dinâmica. Este poder econômico é utilizado para financiar campanhas
de publicidade de grande impacto e, sobretudo, eleger a maior bancada temática
do congresso nacional: a bancada ruralista. Com Bolsonaro, o poder executivo
tornou-se uma espécie de apêndice dos think thanks do lobby do agronegócio,
adotando toda a agenda do setor.
Lembremos que o
agronegócio não é apenas o setor primário, composto de fazendeiros e criadores,
mas inclui as indústrias de insumos (agrotóxicos, sementes, fertilizantes e
maquinário) e de processamento e os serviços correlatos. Há poderosos lobbies
como as associações dos criadores de gado zebu ou de nelore, ou a Aprosoja,
Abiove, etc. Mas algumas grandes empresas têm papel destacado, entre elas os
grandes frigoríficos, sobretudo a JBS, maior processadora de carnes do mundo. E
são eles que definem as políticas para os biomas que estão queimando há meses.
Tanto os criadores de
gado como os produtores de soja e algodão, na Amazônia e no Cerrado, se
beneficiam do processo de grilagem que acompanha a ocupação destes territórios.
É a terra mais barata do mundo fazendo a nossa carne ser um dos produtos do
agronegócio mais competitivos no mercado internacional. As terras griladas,
quase todas de propriedade da União, não custam nada aos ocupantes desde longa
data. Forjam-se documentos para “legalizar” as vendas das terras desmatadas e
queimadas ilegalmente e, de tempos em tempos, sucessivos governos anistiam
estes crimes. Criadores de gado compram as terras e as exploram até o bagaço,
vendendo os bois para o “agronegócio bom”, para engorda em áreas não desmatadas
recentemente. E os frigoríficos, o setor mais poderoso do agronegócio
brasileiro, compram boi barato e exportam ou vendem a carne para o mercado
interno, tudo devidamente certificado. Deve ser o setor mais rentável do
agronegócio aqui e em todo o mundo.
E o que passa com os
criadores de gado em outras regiões, muitos deles com tecnologia de ponta e até
manejos sustentáveis do seu plantel? Sua carne é mais cara, mas de melhor
qualidade e alcança melhores preços até na Argentina. Estes empresários são respeitadores
do meio ambiente e capazes de se ajustar às regras novas da União Europeia com
rastreamento para impedir a compra de carne oriunda de áreas desmatadas desde
2020. E por que não lutam por uma legislação nacional que obrigue esta prática?
Trata-se de uma solidariedade com os agrotrogloditas da Amazônia, Cerrado e
Pantanal?
Desconfio que este
setor dito “moderno” tem interesse na persistência da criação de gado nas áreas
desmatadas. Colocada em prática a legislação da UE no ano que vem, e com os
chineses, americanos e ingleses discutindo medidas semelhantes, vai haver um bloqueio
das exportações de carne bovina brasileira, aquela que não vai conseguir a
certificação. É mais da metade das nossas exportações de carne que vai ficar
retida no mercado interno e os preços nacionais vão cair. Por outro lado, quem
tiver carne certificada vai poder aproveitar o aumento do preço da carne no
mercado internacional (derivado do bloqueio) e o nosso agronegócio pecuário
“bom” vai nadar de braçada por um bom tempo. Me parece um cálculo bastante
razoável para explicar o silêncio cúmplice dos setores “modernos” do
agronegócio e a falta de ação por uma legislação sobre o rastreamento.
O rastreamento da
carne deveria ser uma legislação nacional aplicada com rigor e emergência para
deter o desmatamento e queimadas na Amazônia, Cerrado e Pantanal. Ocorre que o
governo não quer enfrentar o agronegócio no Congresso e prefere criar mais um organismo
ambiental, chamado de “Autoridade Climática”. Nem discuto a importância deste
instrumento, mas até ele começar a existir e operar o caldo pode estar
entornado de vez.
No Brasil é sempre
assim: frente a uma emergência cria-se uma comissão que vai discutir o que
fazer, enquanto já se sabe há muito tempo que a medida capaz de conter o
processo de desmatamento e queimadas é o rastreamento do gado e a certificação
da carne. As ameaças de controle pelo Ibama ou ICMBio e Polícia Federal são
irrisórias, mesmo se multiplicados os seus funcionários por milhares. É muito
grileiro desmatando e queimando com a proteção ou não da milícia do tráfico de
drogas e que também atua no garimpo ilegal. E eles contam com a cumplicidade da
justiça local, dos policiais civis e militares, de governadores e prefeitos. O
estrangulamento destes processos criminosos só será eficaz com medidas que
impeçam a colocação dos seus produtos no mercado. Por outro lado, os bancos
públicos e privados poderiam entrar na dança, exigindo o rastreamento para
financiar frigoríficos e criadores de gado. No caso dos bancos privados isto
não cobra sequer uma lei específica, só uma resolução administrativa.
Não basta para fazer
discurso em visitas “preocupadas” às áreas sinistradas, como o Lula é mestre em
fazer. Os cientistas dizem que mais dois ou três anos com os índices atuais de
desmatamento e queimada a floresta amazônica vai colapsar. Não é um colapso
localizado, este já ocorreu em todo o “arco de fogo” que vai do norte do Mato
Grosso, o sul do Pará, o Tocantins, o Matopiba, Rondônia e Acre. Estamos
falando de um processo de degeneração de todo o restante da floresta, que
levará à transformação da grande planície úmida, cortada de rios enormes, em
uma savana arbustiva e seca e, com o tempo, em um deserto.
É preciso pensar em um
outro efeito iminente deste desastre: o deslocamento da população para as
cidades dos três biomas citados e que vai se estender para as grandes
metrópoles do sudeste e sul. Algumas dezenas de milhões de brasileiros vão se
transformar em refugiados climáticos e aumentar a miséria urbana no país.
O Nordeste, por razões
climáticas mais gerais, também se encaminha celeremente para passar de
semiárido para árido, mesmo sem a intensidade dos desmatamentos tratados neste
artigo. A previsão de aumento de temperatura média da ordem de 3º C na região
vai implicar na perda de 30% da produtividade da agricultura, afetando
principalmente a familiar. Estamos diante da forte probabilidade da retomada
das crises sociais oriundas das secas, crises essas que perduraram até os anos
70. No passado, fugindo das secas, os “retirantes” a migravam para um “Sul”
muito amplo, das cidades metropolitanas do Sudeste até as zonas rurais do
Paraná e de São Paulo. Para onde irão os novos retirantes?
O agronegócio
brasileiro sempre foi adepto do uso indiscriminado do fogo para expandir suas
lavouras e pastos. Hoje o desastre é proporcional ao poderio adquirido por este
setor. Ele sabe muito bem que no rastro deste avanço ficam dezenas de milhões
de hectares (entre 80 e 100) de “áreas degradadas”, mas enquanto houver terras
a grilar e florestas a queimar o processo vai continuar.
E depois? Ora, depois
eles vão embarcar para Miami e gozar os dólares amealhados. Mal sabem que o
aumento dos oceanos provocado pelo aquecimento global que eles ajudam a ampliar
vai engolir o paraíso dos ricos brasileiros.
Fonte: Por Jean Marc
von der Weid, em Outras Palavras
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