Javier Milei e a ética dos favores
O pacto distópico que
permeia boa parte do globo paira como um redemoinho sobre o gradualismo
neoliberal, assediando-o, pressionando-o e se vangloriando de ser sua versão
consequente, descendente fiel e corajoso, carente de hesitações. Numa recente
reportagem televisiva no único canal a que dá entrevistas, propriedade do
jornal mais obsoleto do país, “La Nación”, o presidente Javier Milei
expôs sinceramente a autopercepção de ser “o político mais relevante do planeta
Terra junto com o ex-presidente estadunidense Donald Trump”.
Este último, na sua
recente disputa com Kamala Harris, mostrou mais uma vez seu estilo combativo,
embora contido em comparação com o veneno que destilava em confrontos
anteriores, como com Hillary Clinton. Ainda que as garras de Trump não tenham
chegado aos arranhões pessoais, sua retórica carregada centrou-se em
desqualificar a competência de Kamala Harris, em questionar sua capacidade de
liderança. Seu sarcasmo dirigiu-se mais para as políticas da administração de
Joe Biden, com seu veneno apenas resvalando Kamala Harris.
Javier Milei, por sua
vez, longe de se conter, prossegue sua cruzada incendiária, ombro a ombro com
os titãs do capital global para desdenhar como “inconsequentes” os políticos
vernaculares, que descreve como “ratos invisíveis que nunca poderão aspirar a
isso (…) Que visão pode ter um rato – pergunta-se – em relação a um gigante?”
Com uma retórica que faz lembrar o clímax da fábula do escorpião e da rã,
Javier Milei envenena seu próprio entorno político, atacando não só seus
adversários, mas o próprio tecido que sustenta a esfera pública, os meios de
comunicação e a informação.
Como escreve Eduardo
Fidanza no jornal Perfil, de uma perspectiva liberal indignada, o
delírio de Javier Milei não é apenas um delírio, é a investida desenfreada de
um pacto suicida, em que o escorpião não consegue deixar de picar a rã, mesmo
quando é sua única oportunidade de atravessar para o outro lado.
Os políticos, aos
quais designa depreciativamente como “a casta”, não são assinalados sem
fundamentos, como parasitas que se agarram ao acesso privilegiado aos recursos
públicos para benefícios privados. Figuras que se aproveitam do vínculo
representativo para colocar os interesses pessoais em primeiro lugar, através
de vários mecanismos de tráfico de bens e de influências.
Javier Milei acusa os
jornalistas que vigiam este jogo obscuro, ou que o exaltam e cobiçam, de
estarem “envelopados”, ou seja, corrompidos pelo poder. No entanto, muito além
de que presumivelmente prefira prescindir de qualquer divisão de poderes e de
uma representação plural, exercendo uma espécie de monarquia decretatória,
depende da própria casta para aprovar leis e políticas ou, ao menos, para que
lhe seja permitido decretar à vontade, como de fato tem feito. Para isso,
construiu um espaço político peculiar, em que cada candidato tinha que
autofinanciar sua campanha, numa grotesca demonstração de uma suposta
austeridade low-cost, o que levou imediatamente a uma espécie de
regime de franquia política, com várias acusações de venda de candidaturas.
Acusações advindas de
personagens insuspeitos e não alinhados com a direita, como Carlos Maslatón ou
Juan Carlos Blumberg. Embora o processo judicial tenha sido arquivado, isso
aconteceu após sua chegada ao poder, deixando um rastro de suspeitas e dívidas
políticas.
O caso do senador
Abdala, vice-presidente provisional do Senado e terceiro na linha sucessória, é
um exemplo claro de como a retórica anticasta de Milei se desmorona diante das
práticas reais no interior de seu espaço político. Numa entrevista condescendente,
Abdala admitiu sem rodeios que tinha 15 assessores pagos pelo Congresso
trabalhando em sua província natal de San Luis para lançar as bases de sua
futura candidatura a governador. No entanto, investigações posteriores e um
processo judicial aberto revelaram que, na realidade, eram 20 os contratados,
todos financiados com fundos públicos.
Este “sincericídio” só
serviu para evidenciar a hipocrisia de um discurso que se autoproclama
demolidor e anticorrupção, mas que na verdade amplifica as piores práticas da
“velha” política. Muitos deles pertencem ao círculo de Adolfo Rodríguez Saa,
ex-governador quase vitalício de San Luis (junto com seu irmão), ex-presidente
efêmero durante as sucessões que se seguiram à crise de 2001 e inclusive
ex-senador. Abdala, que chegou ao Senado como substituto de Rodríguez Saa, não
deixou escapar qualquer vantagem em proveito próprio, incluindo a filiação de
cidadãos falecidos no partido libertário, um fato que veio à tona no âmbito do
processo judicial.
Membro destacado da
casta que denuncia, Abdala é a imagem viva da contradição política: um homem
que utiliza os mesmos instrumentos que condena em seu próprio benefício e em
detrimento da confiança pública.
O caso da senadora
Vilma Bedia é o exemplo perfeito de como, sob a aparência de uma misericordiosa
pastora evangélica, foi construído um feudo familiar nas entranhas do Poder
Legislativo. Aparentemente guiada por uma moral cristã que, incapaz de multiplicar
pães e peixes, optou por multiplicar empregos no Senado, incorporando três
filhos, um irmão, uma sobrinha e uma cunhada. Bendito nepotismo.
O politólogo Andrés
Malamud, com sua habitual abordagem conservadora dentro de uma perspectiva
liberal, chamou os membros da coalizão de Milei, “A Liberdade Avança”, de uma
“casta aspiracional”. Baseado em sua experiência como colunista de televisão,
trata-se, segundo ele, de um grupo de improvisadores que anseiam por se juntar
à casta supostamente caluniada.
Num processo que não
concebe necessariamente como irreversível, aludindo à possibilidade de
superação através do conhecimento e da experiência, sua crítica, entretanto,
aponta para o fato de que a equipe de governo se comporta como um “corso na
contramão”, lançando torpezas a cada passo. Pessoalmente, penso que, embora
existam aspectos (a)morais indispensáveis em nível individual para sustentar
tais práticas, uma vez que ajudam a evitar a repulsa ética e a exercer
resistência à sua utilização, a explicação é material e sistêmica, não
subjetiva. Estas aberrações são possíveis porque o dispositivo político as
permite e encoraja.
De acordo com dados de
maio deste ano, o Senado tem 1.314 assessores distribuídos pelos 72 senadores,
o que dá uma média de 18,25 por legislador. No entanto, alguns deles estão
notavelmente distantes da média. Há senadores que, tendo iniciado o mandato em
dezembro de 2023, já contam com mais de 30 assessores. O sistema funciona
através de “módulos”, sendo que cada senador possui 7.338 módulos para
distribuir a seus “agentes” nos cargos temporários. Em termos monetários, este
número quase duplica os escandalosos honorários que recebem.
Por conseguinte, podem
combinar estes módulos para atribuir salários que vão do mais baixo (categoria
A14) ao mais alto (A1), dependendo de como querem favorecer cada assessor. Esta
flexibilidade gera desigualdades: alguns preferem ter mais assessores com
salários modestos, enquanto outros optam por ter menos assessores, mas
altamente favorecidos, com grandes variações intermediárias. Além destes
assessores, cada senador pode “herdar” pessoal com cargos permanentes, para os
quais não utilizam a quantidade de módulos que recebem.
Na Câmara dos
Deputados, embora as proporções e alguns detalhes mudem, o sistema é
relativamente semelhante. Em que direção o leitor acha que este exército de
consultores atuará? No mínimo, para se perpetuarem como tais, incluindo seus
benfeitores.
A atitude acrítica em
relação a estes mecanismos ou dispositivos institucionais, que não passam de
máquinas clientelistas a serviço de interesses próprios ou de facções,
manifestou-se por igual tanto nas esquerdas como nos progressismos. Estes
sistemas não foram concebidos para defender a ética pública, mas para a
submeter. Na Argentina, a autoproclamada esquerda revolucionária não só se
calou diante destas regalias institucionalizadas, como, em muitos casos,
recorreu a elas para retribuir a seus militantes.
Por acaso surpreende
que, desde a adolescência, as agremiações de estudantes disputem a
fotocopiadora do centro estudantil como recurso para financiar sua organização?
Este silêncio aquiescente explica em boa parte a razão pela qual a
extrema-direita consegue apresentar-se como uma alternativa antissistêmica,
crítica e revulsiva, que impulsiona a “mudança”. Pelo menos até que o tempo –
sempre irritantemente incerto – revele essa mesma extrema-direita como a nova
usufrutuária e, ainda pior, como um exponencial depredador da moralidade
pública e suporte prático da mecânica corrupta que diz condenar.
No momento em que
concluo estas linhas, começará a sessão da Câmara dos Deputados para debater o
veto de Javier Milei à nova lei sobre a mobilidade das aposentadorias. Serão os
assessores que inclinarão a balança, aconselhando a manutenção da posição original
de aprovação, ou, ao contrário, impedindo que se recrie a maioria original de
mais de dois terços para manter a lei votada e, assim, revogar o veto? A
própria natureza do vínculo entre o assessor e seu nomeador leva a descartar a
influência neste caso. Há outros interesses em jogo, mais substanciais, mesmo
que não menos espúrios.
No sonho da ética,
desenvolvem-se os pesadelos da difamação. O pior destino é acordar sem a sua
lembrança.
¨ Luta contra drogas ou controle regional: qual o papel do aparato
militar dos EUA na América Latina?
O recente anúncio do presidente
do Equador, Daniel Noboa, sobre a apresentação de uma iniciativa para dar luz
verde à chegada de bases militares estrangeiras ao país latino-americano,
coloca novamente sobre a mesa o debate sobre o trabalho militar dos EUA na
região: nos EUA, eles realmente ajudaram a combater os problemas locais? A
Sputnik explica.
O anúncio de Noboa foi
feito no local onde esteve no Equador, a base dos EUA em Manta (província de
Manabí), de 1999 a 2009. "Em um conflito transnacional precisamos de uma
resposta nacional e internacional", disse o presidente por meio de vídeo
compartilhado através de suas redes sociais.
Há pouco mais de seis
meses, Javier Milei, presidente da Argentina, anunciou a instalação de uma base
logística em Ushuaia em conjunto com os EUA, após reunião com Laura Richardson,
chefe do Comando Sul do Exército dos EUA. Este anúncio causou críticas devido à
posição estratégica da cidade na Patagônia argentina para a região.
A preocupação é
coerente. Ao longo da história da região, os Estados Unidos desempenharam um
papel interveniente nos países do centro e do sul do continente. Um dos casos
mais evidentes foi a participação do governo de Richard Nixon no golpe de
Estado no Chile em 1973, que conduziu à ditadura de Augusto Pinochet.
A face visível da
integração militar dos EUA com as nações da região é o Comando Sul, que começou
a ganhar força durante o período da Guerra Fria e posteriormente reorientou o
seu foco de atenção após o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001.
Entre os objetivos que
o Comando Sul afirma ter está a aquisição de sistemas democráticos e o combate
ao tráfico de drogas na região, porém, será que realmente conseguiu cumprir
esses propósitos?
<><> Uma
luta fracassada
Os EUA promovem uma
guerra feroz contra as drogas há várias décadas, não só a nível nacional, mas
também em todo o continente.
Segundo informações do
Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, 3,64% da população entre 15
e 64 anos nos Estados Unidos consome opioides, enquanto 2,4% consome cocaína.
Os números posicionam a nação norte-americana como um dos maiores consumidores
de drogas do mundo.
Sob este argumento, o
país implementou uma estratégia regional focada no combate ao tráfico de
drogas, que, no entanto, não teve os resultados esperados.
"Infelizmente, a
lógica dos benefícios não é totalmente favorável porque se torna um panorama em
que o conflito social é agravado porque, normalmente, o envio de Forças Armadas
dentro dos territórios é priorizado supostamente para deter cartéis ou organizações
criminosas, mas que de alguma forma também acaba afetando, digamos, as
mobilizações sociais que estão ocorrendo nesses países", disse a dra.
Claudia Serrano, especialista em estudos latino-americanos, em diálogo com a
Sputnik.
A estratégia também
não mostrou resultados para os EUA. Segundo informações dos Centros de Controle
e Prevenção de Doenças do país, até junho de 2015, foram registradas pouco mais
de 45.500 mortes por overdose, enquanto esse número foi praticamente mais que o
dobro até agosto de 2023, quando ocorreram cerca de 111.400 mortes.
<><> Uma
disputa geopolítica
Em 2023, Laura
Richardson, comandante do Comando Sul dos EUA, disse durante uma audiência do
Comitê dos Serviços Armados da Câmara dos Representantes que atacou a Rússia e
a China pela sua reaproximação com "os nossos vizinhos democráticos",
uma vez que isso é visto por Washington como uma preocupação crescente.
Segundo o García
Contreras, os Estados Unidos têm conseguido garantir seus interesses na região
graças ao trabalho, por exemplo, do Comando Sul, bem como a alianças com
governos semelhantes a ele, como neste caso o Equador deixou claro.
"Também é visto
como um dos elementos onde, se os Estados Unidos se posicionassem
geopoliticamente na região, seriam os mais beneficiados por uma reforma desta
natureza [a apresentada pelo presidente Noboa], já que a presença dos militares
poderia ter essa interferência maior na política", afirmou.
Ainda segundo Serrano,
a chegada de novas bases militares em áreas onde existe certo nível de riqueza,
seja natural ou alguns recursos essenciais para o desenvolvimento industrial
como na Argentina ou no Equador poderia permitir aos Estados Unidos reativar a
segurança desses recursos.
Fonte: Por Emilio
Cafassi, em A Terra é Redonda/Sputnik Brasil
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