Bolsonaro e Marçal: a extrema direita entre
um passado perdido e um futuro irreal
Ao aparecer como um
outsider alheio a conchavos e privilégios que marcam os atores da ordem, Marçal
renova o espírito subversivo do bolsonarismo e encanta seus eleitores mais
radicais
##
O show deplorável de
Pablo Marçal nos debates e nas redes, de um lado, e pesquisas que revelaram a
competitividade de sua candidatura à prefeitura de São Paulo, de outro,
aqueceram uma eleição que tinha tudo para ser morna. A ascensão de Marçal
despertou sentimentos de medo e angústia que só podem ser comparados ao
processo eleitoral que levou Jair Bolsonaro à presidência em 2018. Os absurdos
contidos no discurso e na prática do ex-coach, suficientes para chamar a
atenção e mobilizar um conjunto assustador de pessoas, lembraram a vitória
inesperada do ex-capitão. Até a divulgação recente de pesquisas que mostraram a
estagnação de Marçal, muita gente já via como provável a sua vitória.
Longe de ser carta
fora do baralho da disputa, o fenômeno Pablo Marçal merece atenção por diversos
motivos. Em primeiro lugar, o frenesi que ele tem provocado é sintoma de uma
sociedade sensibilizada quase que exclusivamente pelo espetáculo. Diante de uma
campanha que opõe duas faces tradicionais da política institucional, a
fanfarronice eficiente e sem precedentes do ex-coach não poderia passar
despercebida. Com efeito, a campanha em São Paulo era até então marcada por uma
concorrência um tanto convencional. De um lado, um ex-vereador alçado a
vice-prefeito em negociatas de bastidor e que, apesar de contar com o apoio ao
mesmo tempo necessário e problemático de Bolsonaro, representa o que há de mais
tradicional de uma direita fisiológica e apegada a esquemas no seio da máquina
pública. De outro, a liderança mais arejada que a esquerda brasileira produziu
no último período, mas que conta e depende do apoio do presidente da república
e luta contra estigmas associados ao seu passado combativo no movimento social.
Em um momento em que a atenção do consumidor (ou eleitor) é um ativo raro e
disputado, havia espaço para o inusitado, o irreverente que pudesse articular a
política ao entretenimento e ao espetáculo.
Do ponto de vista
político-eleitoral, é quase intuitivo encontrar uma explicação para o
crescimento repentino de Marçal. Conforme Bolsonaro aparenta covardia ao se
submeter à candidatura preferida de Valdemar Costa Neto em meio à articulação
de um grande acordo que envolve o centrão e os partidos da direita tradicional
para livrá-lo da inelegibilidade e da prisão, ele deixa carente e incomodada
uma base que ajudou a forjar e que cultivou a partir do conflito com o sistema.
Ao aparecer como um outsider alheio a conchavos e privilégios que marcam os
atores da ordem, Marçal renova o espírito subversivo do bolsonarismo e encanta
seus eleitores mais radicais. Mas sua ascensão coloca outras questões que
merecem ser pensadas. A mais óbvia diz respeito à adequação do termo
“bolsonarismo” para descrever um movimento ou uma agenda política com atores,
grupos e contornos bem definidos.
Jair Bolsonaro e
depois o que se convencionou chamar de bolsonarismo têm sua origem como
fenômeno político em um ímpeto eminentemente negativo: uma rejeição ao Partido
dos Trabalhadores calcada nos efeitos dos governos petistas sobre a redução de
desigualdades materiais e simbólicas. Bolsonaro se tornou uma figura que, como
um significante vazio capaz de articular ressentimentos de ordem material e
simbólica, sinalizava para diferentes grupos e expectativas conservadores.
Setores médios incomodados com a ameaça de seu status social viram nele a
chance de interromper movimentos que questionavam hierarquias históricas e um
processo de redistribuição que apontava para uma sociedade menos desigual e com
menos privilégios.
Enquanto força
negativa, movida mais pelo imperativo da destruição do que da construção de
algo novo, o bolsonarismo sinaliza uma traição de seu espírito anti-sistema
original quando se vê compelido a negociar e acomodar interesses com as forças
mais identificadas com a ordem que ele defendia suprimir. A ponto de ser
contestado ou até ultrapassado por uma figura que resgata o apelo de uma
alternativa original ao sistema. No momento em que o bolsonarismo parece se
institucionalizar de maneira definitiva, curiosamente depois de deixar o
governo federal, surge a dúvida quanto à capacidade de Bolsonaro e de seu grupo
mais próximo de controlarem o monopólio da direita mais conservadora.
Mas para além da
discussão acerca da natureza anti-sistema e da hegemonia bolsonarista sobre o
eleitorado de direita, outros elementos devem ser pensados acerca da relação
entre Bolsonaro e Marçal e sobre quanto há de ruptura ou continuidade entre
ambos. Um deles é de ordem temporal e sugere uma diferença importante entre o
movimento liderado por Bolsonaro e o incipiente estrago que Marçal vem fazendo
na disputa paulistana. Grosso modo, não é um exagero dizer que enquanto o
bolsonarismo tem seu horizonte no passado, Marçal interage com o presente e
aponta para algum futuro – por mais distópico que ele pareça.
Bolsonaro construiu
sua imagem como liderança apegada a tradições, costumes e valores ameaçados. O
ex-capitão ascendeu politicamente a partir do conflito com avanços que
promoveram uma certa nostalgia em relação a um passado perdido. No centro do
projeto e da comunicação bolsonarista sempre estiveram as noções de ordem e
segurança. Não apenas a segurança pública contra a violência e o crime, mas a
segurança de instituições como a família, a igreja, as forças armadas. O que
ele sempre reivindicou foi a proteção de determinados setores sociais diante da
insegurança trazida pela dissolução de referências culturais e de hierarquias
sociais que asseguravam algum conforto. É bem verdade que o bolsonarismo,
diferente de movimentos de extrema direita correlatos em outras partes do
mundo, teve uma relação no mínimo ambígua com a agenda liberal no plano
econômico. Enquanto em países do centro lideranças populistas acenam para
políticas de proteção comercial e de direitos sociais, foi conveniente para a
sua versão tropical uma aliança com as demandas liberais das elites
financeiras. No entanto, Paulo Guedes é lateral no bolsonarismo, a agenda
liberal não está, definitivamente, no centro de sua identidade.
Já em Pablo Marçal a
cultura do empreendedor individual é definidora do que ele projeta enquanto
movimento político. A partir do conflito mais ou menos explícito com o Estado,
com a cultura do serviço público, de qualquer tipo de regulação da produção e do
trabalho, Marçal tem no sucesso individual e no enriquecimento suas principais
bandeiras. Ele parece responder aos imperativos de uma economia em
transformação e que premia novos padrões e práticas no sentido da obtenção de
recursos. Numa sociedade que normaliza uma renda proporcional ao esforço
individual, ao estilo do motorista de aplicativo ou do entregador que ganham
mais conforme mais trabalham, sem nenhum tipo de proteção, Marçal é referência.
No Brasil, a informalidade sempre condicionou lógicas de produção alheias aos
padrões legais da proteção trabalhista. Mas agora esse se tornou o padrão de
uma cultura que não só aceita, mas normatiza o esforço infinito. Antes
tratava-se de se virar para garantir um sustento mínimo, hoje é mérito
encontrar diversas maneiras de obter recursos. Ganhar dinheiro é o imperativo,
não importa como, se é investindo, empreendendo, apostando em sites esportivos
e jogos eletrônicos ou enganando os outros.
Não se pode dizer que
o ex-coach não está afinado ao espírito do tempo. É diferente do bolsonarismo,
em que a luta de classes é feita olhando para baixo, por uma classe média que
teme perder o status e os privilégios a partir da ascensão das camadas populares,
e que idealiza um passado em que haveria algum senso de coletividade em torno
de instituições como a nação, a família, a igreja. Na ideologia propagada por
Marçal, a luta de classes é feita olhando para cima, não por parte de uma
classe, mas de um indivíduo que pode reunir as condições de ascender
socialmente de maneira atomizada.
E aqui nos deparamos
talvez com o elemento mais intrigante do fenômeno Marçal. O ex-coach se conecta
com um tempo em que o indivíduo, como empreendedor, influenciador ou qualquer
outra coisa, está supostamente no centro da produção e do seu potencial enriquecimento.
Diferente de uma sociedade marcada pela clivagem entre patrão-empregado, o
sucesso partiria das ideias, do talento, da força e da capacidade do indivíduo.
No que ele difere de um modelo teoricamente racional para a prosperidade e que
inclusive já foi testado politicamente. No Brasil, figuras como Fernando
Collor, João Dória e Paulo Guedes, entre outros, encarnaram a via “normal” de
um capitalismo desprovido das amarras que o Estado colocaria sobre a liberdade
econômica e o empreendedorismo. Projetos mais alinhados à teoria econômica
hegemônica na academia e no debate público, mas que não prosperaram
politicamente.
Marçal poderia ser
entendido como a expressão de um sincretismo improvável entre um capitalismo
contemporâneo excessivamente focado no indivíduo e manifestações localizadas no
âmbito da fé. É como se depois de se depararem e se frustrarem com um modelo político-econômico
que não entrega o que promete quando respeitada a via convencional e racional,
restaria às pessoas apelarem para alternativas que estão à margem do espectro
convencional, a soluções novas e mágicas para a prosperidade. Quando o padrão normativo
de educação e trabalho e a renda são insuficientes para atender às demandas
impostas por um modelo de consumo que cria desejos e necessidades de maneira
incessante, restaria apelar a apostas, sejam elas econômicas, como os sites de
apostas esportivas, sejam elas político-normativas, como Marçal.
A escolha pela extrema
direita “tradicional” não deixa de ser uma resposta política ao insucesso, ao
fracasso, à inviabilidade de um modelo de sociedade que promove a frustração de
não se ter aquilo que precisamos e desejamos. Não alcançar tudo o que se deseja,
trabalhar mais do que se pode física e emocionalmente, lidar com a frustração
imposta por uma cultura que coloca sobre o ombro dos indivíduos toda
responsabilidade pelo sucesso e pelo mais provável fracasso de vontades não
realizadas é penoso. Mas como dito acima, essa extrema direita olha para o
passado, projeta uma luta de classes em que os estratos sociais miram para
baixo, têm medo de cair e se assemelhar às camadas inferiores. Em suma, o
populismo da última década projeta a preservação daquilo que se tem ou a
recuperação daquilo que se teve. No centro, ganham força o controle da
imigração, a xenofobia e também alguma regulação sobre a economia de modo a
preservar direitos mínimos e o poder de compra dos setores médios. No Brasil, o
desespero e o ressentimento descambaram para a proteção, a segurança, a
família, a religião e a restauração de uma sociedade baseada em desigualdades
materiais e simbólicas.
Pablo Marçal não é
único e carrega características que podemos encontrar em figuras como Donald
Trump, Najib Bukele – que ele tentou em vão encontrar – e até Bolsonaro. Não se
trata de uma ruptura completa com o modelo anterior, afinal disputa segmentos parecidos
da sociedade. Mas há também diferenças importantes. No movimento promovido por
Marçal, a aspiração de enriquecer faz com que o olhar esteja dirigido para o
topo da estrutura social, a aspiração de prosperar conta mais do que a defesa
da família e dos costumes, embora ela também esteja presente. Não é um acaso a
afinidade do ex-coach com a juventude que se espelha em influenciadores que
enriquecem a partir das redes sociais e com setores do funk cuja identidade
está muito associada ao consumo e à ostentação.
O mais curioso, porém,
é que essa projeção de sucesso e prosperidade está assentada na fé, na
“mentalidade”, não em um plano racional de desenvolvimento econômico e abertura
de oportunidades de trabalho e carreira. Marçal é a resposta a desejos e
vontades que a ordem econômica é incapaz de realizar da maneira que a teoria
econômica hegemônica propala. É como se as pessoas soubessem que pela via
“normal” defendida – da educação e do esforço profissional – é impossível
alcançar o que se almeja. É daí a força de um apelo sobrenatural, de uma
solução mágica. Marçal está atrelado a questões muito reais e concretas, desde
o jovem que consegue fazer dinheiro a partir da viralização de vídeos nas redes
até famílias cuja renda é insuficiente para as necessidades mais ou menos
básicas. Mas o caminho que ele aponta está apoiado no intangível, na crença, no
fantástico, pois o caminho “normal” já se mostrou inviável.
A resistência contra o
desespero reacionário do bolsonarismo contou com os erros cometidos por
Bolsonaro no poder, com o receio dos estragos que ele ainda poderia cometer e,
sobretudo, com as lembranças de um período de melhores condições de vida.
Diante de uma extrema direita que, embora fragmentada, dialoga ao mesmo tempo
com a nostalgia de um passado desigual e com a aspiração de um futuro de
prosperidade individual, será preciso apresentar saídas objetivas para
angústias e receios que podem facilmente aderir a um desses dois registros. Em
um mundo em que as soluções coletivas razoáveis disputam espaço e atenção com
um espetáculo desprovido de compromisso com a racionalidade, é apontando
caminhos críveis de progresso e bem-estar que algum contraponto pode ser
construído. Melhores oportunidades de trabalho, salários maiores, maior poder
de compra, menos impostos sobre a renda, em suma, a perspectiva concreta de uma
vida melhor são incontornáveis para qualquer projeto político que busque adesão
popular. É difícil prever o que vai acontecer com as eleições paulistanas em
meio a brigas e cadeiradas, o que dirá com a disputa político-ideológica que se
anuncia para o próximo período. O que se pode afirmar sem muito risco de errar
é que alternativas que dialogam com a irracionalidade do apego a um passado
perdido ou a um futuro idealizado continuarão atormentando o nosso presente.
Fonte: Por Philippe
Scerb, no Le Monde
Nenhum comentário:
Postar um comentário