Afinal, de quem é a culpa pela crise
conjuntural no Brasil?
Lula?
Haddad? Boulos? Quem são os verdadeiros responsáveis pela crise política no
Brasil?
Lula estaria fazendo
“média” com o centrão em vez de enfrentá-lo. Haddad aposta no equilíbrio fiscal
e faz média com o “mercado” e o Banco Central. Boulos busca tornar sua imagem
mais suave e menos radical para conquistar o voto de uma suposta classe média.
Prega o amor e faz coraçãozinho com as mãos… Nos últimos anos, a sociedade tem
experimentado uma crescente individualização das responsabilidades, o que
reflete um afastamento das ações coletivas em prol de uma visão mais centrada
no indivíduo. Esse fenômeno pode ser observado em diversos âmbitos, desde o
mercado de trabalho até a política, onde a pressão por resultados e a busca por
soluções rápidas tendem a atribuir culpa ou o sucesso a figuras específicas, em
vez de considerar o papel das estruturas e das classes sociais. Com isso, as
ações coletivas, que historicamente foram motores de mudança e de
transformações sociais, acabam sendo enfraquecidas ou desvalorizadas. A ênfase
na responsabilização individual muitas vezes desconsidera a complexidade dos desafios
que enfrentamos, sugerindo soluções simplistas para questões que, na realidade,
exigem um esforço conjunto, uma colaboração efetiva e a construção de
alternativas solidárias.
A realidade em que
vivemos, marcada pelo avanço do neoliberalismo, parece carecer de uma oposição
à altura que consiga efetivamente combater sua narrativa dominante. A
fragmentação das lutas sociais, somada à falta de uma articulação mais robusta
entre os movimentos populares, enfraquece o campo progressista. Em grande
parte, essa desarticulação é fruto de um projeto que promove o enfraquecimento
das organizações coletivas, substituindo-as por um discurso que valoriza o
mérito individual e a competição entre os próprios trabalhadores e cidadãos.
Nesse contexto, o neoliberalismo prospera sem grandes obstáculos, absorvendo e
neutralizando iniciativas que poderiam, de outro modo, formar uma resistência
mais coesa e eficaz.
Em que pese a
complexidade da atual conjuntura nacional e internacional, tornou-se lugar
comum fazer críticas pessoais (ou individuais) às lideranças nas disputas
políticas. Se as críticas viessem apenas do campo político/ideológico da
direita, seria compreensível, especialmente num ambiente permeado pelo
moralismo e pelo conservadorismo. O que poucos articulistas de esquerda se
perguntam é: onde está o protagonismo dos atores sociais, coletivos, populares
do campo progressista? E os partidos políticos de esquerda? E os mandatos
legislativos desse campo? Pode um presidente, sem o protagonismo de apoio
social, confrontar o tsunami formado por um Congresso conservador e seus
aliados, onde a oposição tem maioria, e que busca enfraquecer o poder executivo
capturando parte do seu papel constitucional? Pode um ministro sem apoio social
enfrentar as forças de um “mercado” que está articulado a Estados nacionais que
reinventam novas relações de dominação colonial e controlam o mundo da
comunicação revolucionado pela mudança tecnológica? E um candidato a prefeito
nascido no seio da luta popular pela moradia para os excluídos em uma sociedade
marcada pelo patrimonialismo?
Estamos falando de
figuras notáveis. Estamos falando de um líder que passou mais de 500 dias na
prisão, vítima de perseguição judicial, e que, quando inocentado, reuniu
coragem e determinação para se candidatar e vencer, pela terceira vez, as
eleições presidenciais. Talvez nenhuma outra pessoa no planeta teria assegurado
essa vitória ao campo da esquerda nas circunstâncias históricas dadas. Vale
lembrar também a tranquilidade do Haddad diante da enxurrada de questionamentos
que vieram de vários lados do espectro ideológico e do Congresso para
finalmente e surpreendentemente apresentar, em um ano e meio, um resultado de
crescimento econômico, inflação baixa e recorde de empregos formais depois de
um período de quase uma década. Para falar das qualidades indiscutíveis do
Boulos, vamos lembrar de um evento passível de ser acessado e comprovado: o
programa de entrevistas ao vivo- Roda Viva da TV Cultura, em 26/08/2024.
Questionado por parte de entrevistadores de corte conservador a respeito de
suas antigas falas e ações relacionadas à sua militância junto ao movimento de
luta popular e interrompido insistentemente em suas respostas, o candidato a
prefeito da cidade de São Paulo manteve o equilíbrio emocional e virou o jogo.
Mostrou largo conhecimento sobre a cidade de São Paulo e sua gestão além de
divulgar suas propostas de governo que, é de conhecimento geral, foram
construídas junto com uma equipe de especialistas e estudiosos com experiência
na gestão da cidade.
Mas o foco desse texto
não é a defesa dessas e de outras lideranças de esquerda que têm a coragem e a
generosidade de nos representar e participar de disputas num contexto difícil e
desgastante. Nem de censurar as críticas que podem nos ajudar a evoluir,
acertar, melhorar nosso desempenho na luta por uma sociedade menos desigual,
menos egoísta, mais solidária, e menos predatória ao futuro do planeta. Nosso
principal foco é despertar a atenção para a fragmentação das nossas
organizações. Para esse acento egoico ao invés de coletivo, cooperativo,
articulador das iniciativas do nosso campo.
Sabemos que a classe
trabalhadora, que conquistou o Estado do bem-estar social no final dos anos
1940, vem passando por uma profunda mudança no mundo (ocidental) e no Brasil.
Sabemos dos retrocessos pelos quais passamos a partir de 1980, nas políticas públicas,
nos direitos trabalhistas, nos direitos humanos e sociais, em contexto de
financeirização da economia global e de um novo imperialismo. No Brasil, assim
como em todos os países do chamado sul global, essas conquistas nunca foram
universais. Vivemos quase quatro séculos de escravidão que deixou marcas vivas
até hoje. Mas é importante reconhecer que a industrialização e a urbanização
pareciam mostrar um caminho de emancipação nacional em que pese as contradições
vividas. Atualmente temos todas as evidências de mudanças históricas que
atingem a humanidade: econômicas, sociais, políticas, culturais e ambientais. A
desigualdade cresce e a riqueza se concentra na maior parte dos países do
mundo. Uma nova subjetividade é resultado das formas de comunicações revolucionadas
pela nova tecnologia. Estamos vivendo ataques aos Estados, à democracia
burguesa, à ciência, à racionalidade. A tarefa de discorrer sobre esses temas
está muito acima da competência de quem escreve essas linhas mas é preciso
reinventar a participação política. Apesar da pouca bagagem teórica algo parece
evidente: se houvesse mais articulação, proximidade, cooperação e
disponibilidade entre as forças progressistas não tinha para ninguém. Não é
necessário evitar as críticas, mas é necessária a disposição para a unidade.
Mais unidade e colaboração no interior dos partidos do nosso campo, mais
unidade entre os partidos do nosso campo, mais unidade entre parlamentares do
nosso campo, mais unidade entre lideranças sindicais do nosso campo, entre entidades
religiosas progressistas, entre a Frente das Periferias, a Frente Brasil
Popular, a Frente Povo Sem Medo, o MST, o MDT,a CMP, o Levante Popular da
Juventude, os numerosos movimentos de moradia, o movimento estudantil, os
movimentos de jovens da periferia, envolvidos com a cultura, a arte, os
esportes; os movimentos feministas, antirracistas, de gênero, entre outros.
Estamos falando de
unidade em torno de valores históricos no campo da esquerda democrática:
participação popular nas decisões em todos os níveis da federação, em especial
no controle do orçamento público; diminuição da desigualdade social, econômica
e territorial; sustentabilidade ambiental e respeito à natureza; reforma
agrária e segurança alimentar; reforma urbana e direito à moradia e à
cidade…não faltam propostas, não faltam planos, não faltam leis avançadas…No
entanto, despejos coletivos de famílias e as dezenas de milhares de moradores
de rua convivem com centenas de milhares de imóveis vazios em nossas cidades.
Em São Paulo, eram aproximadamente 70 mil moradores em situação de rua e
aproximadamente 600 mil imóveis vazios, segundo IBGE, em 2022. São os mesmos
imóveis que não cumprem a função social prevista nas leis: Constituição
Federal, no Estatuto da Cidades e nos Planos Diretores. Poderíamos lembrar
ainda a verdadeira indústria da grilagem de terra no campo convivendo com o
atraso na Reforma Agrária e na demarcação de terras indígenas. A implementação
da lei está, frequentemente relacionada com a correlação de forças, com o
desconhecimento da realidade social e territorial.
Se houvesse unidade em
nosso campo, estaríamos lutando por questões emergenciais como a mundialmente
abusiva taxa de juros no Brasil, que abocanha grande parte do nosso orçamento
público em favor de ganhos financeiros. Ou contra a manipulação desse mesmo
orçamento, como as inacreditáveis Emendas Pix, por exemplo. Ou estaríamos
estudando, aprendendo e discutindo a Reforma Tributária e o tributo dos
super-ricos. O que não dizer da manipulação das informações nas redes sociais.
Se houvesse unidade entre nós, estaríamos dando apoio ao STF e ao Ministro
Alexandre de Moraes. Estaríamos discutindo ainda medidas emergenciais diante da
crise climática, do desmatamento, das queimadas, da mineração e da agricultura
predatória; da especulação fundiária e imobiliária; do destino dos resíduos
sólidos e do esgoto não tratado; da emissão de gases de efeito estufa no
trânsito das cidades…Tudo isso depende das instituições e da mudança no modo de
produção e consumo, é verdade. Mas também de nossas iniciativas coletivas e sociais
cotidianas.
Por mais gigantesca
que pareça a tarefa, as eleições municipais abrem uma oportunidade para o
protagonismo dessa unidade e para reinventar a participação política
capilarizada no território. O poder local é o local da democracia
participativa, da democracia da proximidade, da construção cotidiana da vida
democrática.
Para a consolidação de
um Estado de direito robusto e a ampliação contínua dos espaços democráticos, é
imprescindível que se construa uma cidadania verdadeiramente participativa. O
envolvimento ativo da população na formulação e no controle das políticas
públicas, especialmente em relação ao direito à cidade, é uma peça-chave para a
estabilização democrática e a proteção contra retrocessos. A falta de
participação popular, promovida pelo avanço do pensamento neoliberal e pela
revolução nas comunicações, pode ser o verdadeiro vilão que temos insistido em
procurar. Ao fortalecer a agenda do direito à cidade e fomentar a cidadania
ativa, criamos condições para uma resistência mais coesa e eficaz, capaz de
transformar as estruturas que perpetuam as desigualdades e afastam a
coletividade da construção de soluções duradouras, democráticas e
ambientalmente sustentáveis.
Fonte: Por Ermínia
Maricato e Cesar Vieira, no Jornal GGN
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