segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Eleições 2024: pesquisa identifica 66 candidaturas ligadas a programas policialescos

Levantamento realizado pelo Intervozes mapeou candidaturas de comunicadores e agentes de segurança com visibilidade em programas de rádio e TV que exploram a violência.

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A população brasileira já está acostumada com a exibição de programas de rádio e TV que exploram a violência nas cidades. Os “policialescos” ocupam cadeira cativa na programação das emissoras e seguem um padrão consolidado de cobertura, que conta com apresentadores caricatos, repórteres acompanhando operações policiais e agentes públicos de segurança sendo entrevistados. Em época de eleição, muitos desses personagens se candidatam, buscando converter audiência em voto. Pesquisa realizada pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social mapeou 66 candidaturas ligadas a programas policialescos nas eleições municipais de 2024. O levantamento faz parte do projeto Mídia Sem Violações de Direitos, uma iniciativa permanente do coletivo.

A pesquisa consultou o banco de dados do Tribunal Superior Eleitoral e complementou as informações com buscas sobre a programação local de rádio e TV em pelo menos três municípios em todos os estados do Brasil. O levantamento identificou 51 candidaturas de apresentadores e repórteres de programas policialescos ou de quadros policiais de programas jornalísticos disputando cargos de prefeito e vereador. Além deles, considerou oito candidaturas de agentes de segurança pública com presença frequente nesses programas. Há ainda sete casos de comunicadores policialescos que não são candidatos, mas apoiam a candidatura de familiares ou correligionários. Com exceção do Rio Grande do Sul, todos os estados tiveram candidaturas identificadas com esse perfil.

A grande quantidade de candidatos reforça denúncias antigas sobre o uso político dos programas policialescos. Operando sob concessão pública, as emissoras utilizam sua programação como trampolim eleitoral e promoção individual que ferem princípios de isonomia na disputa eleitoral e fragilizam a democracia. O que predomina nos policialescos é um discurso que incentiva o cometimento de crimes por agentes do Estado e a defesa de uma política de segurança pautada na morte e no encarceramento.

Programas com esse perfil costumam ignorar debates que trazem contrapontos ao modelo de segurança pública pautado no racismo e na violação de direitos humanos. Outro ponto recorrente nos programas pesquisados é o assistencialismo, criando uma imagem paternalista em torno do “apresentador bonzinho que ajuda quem precisa”. Já para os agentes de segurança que se destacam nos policialescos, a imagem de “linha dura no combate ao crime” torna-se o principal mote de campanha.

•        Disputa à prefeitura

Um dos programas policialescos mais influentes na televisão brasileira é o Brasil Urgente, da Rede Bandeirantes. No ar desde 1997, o programa tem alcance nacional, além de possuir versões locais em todo o país. Desde 2003 à frente do Brasil Urgente, o apresentador José Luiz Datena (PSDB) se afastou recentemente do programa para concorrer à prefeitura de São Paulo. Um dos jornalistas mais populares do país, Datena já foi apresentador do similar Cidade Alerta, na Record.

Outro programa policialesco de referência é o Balanço Geral que, em Belo Horizonte (MG), é transmitido pela TV Record Minas. Seu mais longevo apresentador, Mauro Tramonte (Republicamos), também aproveitou a projeção alcançada à frente do programa para pleitear a prefeitura da capital mineira. Tramonte terá a concorrência de Carlos Viana (Podemos), jornalista que trabalhou no mesmo programa e fez carreira em policialescos até 2018, quando se afastou para concorrer às eleições, saindo vitorioso a uma vaga no Senado.

Já em Belém (PA), um dos candidatos à prefeitura é Jefferson Lima (Podemos), que trabalhou como apresentador e repórter em diversas rádios e TVs e atualmente conduz o “Jefferson Lima na TV”, pela TV Grão Pará. O comunicador já liderou quadros com forte apelo assistencialista, a exemplo do “Dia de fazer o bem”, em que distribuía cestas básicas. Jefferson se elegeu suplente de vereador na capital paraense em 2008 e, desde então, sem nunca abandonar seus programas, participou de todas as eleições.

Outros municípios brasileiros também terão a presença de policialescos disputando a vaga para prefeito ou vice, como em Aracaju (SE), Alta Floresta (MT), Caruaru (PE), Guarulhos (SP), Londrina (PR), Parnamirim (RN) e Santa Rita (PB).

•        Concessões públicas promovendo agentes públicos

Uma característica dos programas pesquisados é o alinhamento com as polícias militar e civil, enaltecendo a figura dos agentes, tratados como “guerreiros”. Apesar da situação catastrófica na segurança pública em todos os estados brasileiros, as emissoras não costumam debater a eficácia das políticas de segurança que vigoram, tampouco modelos alternativos. O debate da política pública é ignorado e o que prevalece é o personalismo que separa os “bonzinhos” dos “malvados”.

Dessa forma, o trampolim eleitoral dos policialescos não promove apenas os jornalistas da emissora. Diariamente, agentes de segurança pública estampam os programas, dando entrevistas ou atuando em operações que são exibidas como um reality show ou um filme de ação. Em 2024, ao menos seis estados terão candidaturas de policiais que ganharam visibilidade na TV.

Candidata a vereadora de Macapá (AP), a Delegada Sandra Dantas (PDT) já participou de diversos episódios do Bronca Pesada (TV Cidade), concedendo entrevistas sobre operações policiais. O programa apela para imagens sensacionalistas, como a exibição de cadáveres, o que já lhe rendeu uma condenação pelo Tribunal Regional Federal por exibir “imagens fortes (…) em horário acessível a crianças e adolescentes”, de acordo com a sentença. Na ação, o Ministério Público Federal cita cenas exibidas pelo programa, como a de uma mulher “mutilada com objeto cortante, em busca de atendimento médico”.

Em Salvador (BA), disputa a Câmara Municipal o Coronel Humberto Sturaro (PSDB), figurinha carimbada em diversos podcasts, portais e programas ligados a policialescos. Em 2021, o militar foi para a reserva e em 2023 ganhou o cargo de coordenador em uma prefeitura-bairro do município. Ainda assim, seguiu conduzindo ações exibidas por policialescos. Um exemplo é a Operação de Sturaro na Gamboa, divulgada pelo “Alô Juca” – o canal do YouTube se tornou um programa de TV liderado por Marcelo Castro (TV Aratu/SBT). Ex-apresentador do Balanço Geral (Record/BA), Castro foi demitido pela emissora após a descoberta de um esquema de desvio de doações conhecido como “Golpe do Pix”, do qual tornou-se réu.

A pesquisa identificou outras candidaturas de militares que aproveitaram a visibilidade em programas policialescos para seguir o caminho da política. Na disputa para vereador, há registros em Feira de Santana (BA), Goiânia (GO), João Pessoa (PB) e Uberlândia (MG). Para a prefeitura, há registros em Cabedelo (PB) e Caucaia (CE).

•        Quando o acusador é quem comete o crime

Os programas policialescos costumam evocar para si o papel de legislador, acusador e juiz, envolto em um manto de moralismo que define o “bem” contra “mal”. No polo positivo, o comunicador que “não tem medo de bandido” e o agente de segurança transformado em um “herói de farda” na luta implacável contra a “criminalidade”. Do outro lado, suspeitos negros ou de bairros periféricos, sentenciados e condenados ao vivo.

Essa narrativa alimenta a ideia de que o melhor caminho para enfrentar os problemas de segurança pública é o encarceramento em massa, a violação de direitos e a atuação policial à margem da lei. Também define como principais responsáveis pela criminalidade um perfil racializado. Não constam registros de que tais programas tenham esculachado o ex-senador mineiro que teve seu helicóptero apreendido com 450kg de pasta base de cocaína. Nem entrevistas com delegados sobre casos envolvendo crimes cometidos por desembargadores, empresários milionários ou oficiais da aeronáutica flagrados traficando drogas em voos da Força Aérea Brasileira. O alvo tem classe social e um perfil racial definido.

No que pese a histórica omissão do poder público em punir violações de direitos humanos na mídia, alguns candidatos já foram condenados por crimes cometidos durante o programa. É o caso do apresentador e candidato a prefeito de Alta Floresta (MT),  Oliveira Dias (PL), condenado por homofobia, junto com a TV Nativa (Record), após debochar da orientação sexual de um defensor público durante o programa Olho Vivo.

Já em Manaus (AM), concorre a vereança Fofinho do Povo (Agir), que ganhou visibilidade como repórter de rua no programa Novo Alerta (TV A Crítica), apresentado por Sikêra Jr. Ainda que não tenha sido identificada nenhuma acusação contra Fofinho, são conhecidos os crimes cometidos por Sikêra Jr. Em seus programas, o apresentador incentiva agentes de segurança a cometerem crimes e destila ataques contra mulheres, pessoas LGBTs e humilha publicamente suspeitos sem respeitar a presunção de inocência ou o direito a um julgamento justo. O apresentador responde a diversos processos, mas sua impunidade vem prevalecendo diante da omissão do judiciário, como destaca Mabel Dias no artigo “Caso Sikêra Jr.: até quando a Justiça ficará de olhos vendados para as violações na mídia?”.

Em Salvador (BA), em 2021, o apresentador Zé Eduardo (Bocão), do Balanço Geral (Record/BA), xingou e acusou sem provas Eliete Paraguassu (PSOL), marisqueira de Ilha de Maré, integrante da Articulação Nacional das Pescadoras e que havia sido candidata a vereadora um ano antes. Após os ataques, Eliete, que tem uma trajetória de ações e denúncias que questionam os grandes empreendimentos do entorno da ilha, passou a sofrer ameaças. Em 2024, ela voltou a se candidatar e, em agosto deste ano, comemorou em suas redes uma vitória na justiça em ação movida contra a Record. Em publicação, Eliete afirmou que “essa decisão não é apenas uma vitória pessoal, mas um marco na luta contra a desinformação e o racismo na mídia”. Esse caso revela que os policialescos não apenas promovem futuros candidatos, mas também utilizam o espaço midiático para atacar lideranças e representações políticas.

•        Casos de Família

Os programas policialescos oferecem diariamente aos espectadores um projeto político de sociedade que, em época de eleição, abastece propostas dos partidos. Além disso, seus comunicadores também incidem eleitoralmente com apoios a terceiros. É o caso do deputado federal e apresentador do Balanço Geral (TV Vitória/Record) Amaro Neto, que tem feito campanha para diversos candidatos à prefeitura no Espírito Santo. Já em Caucaia (CE), o atual prefeito e ex-apresentador do Cidade 190 (TV Cidade/Record), Vitor Valim (PSB), busca eleger seu sucessor, Waldemir Catanho (PT).

Em Sergipe, alguns casos chamam a atenção. No município de Nossa Senhora do Socorro, o ex-prefeito Fábio Henrique (União) e apresentador do Balanço Geral (TV Atalaia/Record) até esboçou sua pré-candidatura, mas teve seus direitos políticos cassados após condenação por improbidade administrativa. Em suas redes sociais tem declarado apoio a candidatos à prefeitura de Aracaju e Nossa Senhora do Socorro.

Já em Itabaiana (SE), o radialista e ex-vereador Alex Henrique (União) também está fora das eleições e ainda foi cassado pela Câmara após condenação a mais de um ano de prisão pelo crime de calúnia, por ter feito acusações sem provas contra o antigo prefeito. À frente do Jornal da Capital (Capital FM), o jornalista já chegou a afirmar em seu programa que a polícia deveria “dar trabalho ao Instituto Médico Legal”. Inelegível, Alex Henrique apoia a candidatura de sua irmã, Elizamara de Alex Henrique (União).

Na capital sergipana, à frente do Patrulha da Xodó (Rede Xodó FM), Bareta passou a dividir a apresentação do programa com seu filho, Bareta Filho (PRD), que disputará o cargo de vereador, a exemplo de seu pai que, em 2022, concorreu para deputado estadual. Outro herdeiro midiático-político de Bareta é o Cabo Amintas (União), que pretende retornar à Câmara de Aracaju. Amintas foi repórter policial e comentarista nos programas Balanço Geral e Programa do Bareta.

Em Salvador, concorre à reeleição a vereadora Débora Santana (PDT), esposa de Uziel Bueno, apresentador do Brasil Urgente (Band). Uziel, que já foi deputado e vereador, não apenas apoia a sua esposa, como também destinava a ela participação em seu programa, à frente do quadro Terça Gospel.

•        A carne mais barata da TV: quando o sangue do negro rende voto para o branco

O mapeamento permite traçar um perfil das candidaturas policialescas: se autodeclaram homens (88%), brancos (49%), cis gêneros (100%) e heterossexuais (100%). Esses dados dizem muito sobre as características que predominam nesses programas: recorrem a valores machistas (enaltecem a agressividade masculina e a violência como resolução de conflitos), destilam LGBTfobia (muitas vezes surfando na moral religiosa) e definem como alvo dos esculachos e corpos “matáveis” uma população de baixa renda e majoritariamente negra.

De acordo com pesquisador Paulo Victor Melo, no artigo “O papel da mídia brasileira na consolidação da necropolítica”, os “discursos racistas e a banalização da violência” pela mídia brasileira, sobretudo nos programas policialescos, reforçam a necropolítica que vigora no país, concedendo uma “autorização” para as políticas de Estado que “determinam quais sujeitos devem morrer e quais têm o direito à vida”.

Para a jornalista e coordenadora executiva do Intervozes, Ana Mielke, a exibição dos candidatos nos programas policialescos desequilibra o sistema eleitoral. “Estes apresentadores ou repórteres têm entrada diária na casa de milhares de pessoas em sua cidade, estado ou país. São horas de exposição pública, muitas vezes promovendo campanhas de marketing disfarçadas de ações solidárias”, afirma Mielke, que defende um tempo maior de “quarentena” para os comunicadores que desejam se candidatar.

Além disso, a jornalista chama a atenção para os casos em que os apresentadores seguem “no ar”, mesmo no exercício de um mandato. Para Ana Mielke, além dos conflitos éticos e de interesse em conciliar as duas funções, os programas oferecem ao político eleito “um canal direto com o público, podendo construir imaginários sociais que beneficiem a aprovação de seus projetos”. Esse cenário é ainda mais problemático, uma vez que as emissoras de rádio e TV atuam a partir de autorizações e concessões públicas. “Além de desequilibrarem o jogo democrático, obtendo vantagem indevida no processo eleitoral, estes apresentadores estão a serviço de um discurso autoritário, repleto de populismo penal e soluções fáceis para a violência”, conclui Ana Mielke.

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Os dados foram coletados a partir de um trabalho coletivo realizado por membros do Intervozes: Clarissa V. M. de Moura, Franciani Bernardes, Gabriel Veras, Iago Vernek Fernandes, Mabel Dias, Nataly de Queiroz Lima, Paulo Victor Melo, Raquel Baster e Rodolfo Viana, sob coordenação de Alex Pegna Hercog e apoio de Olívia Bandeira.

 

Fonte: Le Monde

 

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