Eleições 2024: pesquisa identifica 66
candidaturas ligadas a programas policialescos
Levantamento realizado
pelo Intervozes mapeou candidaturas de comunicadores e agentes de segurança com
visibilidade em programas de rádio e TV que exploram a violência.
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A população brasileira
já está acostumada com a exibição de programas de rádio e TV que exploram a
violência nas cidades. Os “policialescos” ocupam cadeira cativa na programação
das emissoras e seguem um padrão consolidado de cobertura, que conta com apresentadores
caricatos, repórteres acompanhando operações policiais e agentes públicos de
segurança sendo entrevistados. Em época de eleição, muitos desses personagens
se candidatam, buscando converter audiência em voto. Pesquisa realizada pelo
Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social mapeou 66 candidaturas
ligadas a programas policialescos nas eleições municipais de 2024. O
levantamento faz parte do projeto Mídia Sem Violações de Direitos, uma
iniciativa permanente do coletivo.
A pesquisa consultou o
banco de dados do Tribunal Superior Eleitoral e complementou as informações com
buscas sobre a programação local de rádio e TV em pelo menos três municípios em
todos os estados do Brasil. O levantamento identificou 51 candidaturas de
apresentadores e repórteres de programas policialescos ou de quadros policiais
de programas jornalísticos disputando cargos de prefeito e vereador. Além
deles, considerou oito candidaturas de agentes de segurança pública com
presença frequente nesses programas. Há ainda sete casos de comunicadores
policialescos que não são candidatos, mas apoiam a candidatura de familiares ou
correligionários. Com exceção do Rio Grande do Sul, todos os estados tiveram
candidaturas identificadas com esse perfil.
A grande quantidade de
candidatos reforça denúncias antigas sobre o uso político dos programas
policialescos. Operando sob concessão pública, as emissoras utilizam sua
programação como trampolim eleitoral e promoção individual que ferem princípios
de isonomia na disputa eleitoral e fragilizam a democracia. O que predomina nos
policialescos é um discurso que incentiva o cometimento de crimes por agentes
do Estado e a defesa de uma política de segurança pautada na morte e no
encarceramento.
Programas com esse
perfil costumam ignorar debates que trazem contrapontos ao modelo de segurança
pública pautado no racismo e na violação de direitos humanos. Outro ponto
recorrente nos programas pesquisados é o assistencialismo, criando uma imagem
paternalista em torno do “apresentador bonzinho que ajuda quem precisa”. Já
para os agentes de segurança que se destacam nos policialescos, a imagem de
“linha dura no combate ao crime” torna-se o principal mote de campanha.
• Disputa à prefeitura
Um dos programas
policialescos mais influentes na televisão brasileira é o Brasil Urgente, da
Rede Bandeirantes. No ar desde 1997, o programa tem alcance nacional, além de
possuir versões locais em todo o país. Desde 2003 à frente do Brasil Urgente, o
apresentador José Luiz Datena (PSDB) se afastou recentemente do programa para
concorrer à prefeitura de São Paulo. Um dos jornalistas mais populares do país,
Datena já foi apresentador do similar Cidade Alerta, na Record.
Outro programa
policialesco de referência é o Balanço Geral que, em Belo Horizonte (MG), é
transmitido pela TV Record Minas. Seu mais longevo apresentador, Mauro Tramonte
(Republicamos), também aproveitou a projeção alcançada à frente do programa
para pleitear a prefeitura da capital mineira. Tramonte terá a concorrência de
Carlos Viana (Podemos), jornalista que trabalhou no mesmo programa e fez
carreira em policialescos até 2018, quando se afastou para concorrer às
eleições, saindo vitorioso a uma vaga no Senado.
Já em Belém (PA), um
dos candidatos à prefeitura é Jefferson Lima (Podemos), que trabalhou como
apresentador e repórter em diversas rádios e TVs e atualmente conduz o
“Jefferson Lima na TV”, pela TV Grão Pará. O comunicador já liderou quadros com
forte apelo assistencialista, a exemplo do “Dia de fazer o bem”, em que
distribuía cestas básicas. Jefferson se elegeu suplente de vereador na capital
paraense em 2008 e, desde então, sem nunca abandonar seus programas, participou
de todas as eleições.
Outros municípios
brasileiros também terão a presença de policialescos disputando a vaga para
prefeito ou vice, como em Aracaju (SE), Alta Floresta (MT), Caruaru (PE),
Guarulhos (SP), Londrina (PR), Parnamirim (RN) e Santa Rita (PB).
• Concessões públicas promovendo agentes
públicos
Uma característica dos
programas pesquisados é o alinhamento com as polícias militar e civil,
enaltecendo a figura dos agentes, tratados como “guerreiros”. Apesar da
situação catastrófica na segurança pública em todos os estados brasileiros, as
emissoras não costumam debater a eficácia das políticas de segurança que
vigoram, tampouco modelos alternativos. O debate da política pública é ignorado
e o que prevalece é o personalismo que separa os “bonzinhos” dos “malvados”.
Dessa forma, o
trampolim eleitoral dos policialescos não promove apenas os jornalistas da
emissora. Diariamente, agentes de segurança pública estampam os programas,
dando entrevistas ou atuando em operações que são exibidas como um reality show
ou um filme de ação. Em 2024, ao menos seis estados terão candidaturas de
policiais que ganharam visibilidade na TV.
Candidata a vereadora
de Macapá (AP), a Delegada Sandra Dantas (PDT) já participou de diversos
episódios do Bronca Pesada (TV Cidade), concedendo entrevistas sobre operações
policiais. O programa apela para imagens sensacionalistas, como a exibição de
cadáveres, o que já lhe rendeu uma condenação pelo Tribunal Regional Federal
por exibir “imagens fortes (…) em horário acessível a crianças e adolescentes”,
de acordo com a sentença. Na ação, o Ministério Público Federal cita cenas
exibidas pelo programa, como a de uma mulher “mutilada com objeto cortante, em
busca de atendimento médico”.
Em Salvador (BA),
disputa a Câmara Municipal o Coronel Humberto Sturaro (PSDB), figurinha
carimbada em diversos podcasts, portais e programas ligados a policialescos. Em
2021, o militar foi para a reserva e em 2023 ganhou o cargo de coordenador em
uma prefeitura-bairro do município. Ainda assim, seguiu conduzindo ações
exibidas por policialescos. Um exemplo é a Operação de Sturaro na Gamboa,
divulgada pelo “Alô Juca” – o canal do YouTube se tornou um programa de TV
liderado por Marcelo Castro (TV Aratu/SBT). Ex-apresentador do Balanço Geral
(Record/BA), Castro foi demitido pela emissora após a descoberta de um esquema
de desvio de doações conhecido como “Golpe do Pix”, do qual tornou-se réu.
A pesquisa identificou
outras candidaturas de militares que aproveitaram a visibilidade em programas
policialescos para seguir o caminho da política. Na disputa para vereador, há
registros em Feira de Santana (BA), Goiânia (GO), João Pessoa (PB) e Uberlândia
(MG). Para a prefeitura, há registros em Cabedelo (PB) e Caucaia (CE).
• Quando o acusador é quem comete o crime
Os programas
policialescos costumam evocar para si o papel de legislador, acusador e juiz,
envolto em um manto de moralismo que define o “bem” contra “mal”. No polo
positivo, o comunicador que “não tem medo de bandido” e o agente de segurança
transformado em um “herói de farda” na luta implacável contra a
“criminalidade”. Do outro lado, suspeitos negros ou de bairros periféricos,
sentenciados e condenados ao vivo.
Essa narrativa
alimenta a ideia de que o melhor caminho para enfrentar os problemas de
segurança pública é o encarceramento em massa, a violação de direitos e a
atuação policial à margem da lei. Também define como principais responsáveis
pela criminalidade um perfil racializado. Não constam registros de que tais
programas tenham esculachado o ex-senador mineiro que teve seu helicóptero
apreendido com 450kg de pasta base de cocaína. Nem entrevistas com delegados
sobre casos envolvendo crimes cometidos por desembargadores, empresários
milionários ou oficiais da aeronáutica flagrados traficando drogas em voos da
Força Aérea Brasileira. O alvo tem classe social e um perfil racial definido.
No que pese a
histórica omissão do poder público em punir violações de direitos humanos na
mídia, alguns candidatos já foram condenados por crimes cometidos durante o
programa. É o caso do apresentador e candidato a prefeito de Alta Floresta
(MT), Oliveira Dias (PL), condenado por
homofobia, junto com a TV Nativa (Record), após debochar da orientação sexual
de um defensor público durante o programa Olho Vivo.
Já em Manaus (AM),
concorre a vereança Fofinho do Povo (Agir), que ganhou visibilidade como
repórter de rua no programa Novo Alerta (TV A Crítica), apresentado por Sikêra
Jr. Ainda que não tenha sido identificada nenhuma acusação contra Fofinho, são
conhecidos os crimes cometidos por Sikêra Jr. Em seus programas, o apresentador
incentiva agentes de segurança a cometerem crimes e destila ataques contra
mulheres, pessoas LGBTs e humilha publicamente suspeitos sem respeitar a
presunção de inocência ou o direito a um julgamento justo. O apresentador
responde a diversos processos, mas sua impunidade vem prevalecendo diante da
omissão do judiciário, como destaca Mabel Dias no artigo “Caso Sikêra Jr.: até
quando a Justiça ficará de olhos vendados para as violações na mídia?”.
Em Salvador (BA), em
2021, o apresentador Zé Eduardo (Bocão), do Balanço Geral (Record/BA), xingou e
acusou sem provas Eliete Paraguassu (PSOL), marisqueira de Ilha de Maré,
integrante da Articulação Nacional das Pescadoras e que havia sido candidata a
vereadora um ano antes. Após os ataques, Eliete, que tem uma trajetória de
ações e denúncias que questionam os grandes empreendimentos do entorno da ilha,
passou a sofrer ameaças. Em 2024, ela voltou a se candidatar e, em agosto deste
ano, comemorou em suas redes uma vitória na justiça em ação movida contra a
Record. Em publicação, Eliete afirmou que “essa decisão não é apenas uma
vitória pessoal, mas um marco na luta contra a desinformação e o racismo na
mídia”. Esse caso revela que os policialescos não apenas promovem futuros
candidatos, mas também utilizam o espaço midiático para atacar lideranças e
representações políticas.
• Casos de Família
Os programas
policialescos oferecem diariamente aos espectadores um projeto político de
sociedade que, em época de eleição, abastece propostas dos partidos. Além
disso, seus comunicadores também incidem eleitoralmente com apoios a terceiros.
É o caso do deputado federal e apresentador do Balanço Geral (TV
Vitória/Record) Amaro Neto, que tem feito campanha para diversos candidatos à
prefeitura no Espírito Santo. Já em Caucaia (CE), o atual prefeito e
ex-apresentador do Cidade 190 (TV Cidade/Record), Vitor Valim (PSB), busca
eleger seu sucessor, Waldemir Catanho (PT).
Em Sergipe, alguns
casos chamam a atenção. No município de Nossa Senhora do Socorro, o ex-prefeito
Fábio Henrique (União) e apresentador do Balanço Geral (TV Atalaia/Record) até
esboçou sua pré-candidatura, mas teve seus direitos políticos cassados após condenação
por improbidade administrativa. Em suas redes sociais tem declarado apoio a
candidatos à prefeitura de Aracaju e Nossa Senhora do Socorro.
Já em Itabaiana (SE),
o radialista e ex-vereador Alex Henrique (União) também está fora das eleições
e ainda foi cassado pela Câmara após condenação a mais de um ano de prisão pelo
crime de calúnia, por ter feito acusações sem provas contra o antigo prefeito.
À frente do Jornal da Capital (Capital FM), o jornalista já chegou a afirmar em
seu programa que a polícia deveria “dar trabalho ao Instituto Médico Legal”.
Inelegível, Alex Henrique apoia a candidatura de sua irmã, Elizamara de Alex
Henrique (União).
Na capital sergipana,
à frente do Patrulha da Xodó (Rede Xodó FM), Bareta passou a dividir a
apresentação do programa com seu filho, Bareta Filho (PRD), que disputará o
cargo de vereador, a exemplo de seu pai que, em 2022, concorreu para deputado
estadual. Outro herdeiro midiático-político de Bareta é o Cabo Amintas (União),
que pretende retornar à Câmara de Aracaju. Amintas foi repórter policial e
comentarista nos programas Balanço Geral e Programa do Bareta.
Em Salvador, concorre
à reeleição a vereadora Débora Santana (PDT), esposa de Uziel Bueno,
apresentador do Brasil Urgente (Band). Uziel, que já foi deputado e vereador,
não apenas apoia a sua esposa, como também destinava a ela participação em seu
programa, à frente do quadro Terça Gospel.
• A carne mais barata da TV: quando o
sangue do negro rende voto para o branco
O mapeamento permite
traçar um perfil das candidaturas policialescas: se autodeclaram homens (88%),
brancos (49%), cis gêneros (100%) e heterossexuais (100%). Esses dados dizem
muito sobre as características que predominam nesses programas: recorrem a valores
machistas (enaltecem a agressividade masculina e a violência como resolução de
conflitos), destilam LGBTfobia (muitas vezes surfando na moral religiosa) e
definem como alvo dos esculachos e corpos “matáveis” uma população de baixa
renda e majoritariamente negra.
De acordo com
pesquisador Paulo Victor Melo, no artigo “O papel da mídia brasileira na
consolidação da necropolítica”, os “discursos racistas e a banalização da
violência” pela mídia brasileira, sobretudo nos programas policialescos,
reforçam a necropolítica que vigora no país, concedendo uma “autorização” para
as políticas de Estado que “determinam quais sujeitos devem morrer e quais têm
o direito à vida”.
Para a jornalista e
coordenadora executiva do Intervozes, Ana Mielke, a exibição dos candidatos nos
programas policialescos desequilibra o sistema eleitoral. “Estes apresentadores
ou repórteres têm entrada diária na casa de milhares de pessoas em sua cidade,
estado ou país. São horas de exposição pública, muitas vezes promovendo
campanhas de marketing disfarçadas de ações solidárias”, afirma Mielke, que
defende um tempo maior de “quarentena” para os comunicadores que desejam se
candidatar.
Além disso, a
jornalista chama a atenção para os casos em que os apresentadores seguem “no
ar”, mesmo no exercício de um mandato. Para Ana Mielke, além dos conflitos
éticos e de interesse em conciliar as duas funções, os programas oferecem ao
político eleito “um canal direto com o público, podendo construir imaginários
sociais que beneficiem a aprovação de seus projetos”. Esse cenário é ainda mais
problemático, uma vez que as emissoras de rádio e TV atuam a partir de
autorizações e concessões públicas. “Além de desequilibrarem o jogo
democrático, obtendo vantagem indevida no processo eleitoral, estes
apresentadores estão a serviço de um discurso autoritário, repleto de populismo
penal e soluções fáceis para a violência”, conclui Ana Mielke.
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Os dados foram
coletados a partir de um trabalho coletivo realizado por membros do Intervozes:
Clarissa V. M. de Moura, Franciani Bernardes, Gabriel Veras, Iago Vernek
Fernandes, Mabel Dias, Nataly de Queiroz Lima, Paulo Victor Melo, Raquel Baster
e Rodolfo Viana, sob coordenação de Alex Pegna Hercog e apoio de Olívia
Bandeira.
Fonte: Le Monde
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