Dinheiro de Angola arrecadado por Pablo
Marçal vai para ONG em nome de bicheiro no sertão da Paraíba
Mais de R$ 4 milhões
arrecadados pelo empresário e coach Pablo
Marçal para a construção de casas para o
povoado de Camizungo, em Angola, foram destinados a duas ONGs em Prata, cidade
de 4 mil habitantes no interior da Paraíba. O Intercept
Brasil visitou o município para conhecer de perto as organizações beneficiadas
pela campanha de doações capitaneada pelo candidato do PRTB à prefeitura de São
Paulo nos últimos cinco anos.
Na cidade de pouco
mais de 4 mil habitantes estão sediados os CNPJs das ONGs Atos, responsável
pelas ações sociais na África, e Centro Vida Nordeste, que atua no semiárido.
Mas descobrimos que a sede da Atos sequer existia até o Intercept
revelar as falsas promessas de Marçal em Camizungo. Tem mais: a Centro Vida
Nordeste está cadastrada em nome do dono de uma casa de apostas ilegais na
cidade.
Em Prata, ninguém
conhece pessoalmente Pablo Marçal. A cidade foi envolvida na trama de Angola
por causa de Itamar Vieira, amigo do ex-coach e líder da ONG Atos em Angola,
responsável pelo projeto de Camizungo.
Vieira, hoje pastor da
Igreja Diante do Trono em Angola – fundada por Ana Paula Valadão, da família
criadora da Igreja Lagoinha –, convidou seu amigo Pablo Marçal a apoiar a
iniciativa missionária no país africano em 2019. Desde então, o ex-coach fez
várias campanhas de doações para “erguer uma cidade” em Camizungo – e elas vão
para os CNPJs das duas ONGs paraibanas.
Mas o uso de nomes de
um casal de moradores de Prata como representantes legais das ONGs envolvidas
no projeto em Angola tem causado caos no pequeno município.
“Estou há uma semana
sem dormir”, me disse José Leandro Ferreira. No papel, ele é o presidente do
Centro Vida Nordeste. Mas, nas ruas da cidade, ele é conhecido como Zé da
Banca, por ser dono da Confiança Sports, estabelecimento que oferece diversas
modalidades de apostas, incluindo o jogo do bicho.
“Todo mundo leu tua
matéria. E ninguém consegue acreditar que tem um valor tão grande passando aqui
pela cidade, enquanto a gente passa tantas dificuldades por aqui”, me disse uma
moradora. Por lá, de fato, mais de 50% da população depende do Bolsa Família,
segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
“Essas pessoas que
vocês disseram que são as donas desses CNPJs aí nem trabalham com isso. A gente
conhece todo mundo”, afirmou outro pratense. Zé da Banca confirmou o incômodo
com o clima na cidade: “Nossa vida virou um pesadelo. Ninguém para de falar disso
com a gente”.
E, de fato, ele não é
o único nessa situação. Quando chegamos em Prata, fomos buscar o endereço da
ONG Atos cadastrado nos dados da Receita Federal. Conversamos com diversos
moradores. Mas ninguém parecia conhecer ou sequer ter ouvido falar da Atos.
Bater em algumas portas confirmou a suspeita: a ONG era totalmente desconhecida
em sua própria cidade.
Em meio às conversas
nas ruas do município, encontramos Rosana Tavares da Silva Menezes, que, de
acordo com os dados fornecidos à Receita Federal, seria diretora da ONG Centro
Vida Nordeste. Em pleno horário de expediente, ela caminhava pela rua
empurrando um carrinho de criança.
Rosana não quis dar
entrevista e disse que o endereço ligado ao CNPJ da Atos é, na verdade, a casa
de Zé da Banca e de sua mulher, Milene Lima Sousa. Antes mesmo de chegar em
Prata, já sabíamos: pelo menos no papel, a esposa do bicheiro é diretora da ONG
Atos.
Rosana indicou que
procurássemos o casal. Para nossa surpresa, fomos informados por ela que Zé da
Banca nos aguardava, embora não tivéssemos marcado a visita. Quando cheguei à
residência, propus que gravássemos uma entrevista, mas eles sugeriram que fôssemos
visitar o que afirmaram ser “a nova sede da Atos”. Foi lá que toparam responder
às nossas perguntas.
Porém, o que
encontramos na sede da Atos foi uma grande encenação. Trata-se de uma sala em
um endereço diferente do registrado, com estantes e gavetas totalmente vazias e
materiais de construção espalhados pelo ambiente.
Diversos banners da
Atos pendurados na parede aparentavam estar recém-impressos devido ao forte
cheiro de tinta. Para se ter uma ideia, o casal teve dificuldade para encontrar
o interruptor para acender a luz do espaço.
O ambiente,
visivelmente, não funcionava como um escritório. Horas depois, em conversa por
telefone com o pastor Itamar Vieira, líder da ONG Atos em Angola, relatei o
episódio e ele me confirmou: a sede foi criada às pressas, logo depois da nossa
primeira reportagem sobre o tema.
Escrevi, então, ao Zé
da Banca. Ele me respondeu apenas: “Estamos à disposição para que tudo seja
esclarecido da melhor forma”.
·
Dono de casa de apostas afirma que trabalho
na ONG é ‘voluntário’
Na entrevista que
gravamos no escritório fake, Zé da Banca negou ser um laranja. Questionado
sobre como assumiu o posto, em 2016, respondeu: “Eu já conhecia o trabalho da
ONG aqui desde 1998. Ela é uma ONG criada aqui, são 26 anos. A gente já
conhecia as atividades e os projetos executados. Daí então, foi pela amizade”,
explicou.
“Como é uma cidade
pequena, eu conheci João Pedro. Ele viu meu potencial como uma pessoa que
poderia promover muitas ações pelo Centro Vida Nordeste e fez o convite pra
gente”, disse.
Zé da Banca citou o
convite no plural, provavelmente, porque seu irmão Luzimário Almeida também foi
cadastrado como dirigente da Centro Vida Nordeste entre 2015 e 2019. Não consta
que ele tenha, de fato, atuado na ONG.
João Pedro Salvador de
Lima, mencionado por Zé da Banca, foi prefeito de Prata de 1997 a 2000. Depois
que deixou a política, abriu diversas empresas e a ONG Centro Vida
Nordeste.
Foi a amizade do
ex-prefeito de Prata com o pastor Itamar Vieira, da Atos, que aproximou as ONGs
de Prata e Angola. “Ele conheceu o trabalho da Centro Vida e, no ano de 2017,
foi um técnico, um agrônomo, para aplicar uma tecnologia social chamada mandala
lá em Angola”, me contou Zé de Banca.
Hoje, segundo ele, uma
outra parceria consiste em “ser outro braço do Atos para a arrecadação e envio
das doações centralizadas ao Instituto Atos de Angola, como apoio
administrativo”.
Perguntei a ele se sua
atuação na banca de apostas não seria incompatível com o cargo de presidente da
ONG. Zé da Banca explicou que, embora se dedique à Centro Vida Nordeste,
precisa desempenhar outras atividades para sustentar sua família.
“Nós somos
voluntários, precisamos trabalhar. Não temos trabalho fichado, então nos
viramos de todas as formas”, disse ele, reforçando que o suposto trabalho na
Centro Vida é voluntário.
Nesse momento,
questionei se uma ONG com tantos projetos e parceiros, como a Centro Vida
Nordeste, não poderia remunerar seus funcionários. Zé da Banca, então, disse:
“O João Pedro tem outras empresas, a gente presta serviço terceirizado para as
empresas dele”.
·
Ex-prefeito e dono da ONG responde por
improbidade administrativa
É em uma fazenda de
propriedade de João Pedro que funciona a Centro Vida Nordeste. Ao contrário da
Atos, a organização é reconhecida pela atuação no território e até integra o
Conselho Nacional do Meio Ambiente, ligado ao Executivo Federal.
Enquanto falava
comigo, Zé da Banca atendeu o telefone e trocou mensagens com João Pedro. Por
duas vezes, o dono da casa de apostas pediu autorização para mandar uma foto
minha ao chefe. Depois da conversa, ele topou me levar à sede da Centro Vida
Nordeste, localizada na estrada que dá acesso à cidade.
Chegando na
propriedade, João Pedro não permitiu que gravássemos o áudio da entrevista. Ele
nos recebeu em uma área isolada de sua fazenda, onde mantém uma estufa para
plantação de sementes. Para chegar, tivemos que ir na garupa da motocicleta de
Zé da Banca.
Questionado sobre os
valores recebidos pela ONG Centro Vida Nordeste, ele se esquivou. Não revelou o
valor que foi repassado para Angola, mas alegou que tudo foi feito dentro da
lei. “Nós consultamos os advogados e também a Receita Federal”, afirmou.
A Centro Vida Nordeste
já entrou na mira da Justiça. Em 2017, João Pedro e a ONG foram acusados pelo
Ministério Público Federal de envolvimento em um esquema de desvio de verbas
públicas destinadas à alimentação escolar em Prata.
O MPF alegou que João
Pedro teria emitido recibos falsos referentes à compra de alimentos que não
foram efetivamente entregues às escolas. Segundo a acusação, a ONG servia como
veículo para a apropriação indevida de recursos do Programa Nacional de Alimentação
Escolar, e o próprio João Pedro, junto com outros envolvidos, teria obtido
ganhos ilícitos com a fraude.
No entanto, a denúncia
foi rejeitada em 2023. Ainda que tenha reconhecido a gravidade dos fatos
apurados, a Justiça Federal da Paraíba absolveu João Pedro e os outros réus
porque os fatos não estavam relatados na denúncia inicial do MPF.
Em 2013, o dono da ONG
já havia sido condenado pela Justiça Federal da Paraíba por improbidade
administrativa em um processo movido pelo Ministério Público Federal com o
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária e a Fundação Nacional de
Saúde. João Pedro e outros dois réus são acusados de crime que teriam causado
dano ao orçamento dos órgãos federais.
O dono da Centro Vida
Nordeste recorreu, mas a decisão mais recente, de
fevereiro de 2024, reafirmou a condenação. Ainda cabe recurso.
Além da ONG, João
Pedro mantém uma série de empresas registradas no mesmo endereço da Centro Vida
Nordeste. Mesmo com a condenação do dono na Justiça, uma delas, a Prata
Construções, é beneficiada por contratos com o poder público. Um deles tem sido
alvo de questionamento por parte de vereadores de Prata, por ter destinado mais
de R$ 375 mil para a construção de um parque no município.
No Executivo Federal,
onde participa das reuniões do Conselho Nacional de Meio Ambiente, João Pedro
também tem conquistado recursos. De acordo com dados do Portal da
Transparência, a Prata Construções também faturou R$ 298 mil para obras
custeadas pelo governo federal.
A empresa também já
disputou licitações na Companhia de Desenvolvimento do Vale São Francisco, a
Codevasf, e integra um consórcio que já foi contratado por órgãos federais e
estaduais.
·
Pastor diz que moradores de Prata são
‘gente de confiança’ de ex-prefeito
Quando retornei à João
Pessoa, recebi uma ligação de Angola. Do outro lado da linha, estava o pastor
Itamar Vieira. Ele não havia respondido aos meus contatos antes da primeira
reportagem sobre a atuação de Pablo Marçal em Angola.
Relatei a ele o
ocorrido em Prata naquele dia. Lamentei profundamente a exposição a que foram
submetidos Zé da Banca, Milene e Rosana, bem como a encenação para a nossa
reportagem de que a ONG Atos teria uma sede.
Itamar admitiu que o
novo escritório foi montado às pressas, mas disse que os moradores de Prata são
“gente de confiança” de João Pedro. Por fim, pediu uma chance para consertar
eventuais malfeitos na gestão da organização.
Pedi ao pastor que
confirmasse o valor exato repassado à Angola por meio das ONGs sediadas em
Prata. Itamar Vieira nos enviou a seguinte explicação: em um dos leilões,
promovido em 2023, quando foram arrecadados R$ 1,5 milhão, apenas R$ 1,1 milhão
teria chegado diretamente à comunidade.
No ano seguinte, em
2024, apesar de Marçal ter anunciado arrecadação de R$ 3 milhões, o valor real
seria R$ 2,7 milhões, sendo que só R$ 600 mil já teriam caído na conta da sede
angolana da ONG.
“As diferenças se
devem a não pagamentos por parte de alguns arrematantes e bens ainda não
vendidos, três carros, um apartamento, e outros itens que estão sendo pagos a
prestações”, escreveu Itamar. Quando questionado sobre outros leilões
promovidos por Marçal, disse que houve outro evento em 2019, mas que teria sido
arrecadado um valor baixo, suficiente apenas para quatro casas, cerca de R$ 200
mil.
Na contabilidade de
Itamar, também não foram consideradas as doações provenientes de apelos de
Pablo Marçal em peças divulgadas nas redes sociais, como os dois documentários
sobre Camizungo que acumulam mais de 1 milhão de visualizações no
YouTube.
O valor de R$ 4,5
milhões, portanto, é uma estimativa conservadora do montante que passou pelas
ONGs de Prata. Com isso, seria possível construir pelo menos 90 casas
sustentáveis, três vezes mais do que as que estão de pé.
Também procurei Pablo
Marçal para comentar as descobertas da reportagem e para que revelasse, de
fato, quanto dinheiro arrecadou para Prata. Não houve resposta.
Questionei Zé da Banca
e João Pedro sobre a relação de Pablo Marçal com as organizações de Prata. Eles
negam conhecer o ex-coach e afirmam ter apenas cumprido o papel de repassar as
doações, como fizeram com outros doadores.
Fonte: Por Paulo
Motoryn, em The Intercept
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