Os esquecidos do Médicos pelo Brasil
Muito por conta do
papel proeminente dos profissionais cubanos na primeira versão do programa, o
Mais Médicos foi uma das primeiras vítimas da gestão de Jair Bolsonaro. Ainda
no primeiro semestre de sua presidência, a iniciativa criada em 2013 foi bastante
desidratada e foi anunciada sua gradual substituição por um novo programa: o
Médicos pelo Brasil, desenhado pelo então ministro da Saúde Luiz Henrique
Mandetta.
Sua implementação foi
marcada por atrasos e opções questionadas por especialistas. O programa foi
anunciado em 2019, mas só fez sua primeira chamada três anos depois, em 2022.
Além disso, o Governo Federal criou uma pessoa jurídica de direito privado – primeiro
nomeada Adaps, depois transformada em AgSUS – para administrar suas atividades,
atraindo críticas à “privatização” da atenção básica e aos escândalos nessa
entidade. Quando o Médicos pelo Brasil finalmente foi implementado, pouco menos
de 5 mil dos postos oferecidos foram preenchidos, ficando vagos outros
milhares.
Agora, cinco anos
depois de sua criação e dois anos depois de seu primeiro chamamento de
profissionais, o Médicos pelo Brasil vive um impasse. Participantes do programa
ouvidos por Outra Saúde contam que o edital da prova em que foram aprovados em
2022 previa que, após os dois anos iniciais de formação, os bolsistas poderiam
fazer uma nova seleção para serem contratados pela Adaps/AgSUS com carteira
assinada e direitos trabalhistas – possibilidade que não existe no Mais
Médicos, e é apresentada, mesmo que com controvérsias, como uma “vantagem” do
Médicos pelo Brasil.
Porém, dados internos
da AgSUS vistos por este boletim indicam que há um grande número de bolsistas
que nem mesmo poderia pleitear essa contratação. As estatísticas, que
apresentamos a seguir, revelam que uma parcela alta dos participantes da
especialização em Medicina de Família e Comunidade não chegou nem perto de
realizar as atividades exigidas para completar o programa, como as tutorias,
tarefas e o TCC. Ainda que haja algum nível de responsabilidade individual dos
que estão nessa situação, tanto bolsistas quanto tutores que entrevistamos
apontaram desorganizações do programa – em especial nas tutorias – que
contribuíram para esse cenário.
Além disso, faltando
muito pouco para que, em outubro, os participantes que entraram na primeira
chamada do programa deixem de receber suas bolsas, não há nenhuma perspectiva
de que a seleção prometida ocorra. Constantemente questionada pelos médicos, como
observou Outra Saúde em mensagens de grupos internos do programa, a AgSUS
responde com pronunciamentos genéricos – e não é impossível, dizem os
bolsistas, imaginar que o fim do Médicos pelo Brasil esteja no horizonte,
devido à sua duplicidade com o novo Mais Médicos, considerado um êxito pelo
governo Lula.
• Especializadas questionam programa desde
sua criação
Alguns elementos da
estrutura do programa são idênticos ao do Mais Médicos. Seus quadros são
compostos por bolsistas, que durante 2 anos realizam uma formação inicial que
os prepara para seguir atuando na atenção básica com o título de especialistas
em Medicina de Família e Comunidade, e tutores, que supervisionam sua
trajetória de estudos. Ambas as categorias cumprem uma carga expressiva de
horas semanais atendendo no Sistema Único de Saúde (SUS) e são selecionadas por
meio de provas – sendo os primeiros remunerados com bolsas e os últimos,
contratados na modalidade CLT.
Porém, desde seu
início, outros aspectos do Médicos pelo Brasil e a Adaps/AgSUS, agência criada
para geri-lo, foram alvos de críticas duras dos mais proeminentes estudiosos da
atenção básica e da Medicina da Família e Comunidade. Muitas delas foram veiculadas
neste boletim.
Antes mesmo do
primeiro edital, a pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz
(ENSP/Fiocruz) e especialista em Atenção Primária em Saúde (APS), Lígia
Giovanella, alertou em texto publicado em Outra Saúde que “modalidades de
gestão como a da Adaps ocorrem sem garantias, com frouxo controle público e
baixa capacidade de controle institucional e social”.
De fato, uma
reportagem de 2023 da Piauí viria escancarar uma série de irregularidades na
Adaps/AgSUS. A revista revelou favorecimento de amigos e parentes dos diretores
indicados pelo governo Bolsonaro, servidores cedidos pelo Ministério da Saúde
recebendo salário duplo e um cenário de assédio moral generalizado.
Precisamente por trabalharem em um ente de direito privado e não serem
servidores concursados, os contratados da Adaps/AgSUS estavam suscetíveis à
demissão no caso de desalinhamento político com a gestão.
No período das
denúncias, o presidente do Conselho Deliberativo da Adaps era o secretário de
Atenção Primária em Saúde do governo Bolsonaro, Raphael Câmara Parente,
conhecido militante antiaborto, relator da recente resolução ilegal do CFM
contra o aborto legal e recém-reeleito conselheiro da entidade.
Além disso, Giovanella
também apontava em diversas previsões contidas no ato governamental que criou o
Médicos pelo Brasil um “caminho para a privatização da APS, que tem sido
considerada a parte mais estatal da rede de serviços do SUS, com uma enorme vocação
não mercantil”.
No mesmo sentido, o
sanitarista Heleno Corrêa Filho afirmou em entrevista a este boletim que a
Adaps foi criada como “uma brecha para que o pessoal a favor do Estado mínimo
pudesse penetrar” na Saúde, mesmo com a entidade apresentando inconsistências
jurídicas: “Se foi criada por lei, não poderia ser regulamentada por decreto.
Se foi regulamentada por decreto, não poderia existir”, ele explica. O médico
argumenta que o “modelo de criação de agências para substituir o Estado” é, em algum nível, um
caminho para a privatização da saúde pública.
De forma relacionada,
a própria contratação via CLT, apresentada pelo governo Bolsonaro e vista pelos
bolsistas como um importante atrativo, é controversa. De acordo com o antigo
titular da SAPS, a remuneração é 25% maior que a do antigo programa criado por
Dilma, o que estimularia (e, efetivamente, parece ter estimulado alguns) os
profissionais. Contudo, sua ampliação concorreria para a redução dos servidores
de carreira que atendem o SUS – o que, para Heleno, também impulsiona a
precarização dos serviços de saúde.
Bolsistas e tutores
revelam problemas
Além dos problemas
estruturais e de conceito apontados pelos pesquisadores, os próprios
participantes do programa relatam dificuldades de cunho prático. Apesar da
necessidade de realizarem um grande número de tutorias presenciais e remotas
para receberem o título ao fim da formação, nem todos os bolsistas foram
ligados a um tutor de imediato, outros tutores foram sobrecarregados com um
grande número de bolsistas a supervisionar, e a Adaps/AgSUS nem sempre esteve à
altura de responder aos imprevistos.
“Alguns bolsistas da
primeira leva ficaram muito tempo sem as tutorias. Em teoria, elas deveriam ser
a cada três meses. Mas antes do programa, falaram que nós tutores teríamos sete
bolsistas, e depois aumentou para dez. Isso exigia mais trabalho, mais tempo,
toda uma logística. Então isso acabou atrasando”, conta o tutor que participa
do programa em um estado do Nordeste. Assim como os demais entrevistados, ele
preferiu se manter anônimo.
Um dos bolsistas
corrobora o relato. “No meu caso, eu fiquei quase um ano sem tutoria. Foi dor
de cabeça no começo, mandei muitos e-mails e só depois obtive resposta. Meu
tutor trocou mais de uma vez. Um dos tutores por quem passei estava em uma
cidade a 600 km do município em que eu estava trabalhando, e isso dificultava
muito as tutorias presenciais”, ele conta.
Dados compilados pela
AgSUS vistos por Outra Saúde sugerem que esses entraves tiveram consequências
na capacidade dos bolsistas de concluir o curso de formação do programa. As
informações a seguir foram divulgadas pela própria agência, em um vídeo interno
e não-listado.
Como explicamos, os
bolsistas poderiam receber o título de especialistas em Medicina de Família e
Comunidade caso cumprissem com uma série de tarefas ao longo de 2 anos,
divididos em atividades EaD, tutorias clínicas (presenciais e remotas) e
atividades eletivas. Em nenhum dos três casos, uma maioria dos bolsistas está
apta a se formar – e arrisca desligamento do programa sem conseguir o título.
Em agosto de 2024, 12%
dos participantes do programa já estavam reprovados, sem possibilidade de
recuperação, por não realizarem os módulos online das atividadas EaD
obrigatórias para a conclusão da formação.
Além disso, no mesmo
mês, apenas 33% dos bolsistas com possibilidade de aprovação estavam em dia com
as tutorias, com os dois terços restantes divididos em situações nomeadas de
“crítica”, “muito crítica” ou “extremamente crítica” pela própria AgSUS.
Por fim, mais de 68%
dos bolsistas não haviam cumprido com as 120 horas de atividades eletivas
necessárias para concluir o processo.
Além disso, um
bolsista relata que, devido a algum problema não esclarecido, o sistema da
AgSUS por vezes parecia não computar as atividades efetivamente concluídas. “Eu
recebi várias vezes mensagens no celular e e-mails me alertando que eu não
teria entregue várias tarefas que eu havia feito. Depois que eu mandava
comprovação da realização, eles me respondiam com um ‘joinha’ no WhatsApp, mas
voltava a acontecer”, ele diz.
De acordo com tutores
e bolsistas, a agência realiza plantões regulares para sanar dúvidas e oferecer
orientações aos participantes do programa. Apesar disso, os dados da própria
AgSUS parecem transparecer uma baixa eficácia das ações.
A necessidade de
reforçar e melhorar a atenção básica
Não obstante as
deficiências do Médicos pelo Brasil, o “clima” para sua criação e manutenção
também se sustentou, em parte, pelas deficiências da primeira versão do Mais
Médicos. A Outra Saúde, o sanitarista Heleno Corrêa Filho havia descrito como
“buracos” do programa em sua fase inicial a “ausência de vínculos empregatícios
com direitos previdenciários” para os profissionais e a e a “falta de bônus
para promoções e incorporação ao SUS daqueles que desejassem ficar nos locais
para onde foram enviados”.
De fato, estes são os
elementos considerados benefícios do programa de Jair Bolsonaro pelos bolsistas
e tutores. “Eu não conheço nenhuma prefeitura de interior que contrate os
médicos com todos os direitos certinhos, FGTS, férias, décimo terceiro. E esse
programa tem isso, né? O Médicos pelo Brasil tem inclusive um plano de
carreira”, diz o tutor ouvido.
Dois dos bolsistas do
Médicos pelo Brasil ouvidos pela reportagem passaram precisamente por essa
situação: antes, haviam sido do Mais Médicos, e ao fim de sua bolsa, não
puderam ficar nas cidades onde atendiam e haviam criado vínculos com a
população, o que os desagradou.
“Quando teve o
primeiro Mais Médicos, eu passei para uma cidade próxima de onde eu moro.
Fiquei três anos lá, mas quando veio o Médicos pelo Brasil, eu também passei, e
sinceramente, isso me trouxe uma esperança. Isso porque a atenção básica,
antes, deixava um pouco a desejar na questão de evolução de carreira. Nele, a
gente teve uma melhoria salarial e o repasse do Governo Federal nunca atrasou,
algo muito diferente da situação das prefeituras. Além disso, eu pude ficar na
minha própria cidade natal [um município de 10 mil habitantes nas serras de um
estado do Nordeste]”, revela um dos bolsistas.
“Além dos direitos
todos e das férias, tinha essa promessa de, depois dos dois anos de formação,
pegar uma CLT e ter um plano de carreira. Associado a isso, eu tinha a
perspectiva de trabalhar perto da minha família. Além disso, o curso foi muito
bom, trouxe muitas capacitações sobre diversos temas e doenças, estimulou a
gente a seguir estudando e se especializar mesmo na Medicina de Família e
Comunidade”, avalia outro.
Assim como no Mais
Médicos, os profissionais em formação estavam ligados a universidades públicas
parceiras do programa. No caso do Médicos pelo Brasil, a especialização em MFC
foi operacionalizada pela UNA-SUS (Universidade Aberta do Sistema Único de Saúde,
uma plataforma pública) junto de instituições como Fiocruz Mato Grosso do Sul e
UFMA.
Por fim, outro
elemento elogiado é o estímulo à aproximação com a Medicina de Família e
Comunidade, especialidade que sofreu cronicamente com baixa procura no Brasil.
“Existe essa falsidade de que não é desafiador, mas é muito gratificante poder
acompanhar o pré-natal de uma mãe, fazer a puericultura com a criança e depois
atender o adolescente. Eu acredito muito nesse modelo, é na atenção básica que
a gente resolve mais de 90% dos problemas”, complementa um bolsista.
Ao recriar o Mais
Médicos em 2023, com o nome Mais Médicos para o Brasil, o governo Lula buscou
responder a algumas das críticas. “Queremos melhorar a fixação de médicos
brasileiros no serviço. Os participantes relatam três grandes motivos a
atrapalhar sua continuidade no programa: busca por melhor formação, demandas
familiares e oportunidades profissionais. Por isso precisamos focar nisso e
vamos oferecer prova de título para quem permanecer 4 anos em áreas
vulneráveis”, disse a ministra da Saúde, Nísia Trindade, na cerimônia de
relançamento do programa.
Como noticiou Outra
Saúde à época (a tabela completa pode ser vista nesta matéria), houve uma série
de mudanças, a maioria atendendo a reivindicações da Sociedade Brasileira de
Medicina de Família e Comunidade (SBMFC).
Entre as novidades,
houve a criação de um incentivo financeiro para os médicos que permanecerem
mais de 36 meses em município de grande vulnerabilidade e baixa assistência, a
introdução de licenças maternidade e paternidade, a ampliação da oferta de oportunidades
de formação – como especializações, mestrados e aperfeiçoamentos – e a extensão
da duração da bolsa de 3 para 4 anos, podendo ser prorrogada por igual período.
Com 4 anos garantidos de atuação na área, os bolsistas do Mais Médicos passaram
também a estar aptos a prestar a prova de título da SBMFC e se tornarem
especialistas, por um caminho levemente diferente do que existe no Médicos pelo
Brasil.
Um “atrativo” do
programa de Bolsonaro para as regiões desassistidas, porém, não foi junto: a
possibilidade de contratação CLT oferecida pela Adaps/AgSUS. Seguindo os
princípios de descentralização do SUS, a atenção básica é responsabilidade
prioritária dos municípios. Além de arriscar a redução do número de servidores
concursados atendendo no SUS, o Governo Federal poderia entrar em contradição
com diretrizes centrais da Reforma Sanitária caso abraçasse a ideia.
• O Médicos pelo Brasil tem futuro?
No contexto do impasse
entre os problemas do programa e a importância da presença desses quase 5 mil
profissionais para a atenção básica em regiões desassistidas do país, a data
cada vez mais próxima do fim das bolsas deixa apreensivos os participantes do
Médicos pelo Brasil. O programa continuará existindo? Ou será descontinuado
pelo Ministério? A seleção prometida no edital para a contratação dos
ex-bolsistas que queiram seguir atuando na atenção primária realmente
acontecerá? Eles serão direcionados para o Mais Médicos?
Em junho, a AgSUS
postou um comunicado em seu site que diz: “A AgSUS assegura que não haverá
interrupção no pagamento das bolsas para os médicos participantes do programa,
bem como a assistência à saúde da população será mantida enquanto ocorrem as
tratativas junto ao Ministério da Saúde”. Porém, nesta semana, o pronunciamento
foi deletado sem maiores explicações. Ele ainda pode ser lido na íntegra aqui,
por meio da ferramenta WebArchive.
Nos grupos de WhatsApp
e Telegram mantidos pela AgSUS, a que Outra Saúde teve acesso, crescem
diariamente as perguntas dos participantes do programa sobre seu futuro –
respondidas de forma meramente protocolar. “Estamos em tratativas com o MS e
atualizaremos quando houver alguma novidade”, diz repetidas vezes há semanas
uma conta oficial da agência. Apesar das afirmações de que as bolsas serão
mantidas e de que não haverá desassistência, a exclusão do pronunciamento abre
espaço para dúvidas.
Enquanto aguardam,
alguns dos bolsistas especulam sobre o que gostariam que acontecesse. “No
melhor dos mundos, acho que o que nós que fizemos a especialização em Medicina
de Família e Comunidade nos últimos 2 anos iríamos querer é que o edital fosse
seguido e a seleção para contratações acontecesse”, confidencia um
entrevistado.
Apesar disso, “a
percepção compartilhada pela maioria dos bolsistas é que o programa vai
acabar”, diz um deles. Muitos reconhecem que há uma certa duplicidade – apesar
de diferenças como a da forma de contratação – com o novo Mais Médicos,
recriado pelo governo Lula em 2023, e que isso “pesa contra” o programa criado
por Bolsonaro. O que mais os incomoda é que “a gente não tem nenhuma informação
sobre isso, e isso deixa toda uma ansiedade”, lamenta outro.
Na visão do Ministério
da Saúde, o novo Mais Médicos tem sido um sucesso. Mais de 18 mil vagas foram
preenchidas desde o ano passado, quase 4 vezes o contingente do Médicos pelo
Brasil. Além disso, alguns dos erros da primeira versão do programa foram corrigidos.
Esses elementos podem corroborar a impressão dos bolsistas do programa
“concorrente” de que suas atividades estão em risco.
Apesar disso, causa
espanto – até mesmo pelo ângulo de um cálculo pragmático de relações públicas –
imaginar que o Governo Federal possa deixar os quase 5 mil participantes do
Médicos pelo Brasil sem uma alternativa clara para seguir na atenção básica do
SUS. Porque abrir brecha para ganhar a antipatia de tantos profissionais?
A reportagem pediu ao
Ministério da Saúde um posicionamento sobre seus planos para o Médicos pelo
Brasil, mas não obteve resposta. O espaço segue aberto para qualquer
pronunciamento da pasta.
Fonte: Por Guilherme
Arruda, em Outras Palavras
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