sábado, 8 de julho de 2023

Resgatar a Venezuela após fracasso das sanções dos EUA favorece o Brasil, diz analista

Presidente Lula aposta na reintegração da Venezuela ao cenário regional, apesar da forte oposição de países como Chile, Uruguai e Paraguai. A Sputnik Brasil conversou com especialista para saber qual o melhor caminho para retomar as relações com Caracas e o que o Brasil tem a ganhar com isso.

O início da presidência brasileira no Mercosul coloca a volta da Venezuela ao bloco no topo da agenda. Ao assumir o cargo temporário, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pediu que "problemas de democracia" no país fossem encarados pelos parceiros do bloco.

"Com relação à questão da Venezuela, gente, todos os problemas que a gente tiver de democracia, a gente não se esconde deles, a gente enfrenta", disse Lula durante a Cúpula de Líderes do Mercosul.

Assim como Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, a Venezuela é membro pleno do Mercosul. No entanto, o país foi suspenso do bloco em 2017, por não atender às cláusulas democráticas impostas pelo Protocolo de Ushuaia.

Desde então, a Venezuela foi alvo de política ativa de isolamento, que buscava impedir a participação de Caracas em foros regionais. Além disso, o país é alvo de sanções econômicas impostas unilateralmente pelos Estados Unidos, que impedem a sua participação plena no comércio internacional.

De acordo com o professor de História da América da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Rafael Pinheiro de Araújo, o presidente Lula acerta ao buscar reintegrar Caracas às relações internacionais.

"O isolamento e o embargo econômico não contribuíram em nada para a solução da crise venezuelana, pelo contrário geraram mais de 7,2 milhões de emigrantes, 6,2 milhões dos quais se encontram espalhados pela América Latina", disse Araújo à Sputnik Brasil. "Está provado que as sanções só prolongam a crise e punem os mais humildes."

Além disso, a imposição do embargo econômico por parte dos EUA e aliados contra a Venezuela "legitimou o discurso anti-imperialista do governo de Maduro e deu carta branca para medidas eleitorais contestadas".

"Resgatar a Venezuela é o correto a ser feito, apesar de que o Brasil ainda não parece ter encontrado a forma ideal de lidar com essa questão", considerou Araújo.

Por onde começar?

Os ganhos econômicos da reintegração venezuelana esbarram em obstáculos políticos, impostos por diversos governos do continente americano. Durante a reunião do Mercosul, Uruguai e Paraguai não se mostraram dispostos a dialogar com o governo Maduro.

A Argentina, aliada de Lula nessa empreitada, pode mudar de lado após as eleições presidenciais, previstas para outubro de 2023.

"Independentemente do que acontecer com a Argentina, já sabemos que Uruguai e Paraguai vão impor resistência", disse Araújo. "A volta da Venezuela para o Mercosul exigirá negociações difíceis."

O especialista ainda nota que a oposição a Maduro não é monopólio de governos de direita, uma vez que o presidente esquerdista do Chile, Gabriel Boric, também é contra o diálogo com Caracas.

Nesse sentido, o canal mais favorável para a normalização das relações diplomáticas com a Venezuela é o bilateral. Brasil e Venezuela já retomaram sua agenda, como demonstrado durante a visita de Maduro a Brasília em maio deste ano.

Na ocasião, o Brasil considerou a renegociação da dívida venezuelana, estimada em US$ 1 bilhão pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, conforme reportou o jornal O Globo.

Apesar da retomada econômica venezuelana ainda ser tímida, o retorno de Caracas ao Mercosul garantiria a abertura de importante mercado para o Brasil, além de acesso a recursos energéticos relevantes.

"A Venezuela é a Arábia Saudita das Américas. Então mesmo em crise, é um parceiro interessante não só para o Brasil, mas para a América Latina como um todo", concluiu Araújo.

 

Ø  Conter a inflação e encerrar o bloqueio: qual o caminho para ‘desdolarizar’ a Venezuela

 

Sofrendo os impactos da crise econômica e da hiperinflação, a Venezuela convive hoje com uma espécie de sistema plurimonetário informal que atinge praticamente todos os setores da economia. Na prática, esse efeito colateral permite que os venezuelanos possam utilizar tanto a moeda nacional, o bolívar, quanto o dólar para realizar pagamentos e transações. A divisa estadunidense, que circula livremente de maneira legal desde 2021, serviu como uma válvula de escape para as graves desvalorizações que o bolívar sofreu na última década e viabilizou uma modesta recuperação econômica que começou a dar frutos há pelo menos dois anos.

A complexa situação financeira não impede que o governo cogite abandonar o uso do dólar. Ainda que não tenha apresentado um programa formal de desdolarização, com metas produtivas e medidas monetárias para a tarefa, membros do Executivo passaram a sinalizar positivamente a projetos que não dependam da moeda estrangeira.

No início de junho, quando participou de um fórum sobre economia realizado em São Petesburgo, na Rússia, a vice-presidente da Venezuela que também é ministra da Economia, Delcy Rodríguez, levantou a possibilidade de interromper a utilização da moeda estadunidense no comércio petroleiro.

O presidente Nicolás Maduro também chegou a comentar a proposta, dizendo que ela ajudaria a aliviar os efeitos das sanções impostas pelos Estados Unidos. “Os BRICS anunciaram que na próxima reunião vão discutir a proposta de criar uma moeda. Um mundo novo para melhor, é esse mundo que está surgindo. Por isso temos que estar atentos a essas iniciativas e ver como a Venezuela vai se inserindo na iniciativa da desdolarização do mundo. Esse é nosso caminho, um caminho novo, de uma nova economia, de liberdade, onde não se utilizem as moedas para castigar e sancionar os povos”, disse o presidente durante uma transmissão da emissora estatal VTV no final de junho.

O enfrentamento à hegemonia do dólar vem ganhando destaque em debates econômicos no chamado sul global, principalmente após países como China e Rússia, que sofrem sanções financeiras dos Estados Unidos, começarem a cogitar mecanismos de pagamentos e transações em suas próprias moedas. Para a Venezuela, que enfrenta enormes dificuldades para negociar seu petróleo no mercado internacional por conta do bloqueio, o surgimento de alternativas monetárias traria benefícios e poderia acelerar a recuperação econômica.

Analistas, entretanto, afirmam que o caminho é cheio de obstáculos e implicaria em mudanças internas também. Para o ex-ministro da Economia da Venezuela Luis Salas Rodríguez, o abandono do dólar como moeda global é algo inevitável, “como ocorreu com o florim holandês e com a libra esterlina”.

“Agora a pergunta é: qual moeda será a substituta? Será o yuan chinês, uma nova moeda global comum, uma criptomoeda, ou distintas moedas de uma só vez? Eu acredito que estamos caminhando a um longo período de transição no qual coexistirão diversas moedas até que alguma delas assumir esse lugar hegemônico”, disse ao Brasil de Fato.

Rodríguez ainda menciona iniciativas regionais como as propostas sul-americanas para a criação de moedas comuns que seriam utilizadas em transações entre os países da região. No entanto, o economista afirma que nenhuma dessas propostas prevê a criação de uma nova hegemonia monetária. 

“O que pode acontecer a curto prazo é uma espécie de moeda que funcione como unidade de conta, como mecanismos de transação que estejam ancorados no valor das demais moedas. Isso seria um passo rumo à desdolarização, mas não estaria previsto o fim da hegemonia do dólar”, afirma.

O ex-ministro também alerta para os “traumas que uma transição desse tipo poderia trazer”, já que Washington se esforça para manter o posto de única emissora de moeda global do planeta. “Boa parte dos avanços no processo de desdolarização que estão ocorrendo hoje na economia russa e chinesa, por exemplo, passa necessariamente pelos conflitos que ambos os países têm com os Estados Unidos e com a União Europeia. Devemos evitar isso na América Latina, realizando essa transição com paciência e improvisando o menos possível”, diz.

Mas e o bolívar?

Se no plano internacional uma desdolarização implicaria que outras divisas se fortalecessem tanto quanto ou mais do que o dólar e os projetos de moedas comuns em espaços multilaterais de comércio – como o Mercosul ou o BRICS – estariam diretamente influenciadas pelas perturbações geopolíticas, a nível nacional o cenário é ainda mais complexo.

Os dólares que inundaram a economia a partir de 2018 e que só foram regularizados em 2021 deixaram o país ainda mais suscetível às perturbações externas, além de retirar poder de compra de trabalhadores que seguem recebendo salários em bolívares e sofrem com as altas diárias da taxa de câmbio.

Apesar disso, o processo não dá sinais de esgotamento. Segundo dados do Observatório Venezuela de Finanças, entidade privada ligada à oposição, o dólar segue muito presente na vida cotidiana dos venezuelanos. No mês de março, 47% de todos os pagamentos no país foram realizados na moeda estadunidense e 97% dos comércios afirmaram que basearam seus preços de acordo com o valor da divisa.

Para o professor de Economia da Universidade Central da Venezuela (UCV) Elio Códova Zerpa, um processo de desdolarização interna, que implicaria em um resgate de confiança na moeda nacional, poderia auxiliar na recuperação do poder de compra dos venezuelanos, mas tal movimento deveria ser acompanhado por medidas econômicas e políticas tomadas pelo governo.

“O que o venezuelano quer é estabilidade, tranquilidade, que seu salário possa chegar até o fim do mês e, nesse contexto, a desdolarização aponta para isso se nós pudermos chegar a um acordo e estabelecer mecanismos de compensação nesse bloco de economias emergentes. Claro que, em paralelo, deve ser feito um trabalho interno de estabilizar uma economia que tem mais de 930 sanções e que a principal fonte de ingressos, o petróleo, não pode ser vendida livremente”, afirma.

O professor também alerta para os riscos inflacionários que uma retirada massiva de dólares da economia sem planejamento poderia trazer, principalmente nesse momento em que o país, apesar de ter abandonado a hiperinflação há um ano e meio, ainda sofre com a pior inflação do continente. Segundo dados do Banco Central da Venezuela, a inflação interanual registrada no mês de maio ficou em 429,2%. Para efeitos de comparação, a Argentina, que possui o segundo pior índice da região, registrou no mesmo período um aumento interanual nos preços de 114,3%.

Zerpa, no entanto, afirma que sair da esfera do dólar de maneira controlada poderia trazer benefícios inclusive para conter os preços em moeda local. “A recente valorização do dólar significa o empobrecimento do resto das moedas, então a taxa de câmbio se move e, em consequência, os preços sobem em moedas locais. Esse fenômeno ocorre de maneira independente dos problemas estruturais da nossa economia”, diz.

Entre o político e o econômico

A relação do governo do presidente Nicolás Maduro com o processo de dolarização foi, ao longo dos anos, repleta de mudanças. Entre 2014 e 2017, período em que o país entrou em recessão e começou a sentir os efeitos nocivos da queda nos preços do barril de petróleo, o mandatário classificava a entrada de dólares na economia comercial do país como uma tentativa de desestabilização que partia dos Estados Unidos.

Nesse momento, a Venezuela ainda mantinha um rígido controle cambial que proibia a livre transação de moedas estrangeiras e mantinha todos os dólares sob controle do Estado, obrigando empresas e pessoas físicas a negociarem diretamente com as autoridades através da Comissão Nacional de Administração de Divisas (Cadivi), substituído em 2014 pelo Centro Nacional de Comércio Exterior (Cencoex).

O mecanismo, criado em 2003 pelo então presidente Hugo Chávez para impedir a fuga de capitais durante o locaute petroleiro daquele ano, foi praticamente abolido em 2019, após o Banco Central adotar uma política de câmbio flutuante e operar em mesas de câmbio através dos bancos nacionais. Na prática, a decisão do governo Maduro liberou os dólares na economia, o que foi formalizado em 2021 com a autorização para abertura de contas bancárias em moeda estadunidense.

As mudanças nas normas vieram acompanhadas de uma mudança no discurso do governo, já que o presidente venezuelano deixou de lado o discurso confrontativo contra a moeda estrangeira e passou a classificar o processo com mais pragmatismo, chegando a afirmar que ele era “uma válvula de escape”.

“São contradições que devem ser entendidas nos diferentes contextos políticos”, afirma o ex-ministro Luis Salas Rodríguez. Para o economista, o termo correto para classificar as transformações monetárias que ocorreram no país seria “desbolivarização”, já que foi a moeda nacional que foi sendo substituída por outras divisas, inclusive pelo peso colombiano e pelo real brasileiro nas regiões de fronteira. “A nível comercial, claro, podemos dizer que há uma dolarização espontânea, parcial, mas esse fenômeno é típico de qualquer processo de hiperinflação ao longo da história”, diz.

Rodríguez explica que o governo reconheceu e normalizou a utilização de dólares na economia com o objetivo de conter a hiperinflação, uma vez que precisava reduzir a liquidez monetária em bolívares sem que isso implicasse em uma redução drástica no consumo. 

“O governo fez do problema da dolarização uma virtude para poder aplicar uma política anti-inflacionária que previa uma restrição máxima na circulação de bolívares, algo que geraria uma contração econômica pelo choque na demanda. Essa brecha foi resolvida pelo uso do dólar, que permitiu manter certa dinâmica na economia”, afirma.

No entanto, o ex-ministro aponta que a solução começa a demonstrar efeitos colaterais, já que o plano está diretamente associado à restrição de liquidez e, em consequência, um aumento de bolívares na economia poderia implicar em um novo processo inflacionário.

“O governo está sofrendo o vício de sua própria virtude, ou seja, sofrendo com efeitos colaterais de seu próprio êxito. Foi uma política que teve êxito no momento de combater a hiperinflação, mas como se baseia em uma restrição de bolívares, qualquer medida de estímulo ao bolívar pode disparar um novo processo inflacionário”, diz.

Para Rodríguez, essa contradição na política econômica do atual governo seria um dos principais obstáculos a uma iniciativa de desdolarização. “Se vamos desdolarizar, precisamos aumentar os meios de pagamentos em bolívar e isso pode disparar a inflação. O Banco Central não pode emitir mais bolívares se não resolver os problemas estruturais de reserva que estão diretamente ligados às sanções. Retirar todos os dólares da economia de maneira massiva e sem um plano é impossível”, conclui.

 

Fonte: Sputnik Brasil/Brasil de Fato

 

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