Pedro Marin:
Democracias absolutas
Para
qualquer um que busque analisar o mundo, é coisa muito útil ter uma consciência
algo profunda da realidade do próprio país, e ter um conhecimento amplo, ainda
que com pouco aprofundamento, sobre países diversos, de regiões e tradições
distintas. Pesar bem estes fatos antes de apontar dedos para este ou aquele
governo é um bom antídoto contra a desonestidade e a injustiça.
Na
Terra há mais de 190 países, onde vivem dezenas de milhares de povos, com
milhares de religiões, culturas, formas de organização e histórias. Mas há quem
busque sintetizar essa enormidade de formações sociais em dois conceitos rijos:
ou os regimes políticos sob os quais os homens vivem são ditaduras, ou são
democracias. Não é uma opção de menor importância: trata-se de medir a experiência
política e a vida cotidiana dos povos que habitam nos 149 mil km² de terras
emersas desse mundo em código binário, inflexível e absoluto.
Em
uma entrevista recente à Rádio Gaúcha, ao tratar da Venezuela, o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva expôs um modo de ver as coisas diferente
desse binarismo conceitual: "A Venezuela tem mais eleições do que o
Brasil. O conceito de democracia é relativo para você e para mim. Eu gosto de
democracia, porque a democracia que me fez chegar à Presidência da República
pela terceira vez". Foi declaração suficiente para que os paladinos
liberais na imprensa, cerrando fileiras com a extrema-direita nativa (não é a
primeira vez),
colocassem seus fraques e adotassem a postura fidalga de costume, condenando a
fala do presidente como um cruzado condena o pecador.
Foram
muitas as argumentações (embora bem fracos os argumentos) nesta onda
condenatória que mais se vale da construção de aparências do que da razão, mas
todas partiam, por óbvio, do princípio de que não há nada de relativo na
democracia. Assim, talvez valha avaliar alguns comportamentos presentes em
países que esses acusadores não duvidam constituírem democracias absolutas.
A
França, exportadora de um certo padrão civilizacional que muito excita os
higiênicos articulistas no Brasil, viveu há pouco uma onda de
revolta após
a morte de um jovem de origem argelina, Nahel M., nas mãos da polícia. Dezenas
de milhares de policiais foram postos nas ruas para reprimir as revoltas,
levando à prisão quase 3 mil pessoas até o momento em que este artigo é
escrito. Em Paris, uma manifestação no último sábado (8) chegou a ser proibida,
pelo "risco de perturbação da ordem pública". Estes atos ocorreram
meses após o governo francês ter usado
o artigo 49.3 da Constituição para passar uma reforma da previdência sem que
ela fosse votada na Câmara dos Deputados do país, assim que se
tornou evidente que a matéria lá encontraria dificuldades. A reforma vinha tendo
uma dura oposição nas ruas por parte dos trabalhadores, o que também levou o
governo a adotar as armas para fazer calar o povo num tema tão sensível quanto
o tempo que dedicará ao trabalho até poder morrer em paz. No final do mês
passado, em junho, o governo francês baniu o
grupo de ativistas climáticos Les Soulevements de la Terre (LST), sob o argumento
de que seus atos ameaçavam a segurança pública e acusando o grupo de
“ecoterrorismo”. Diversas organizações ligadas ao meio-ambiente, ONGs de
direitos humanos e partidos protestaram a proibição do grupo. A França é uma
democracia absoluta?
A
Espanha, outro exemplo democrático na tinta fina de nossos comentadores
liberais (embora seja uma monarquia parlamentarista), promoveu um massacre em
junho de 2021 contra imigrantes que tentavam entrar no país a partir do
Marrocos, levando à
morte ao menos 37 deles. Em 2017, quando um referendo realizado na Catalunha
decidiu pela independência da região, a Suprema Corte do país considerou a
votação ilegal, argumentando que ela violava a Constituição espanhola. Evocando
o artigo 155 da Constituição, o Senado espanhol dissolveu o governo e o
Parlamento catalães. Depois, o Estado prendeu nove pessoas (entre
parlamentares, ministros e ativistas catalães) por “sedição”, com penas
variando entre 9 e 13 anos. Após mais de três anos presos, eles foram
perdoados. A
declaração do
então primeiro-ministro Pedro Sánchez sobre o perdão é bastante reveladora dos
princípios democráticos formais que nossos articulistas consideram absolutos:
“ele [Sanchéz] disse que o governo não exige que os perdoados abandonem suas
ideias políticas, ressaltando que eles foram condenados por suas ações, e não
suas crenças”. Cabe lembrar também que o Estado espanhol tem avançado na
perseguição a artistas e ativistas sob as alegações de “glorificação ao
terrorismo” e “humilhação das vítimas do terrorismo”. O caso do rapper
comunista Pablo Hasél, condenado a nove meses de prisão e ao pagamento de uma
multa de 30 mil euros por publicar tuítes e uma de suas músicas no YouTube que,
para o Estado espanhol, “enalteciam o terrorismo” e “injuriavam e caluniavam a
monarquia espanhola e as instituições do Estado”, é só um entre muitos: de
acordo com relatório
da Anistia Internacional, pelo menos 119 pessoas foram condenadas na Espanha
sob essas alegações entre 2011 e 2017. “A maior parte das condenações se
relacionam a declarações entendidas como ‘glorificadoras’ das ações de grupos
armados domésticos como o ETA (Pátria Basca e Liberdade) e o GRAPO (Grupos de
Resistência Antifascista Primeiro de Outubro)”, descreve o relatório da Anistia
Internacional. Uma parte considerável delas se referem a declarações feitas
sobre o assassinato de Luis Carrero Blanco, primeiro-ministro da ditadura
franquista morto em Madrid em 20 de dezembro de 1973 numa explosão realizada
por militantes do ETA. São casos como o do advogado Arkaitz Terrón, que tuítou
que “no dia que o ETA o explodiu muitas garrafas foram abertas”, do rapper
César Strawberry, condenado a um ano de prisão por se perguntar "quantos
mais deveriam acompanhar o voo de Carrero Blanco?” e da estudante
de 21 anos Cassandra Vera, por publicar memes e piadas sobre a morte do
primeiro-ministro franquista. Assim são as democracias absolutas?
Para
ficar na Europa Ocidental, poderia mencionar ainda a Alemanha, país que mantém
uma rígida legislação anticomunista, a Inglaterra, que tem servido de masmorra
para o jornalista Julian Assange, a Itália, que tem criminalizado ONGs e
ativistas que
salvam a vida de migrantes no Mar Mediterrâneo, e muitos outros. Mas é hora de
passar às Américas, especialmente aos Estados Unidos, a “maior democracia do
mundo”.
Neste
caso seria possível começar pelo estranho sistema eleitoral norte-americano, no
qual quem vence não necessariamente é aquele que tem a maioria dos votos;
sistema que é assentado num bipartidarismo de facto, e que criou
uma indústria eleitoral bilionária para influenciar a escolha de líderes (nas
eleições de 2020, ela movimentou 14 bilhões de dólares – o filme “Irresistível”,
de Jon Stewart, é uma caricatura decente de como o lobby, o
marketing e o dinheiro corrompem o sistema norte-americano). Poderia ainda
mencionar algo que cala fundo na alma dos Estados Unidos, o racismo, lembrando
da perseguição estatal contra organizações como o Partido dos Panteras Negras
(com ex-membros ainda exilados, como Assata Shakur, ou presos, como Mumia
Abu-Jamal); falar de como os 1,84 milhões de presos no País não têm direito ao
voto (uma quantidade desproporcional deles sendo negros), e como muitos
ex-sentenciados seguem
impedidos de votar mesmo tendo cumprido suas sentenças (2% da
população votante dos EUA – aqui, também, com uma desproporcionalidade da população
negra). Mas bastará olhar à política externa norte-americana, com suas invasões
(Afeganistão, Iêmen, Iraque, Líbia, Síria – para ficar só neste século), apoio
a golpes de Estado (Venezuela, 2002; Haiti, 2004; Honduras, 2009; Paraguai,
2012; Bolívia, 2019 – para se limitar à nossa região e aos casos em que há
evidências irrefutáveis), e do uso político de sua presença militar e do uso
militar de sua moeda e mercado por meio de sanções (o que engloba,
fundamentalmente, todo o Planeta). A pergunta que nossos liberais não ousam
repetir a si próprios: pode um país ser considerado uma democracia – ainda
mais, uma democracia absoluta! – quando, fora das suas fronteiras, age da forma
mais autocrática já vista na história humana? Pode haver uma democracia num território,
assentada no domínio de outros lugares? Pode o senhor falar verdadeiramente em
liberdade enquanto mantém escravos? Enfim: é certo que os norte-americanos, bem
ou mal, elegem seus líderes; mas quem elegeu os Estados Unidos senhor do
Planeta Terra?
Por
fim, cabe nos aproximar mais das fronteiras do Brasil e da Venezuela, para que
fique claro que a seletividade de nossos liberais não é questão de miopia, de
visão curta, mas sim de desonestidade.
A
Bolívia em 2019 foi alvo de um golpe que uniu organizações civis de
extrema-direita, congressistas fundamentalistas e militares que, sob o
argumento de fraude eleitoral – e com o apoio da comunidade internacional,
particularmente da OEA – derrubaram o presidente legitimamente eleito logo após
as eleições. O estratagema, bastante similar a alguns planos golpistas
esquadrinhados no Brasil em torno das urnas eletrônicas, não só não foi
considerado pelos grandes meios como um golpe, como o governo que dele nasceu,
liderado por Jeanine Añez, tampouco foi considerado uma ditadura.
A
Colômbia é, há anos, o país que mais mata lideranças sociais e defensores de
Direitos Humanos na América Latina. Nação fundada no sangue das guerras entre
liberais conservadores – como García Márquez bem retratou em sua obra –, a
Colômbia fundamentalmente vive sua atual guerra civil desde o assassinato do
candidato liberal à presidência, Jorge Eliécer Gaitán, em 1948. Nos anos 1980,
com uma primeira tentativa de paz entre o governo colombiano e as FARC-EP,
formou-se o partido Unión Patriótica. Mas centenas de seus
militantes, incluindo várias de suas principais lideranças, seriam assassinados
nos anos seguintes, incluindo Jaime Pardo Real, candidato presidencial da sigla
em 1986, assassinado no ano seguinte. Dois anos depois, em 1989, outro
candidato presidencial, Luis Carlos Galán, também seria assassinado. A Colômbia
é o laboratório do esquema paramilitar que, sob o nome de “milícias”, tanto
alarde causou no Brasil durante o governo Bolsonaro. Apesar de tudo isso, creio
que o leitor não se recordará de ler em um jornal brasileiro qualquer os termos
“ditadura” ou “regime” para descrever a Colômbia – bem, talvez agora que o país
tem o primeiro presidente de esquerda de sua história essa inovação chegue às
manchetes.
Não
precisamos edificar nossos argumentos somente em fatos do passado (ainda que do
brevíssimo passado): neste exato momento, o presidente de El Salvador, Nayib
Bukele, leva adiante uma guerra contra as gangues que, segundo
organizações de direitos humanos, “trouxe à tona inúmeros casos de tortura,
detenção arbitrária, desaparecimentos forçados de curta duração e outros
maus-tratos.” A popular guerra de Bukele contra as pandillas tem
possibilitado que o partido do presidente prorrogue indefinidamente o estado de
exceção, em vigor no país há mais de um ano. Além de conceder poderes
extraordinários a Bukele, a medida restringe direitos civis fundamentais como
liberdade de reunião e associação, e tem servido para que o presidente persiga
juízes que ousem pôr pedras em seu caminho. Já no Peru, Dina Boluarte segue no
governo, após a queda e prisão do presidente Pedro Castillo, por meio da repressão às bases que a
elegeram e
uma aliança com
seus inimigos históricos. A Bolívia de Añez e a Colômbia uribista constituem
democracias absolutas? Por que as ditaduras no Peru e em El Salvador não
merecem o mesmo interesse que a Venezuela recebe de nossos comentadores?
Enquanto
nossos liberais acusarão este tipo de avaliação como um exercício de
“relativização”, selecionam, à sua conveniência, os fatos que põem ou não em
sua balança. É melhor ser flexível na interpretação que fazemos dos fatos ou já
na sua triagem?
Se
poderia acusar nosso método como demasiado cauteloso nas conclusões; mas não é
o método destes nossos inimigos o de se refugiarem nas afirmativas
grandiloquentes sobre países escolhidos a dedo, por um lado, e, por outro, no
silêncio profundo assentado em fatos descartados de princípio, quando se tratam
de outras nações? A demonstração máxima desta seletividade é que nossos jornais
façam comparações entre Lula e Geisel. “Lula ainda emulou uma declaração do
general Ernesto Geisel, penúltimo governante da ditadura militar brasileira, ao
afirmar que ‘o conceito de democracia é relativo’”, disse a Folha de S.
Paulo em editorial. Trata-se de um
jornal que deu apoio à ditadura militar comparando um operário perseguido pelo
regime a um de seus líderes. Esta é a régua absoluta de nossos liberais: toda
comparação é permitida, as condenações mais estrepitosas são proclamáveis,
mesmo que, para tanto, certos fatos graves sejam reduzidos ao mais profundo
silêncio.
“Ao
contrário dos teólogos, os médicos só admitem como verdade o que podem
explicar, e fazem da sua inteligência a medida das possibilidades”,
escreveu Rousseau em suas Confissões, lembrando de uma moléstia
sofrida na juventude que um certo doutor se negara a tratar como doença. Assim
fazem nossos liberais: partem do princípio de que determinadas sociedades são
inerentemente democráticas, e ignoram todos aqueles sintomas que dizem o
contrário, enquanto apontam mil dedos aos países que, de princípio, consideram
ditatoriais: buscam impôr sua medida como absoluta, dissimulando o fato de que
esta sua própria medida rejeita a análise de todo objeto que possa colocá-la em
xeque. Seu procedimento é absoluto, de fato – o que, ainda assim, não é
suficiente para tornar absolutas as suas democracias.
Fonte:
Opera Mundi
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