Paulo Kliass: A
urgência da nova industrialização
As
últimas décadas foram marcadas pela consolidação da hegemonia do financismo em
nossa sociedade. Em quase todas as esferas de nosso convívio social e de nossa
articulação econômica a dominação do sistema financeiro condicionou a regressão
do processo industrializante, ao mesmo tempo em que se verificou o avanço dos
modelos associados ao paradigma neocolonial de exportação de commodities.
Por outro lado, esse período foi igualmente marcado pelos efeitos de um
ingresso irresponsável do Brasil na esfera da globalização, sem que tivessem
sido programadas as necessárias medidas de proteção do tecido social ou de
preservação das estruturas econômicas e produtivas consideradas mais
estratégicas para o país.
A
participação da indústria no Produto Interno Bruto (PIB) experimentou uma queda
acentuada e contínua a partir do início da década de 1990. A data simbólica
pode ser identificada com a eleição do governo Collor e a adoção de medidas
extremas da agenda do chamado Consenso de Washington, dentre elas um programa
de liberalização comercial de forma unilateral. Com isso, todo o esforço das
políticas de natureza desenvolvimentista das décadas que se seguiram ao final
da Segunda Guerra Mundial e mesmo o modelo pró industrialização do regime
militar que se instalou em 1964 foram rapidamente consumidos. O gráfico abaixo
ilustra o fenômeno, onde quatro décadas de aumento da participação da indústria
no PIB são revertidas em apenas um único decênio.
Os
defensores de tal estratégia buscavam argumentar que a perda de participação
relativa do produto industrial no conjunto das atividades econômicas do país
não era necessariamente um problema. E dá-lhe falação a respeito dos casos dos
países mais desenvolvidos, onde esse processo foi substituído pela chamada
“revolução digital”, quando os setores dos serviços ligados ao conhecimento e à
inovação tecnológica realmente cresceram no conjunto do PIB. Mas o caso
brasileiro é bastante distinto, uma vez que as atividades que mais cresceram
não eram geradoras de alto valor agregado. Nossos serviços emblemáticos foram
áreas como telemarketing e transportes por aplicativos. Por outro lado, o
crescimento expressivo do agronegócio e da exploração de minérios também
contribuiu para manter o padrão de baixa agregação de valor.
·
Reindustrialização ou neoindustrialização?
Apesar
da evidência dos equívocos de tal caminho adotado, a tomada de consciência a
respeito da necessidade de reverter os efeitos da desindustrialização levou
muito tempo para se manifestar. Mesmo as parcelas das classes dominantes não
diretamente beneficiadas por esse processo aderiram ao modelo que as comprimia
em termos econômicos, tudo isso em nome de uma adesão aparentemente irracional
aos pressupostos ideológicos do neoliberalismo. Apenas depois da crise
econômico-financeira de 2008/9 é que a questão da necessidade de reverter tal
tendência e propor uma reindustrialização veio a ganhar maior destaque na
agenda política nacional. Afinal, até então o esmagamento patrocinado pelo
ideário neoliberal convertia expressões como “política industrial” em ofensa e
palavrão. Tudo aquilo que cheirasse a Estado ou a intervenção pública na seara
econômica era bombardeado no nascedouro.
Somente
agora, com o debate em torno do programa de Lula 3.0 e o início de seu governo,
é que o tema ganha a relevância na agenda governamental e no debate mais amplo
na sociedade. A nomeação do vice-presidente para o importante cargo de ministro
do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDICS) oferece a leitura de
que o assunto deve ganhar maior relevo e densidade na pauta do governo. Além da
presença de Alckmin na pasta, foram recuperados instrumentos públicos para o
desenvolvimento da política industrial. Os compromissos em fortalecer as capacidades
de financiamento e empréstimo do BNDES permitem antever uma recuperação do
banco como importante agente da reversão da tendência desindustrializante.
Por
outro lado, ganha destaque também a reconstituição do Conselho Nacional do
Desenvolvimento Industrial (CNDI), que tinha sido criado por Lula em 2004, mas
nunca havia ocupado um lugar de destaque tão necessário na agenda da
recuperação do tempo perdido na questão industrial. Pois agora a preocupação
com o tema parece ser outra. O governo publicou em abril um novo decreto a respeito e
as movimentações na Esplanada parecem indicar que a questão da indústria também
voltou. O Conselho foi fortalecido e ampliado. Está composto por 20 ministros,
pelo presidente do BNDES e por vinte e um representantes de entidades da
sociedade civil. De acordo com portaria do MDICS, estarão presentes
associações de classe empresarial e as centrais sindicais.
·
A volta do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Industrial
A
doutora em economia Verena Hitner Barros foi nomeada para a Secretaria
Executiva do órgão e a agenda proposta para debate no colegiado aponta para o
termo “neoindustrialização por missões”. O objetivo é
estabelecer diretrizes que não se restrinjam exclusivamente a recuperar padrões
de capacidade industrial que foram perdidos em consequência da orientação
imposta pelo neoliberalismo. O prefixo “neo” oferece o sentido de dotar o
Brasil de uma nova estrutura industrial, antenada com o que se encontra na
vanguarda tecnológica dos tempos atuais no resto do mundo. Assim o que se
pretende é ampliar e superar a mera reindustrialização, buscando alcançar um
novo patamar de qualidade na capacidade industrial brasileira. Já a referência
às “missões” se refere àquelas abordagens mais modernas adotadas nos processos
de elaboração e implementação de políticas públicas.
Quando
se trabalha com o conceito de política industrial, a referência nos remete a um
programa amplo de governo. A vontade política de adotar esse instrumento
implica uma mudança substantiva na postura do setor público perante o processo
econômico. Política industrial geralmente vem acompanhada de algum grau de
direcionamento dos órgãos públicos para que esse objetivo seja alcançado,
rompendo com a passividade liberal de deixar que tudo seja resolvido
exclusivamente pela livre ação das forças de oferta e demanda. O
estabelecimento de uma política industrial supõe, por exemplo, o uso de
instrumentos como a desoneração tributária, as linhas de crédito subsidiado e a
política de compras governamentais. Mas o que se recomenda, por outro lado, é a
exigência de contrapartidas das empresas e dos setores beneficiados, tais como
o compromisso com a geração de emprego, o respeito a determinações de
sustentabilidade, o uso de parâmetros de conteúdo nacional e a geração de
tecnologia de interesse do país.
O
que se espera é que tal processo venha acompanhado da recuperação também da
capacidade de planejamento no interior do Estado. Isso significa adoção de
planos de desenvolvimento de médio e longo prazos, para além de programas
emergenciais como o PAC ou mesmo posturas burocráticas perante o Plano
Plurianual (PPA). O que se faz necessário é dotar o governo federal dos meios
de preparar seu Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), tal como previsto na
própria Constituição e nunca colocado em prática desde 1988. Assim, com toda a
certeza, a agenda da nova indústria ganharia destaque como um dos elementos
fundantes do planejamento governamental.
A
divulgação dos primeiros resultados do Censo 2020 apresentam elementos
preocupantes quanto à capacidade de o Brasil reverter a tendência à estagnação
ou de permanecermos com baixas taxas de crescimento do Produto. Ora, um dos
meios de se alavancar o potencial de desenvolvimento econômico, social e
ambiental é justamente avançarmos na capacitação de processos que proporcionem
a geração de alto valor agregado. Mas isso supõe superar o modelo orientado
apenas aos serviços de baixa qualificação ou ao modelo primário exportador. Eis
uma das principais razões que justificam a urgência da neoindustrialização.
Ø
Pochmann:
Sinais da mudança de época
O
governo da Argentina pagou ao Fundo Monetário Internacional (FMI) em yuans (moeda chinesa), com base no Direito Especial de Saque
(DES), a quantia referente a 2,7 bilhões de dólares. O acontecimento, ademais
de inédito desde a criação do FMI em 1944, anuncia a profunda mudança de época
em curso na Ordem Mundial.
Isso
porque não se confirmou a expectativa trazida pelo fim da Guerra Fria (1947-1991)
de um novo ciclo de expansão econômica com inclusão social, estabilidade
política e paz. Com o desmoronamento da União Soviética, não se concretizou o
anúncio de um “novo século estadunidense”, assentado no retorno aos anos de
ouro do capitalismo, como na experiência passada no fim da Guerra Mundial,
diante da derrota do nazifascismo.
Após
quase quatro décadas da globalização liderada pelos Estados Unidos, a ilusão
foi desfeita. A prevalência da unipolaridade e unilateralidade como governança
neoliberal do mundo fez valer o crescente poder das altas finanças e das
grandes corporações transnacionais.
Com
isso, uma espécie de neocolonização financeira e extrativa da natureza foi
posta em marcha no mundo com elevada expropriação do trabalho humano. Pelo Consenso
de Washington (1989), por exemplo, a desindustrialização no Ocidente avançou de
forma compatível com o esvaziamento da capacidade de governança interna em
grande parte dos países, cada vez mais subordinados aos ditames dos donos do
dinheiro.
As
próprias instituições multilaterais do sistema das Nações Unidas foram
enfraquecidas e desconectadas da atuação para a qual foram constituídas ainda
no segundo pós-guerra mundial. Ao mesmo tempo, deu-se o reaparecimento de uma
outra Divisão Internacional do Trabalho amplamente apoiada na precarização do
mundo do labor.
Simultaneamente,
a generalização da combinação das dívidas financeiras com a difusão das
privatizações tornou os EUA uma economia de elevado custo. O resultado foi a
própria desindustrialização interna, o que lhe retirou a posição de liderança
industrial, comparável ao declínio do Reino Unido ocorrido desde o final do
século 19.
Assim,
o encerramento da fase de expansão produtiva foi sucedido pelo ciclo de ganhos
financeiros (juros, lucros de investimentos estrangeiros e créditos dos bancos
centrais a inflar ganhos de capital). Sem gerar riqueza assentada no trabalho
pelo complexo industrial, coube à globalização unipolar e unilateral operar com
a forma financeira neocolonial em paralelo ao uso recorrente de forças
militares e dos esquemas de cancelamentos e sanções econômicas.
Para
além das questões econômicas, financeiras e comerciais referentes à gestão
conjuntural e emergencial no conjunto dos países da atualidade, emergiu como
centralidade a estruturação de uma nova Divisão Internacional do Trabalho em
plena Era Digital. O avanço do processo de digitalização das economias e
sociedades conduz à separação do mundo em dois agrupamentos distintos de
países.
De
um lado, as nações que produzem e exportam bens e serviços digitais. De outro,
os países que dependem fundamentalmente das importações de bens e serviços
digitais, pois os consomem sem produzi-los internamente.
Na
maior parte das vezes, as economias importadoras de bens e serviços digitais
terminam financiando o consumo moderno com a produção e exportação de commodities minerais
e vegetais. Isso muitas vezes é combinado à pobreza e baixos salários de ampla
parcela da população com a intensa agressão ao meio ambiente.
Por
ser de maior valor agregado e conteúdo tecnológico, a produção de bens e
serviços digitais tem concedido aos países exportadores maiores vantagens
comparativas no comércio internacional. Isso tem ocorrido, muitas vezes, devido
à deterioração dos termos de troca que impulsiona o deslocamento de renda e
riqueza gerada pela estrutura produtiva primário-exportadora dos países
importadores aos exportadores de bens e serviços digitais.
Com
isso, o curso da Divisão Internacional do Trabalho se assenta no retomo às
condições de produção e reprodução do subdesenvolvimento. Pelo deslocamento do
antigo centro dinâmico do Ocidente para o Oriente, acontece a reconfiguração
periférica dos países em novas bases, permeada pela desigualdade econômica e
pela emergência climática.
Nos
dias de hoje, contudo, a prevalência do enorme desequilíbrio relacionado à
repartição da renda, riqueza e poder se relaciona ao avanço da própria desordem
em dimensão global. O seu enfrentamento, ademais de urgente, precisa ocorrer em
nova base geopolítica e econômica mundial.
Isso
dificilmente ocorrerá de forma espontânea. A redefinição geopolítica é parte
das tarefas que o Brics pode e deve perfeitamente conduzir neste final do
primeiro quarto do século 21. Para tanto, o desenvolvimento deve ser alcançado
sem que se reproduza de forma desigualmente combinada.
Fonte:
Outras Palavras
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