Considerações sobre
os deveres do médico diante do aborto cometido
O
tema do aborto é sempre uma "pedra no sapato" do Direito, e não
apenas em função de referir-se à direitos e garantias comezinhas, seja a vida
ou a dignidade, mas também porque infere um debate cuja ordem jurídica tem
sérias dificuldades em equacionar, pois além de repercutir na esfera moral e no
comportamento ético dos indivíduos — o que em si já atrai grandes repercussões
—, também promove obrigações diretivas a diversos outros setores da sociedade
que, independentemente das elucubrações filosóficas ou políticas que pairam no
parlamento ou na mídia, impõe sobre o Poder Judiciário a responsabilidade de
oferecer uma solução segura e definitiva diante da realidade que bate a sua
porta.
Em
questão que circunda essa temática, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em
recente julgamento, teria indicado que os médicos, no exercício da sua
profissão, não poderiam servir de testemunhas quando dos casos em que
identificassem a ocorrência do crime de aborto cometido por suas pacientes. A
percepção da 6ª Turma do Tribunal teria sido a de que, no caso, os médicos
estariam limitados pelo dever de sigilo profissional e, por essa razão, sob regência
do artigo 207 do Código de Processo Penal, que proíbe seu testemunho nos
processos cujas informações que teria a prestar possam suscitar a
criminalização do paciente.
O
caso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), sob relatoria do ministro
Sebastião Reis, está em segredo de justiça, e por isso não é possível verificar
a fundamentação dos julgadores em sua integralidade.
Entretanto,
na forma noticiada pela corte, e tal como propagado pela imprensa, sugere-se
que "a paciente teria aproximadamente 16 semanas de gravidez quando passou
mal e procurou o hospital. Durante o atendimento, o médico suspeitou que o
quadro fosse provocado pela ingestão de remédio abortivo e, por isso, decidiu
acionar a Polícia Militar", motivo pelo qual, pela imposição do artigo 207
do CPP, a ação penal proposta pelo Ministério Público para fazer valer o artigo
124 do Código Penal sobre a paciente haveria de ser trancada, ou seja, extinta.
Foi
noticiado, ainda, que o Habeas Corpus sob julgamento ainda pretendia afastar a
aplicação do artigo 124 CP sob o argumento de não ter sido recepcionado pela
Constituição de 1988, mas o ministro Sebastião Reis teria, de pronto, rechaçado
o debate, uma vez que não caberia controle difuso de constitucionalidade em
sede de Habeas Corpus, em especial sobre essa temática, uma vez que a questão
está pendente de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos autos da
ADPF 442.
O
tema do aborto, com isso, volta as páginas judiciais, mas agora com um detalhe
que parece passar despercebido — ou não —, pois o sigilo imposto ao médico no
exercício da profissão, na forma do artigo 207 do CPP, parece acenar para um
casuísmo gritante por parte do Poder Judiciário, promovendo ainda mais
insegurança ao profissional de medicina no que concerne aos deveres de informar
as autoridades quando da percepção da ocorrência de crimes.
Não
se está aqui a discutir as limitações do profissional médico, ou mesmo
especular critérios hermenêuticos para o conceito de paciente, sigilo ou o que
for, até mesmo porque a disciplina do artigo 207 do CPP, assim como o Código de
Ética Médica (Resolução CFM nº 1.931/09), conforme noticiado pelo STJ, impõe
deveres de sigilo entre o médico e o paciente de maneira abstrata e irrestrita,
sempre que a informação acolhida pelo profissional puder, sob qualquer aspecto,
imputar ao paciente alguma conduta tipificada como crime.
Contudo,
ao tratar do tema de maneira abstrata, como há próprio da competência do
Superior Tribunal de Justiça (STJ), ou seja, ao analisar o conteúdo e extensão
do quando disciplinado no artigo 207 do CPP, a corte acabou por gerar uma
situação um tanto quanto insegura aos profissionais médicos, pois que, noutras
hipóteses de fato criminoso, essa limitação tem sido ignorada, a exemplo do
tratamento de ferimentos por arma de fogo ou arma branca, em que, regra geral,
o paciente está envolvido em alguma questão criminal — no caso de arma de fogo,
diga-se, o paciente ferido está invariavelmente envolvido em tipo criminal,
sujeito à investigação e penalização, mormente a arma de fogo, em si, ser um
fator de criminalização quando disparada.
Nesses
outros casos, não apenas a jurisprudência ignora o dever de sigilo do médico,
como a ordem jurídica sugere, sem qualquer questionamento por parte dos
tribunais, que a não comunicação da hipótese de crime à autoridade policial
constitui contravenção penal, na forma do artigo 66 do Decreto-Lei nº 3.688/41
(Lei das Contravenções Penais). Aliás, para além da contravenção penal
indicada, há regramento especial, direcionado tanto aos hospitais quanto aos
próprios médicos, no sentido de lhes exigir que, em casos de atendimento de
casos em que há ferimento por arma de fogo, a autoridade policial seja
prontamente noticiada.
Ou
seja, a proteção da relação de sigilo entre o paciente e o médico está sendo
vista pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) de forma perigosamente
casuística, nitidamente vocacionada a atrair para o debate uma forma de se
inibir a persecução penal diante da ocorrência do crime capitulado no art. 124
do Código Penal, e ignorando o fato de que esse sigilo há de ser imposto a
qualquer conduta tipificada como crime.
Ainda
cabe questionar qual foi a data e o motivo pelo qual o médico enviou a
notificação para a polícia. Isto, pois até janeiro de 2023 vigia a portaria
2.561/2020 do Ministério da Saúde, a qual dispunha sobre o "Procedimento
de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em
lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS".
A
portaria relatava que o médico, suspeitando de possível crime sexual, teria a
obrigação de comunicar o aborto à autoridade policial responsável. Tal
obrigação somente foi revogada pelo novo governo em janeiro de 2023.
Mais
uma vez, registre-se, não se está aqui afirmando que a direção tomada pela
corte de Justiça esteja equivocada — ou correta, diga-se —, até mesmo porque
esse opinativo é elaborado apenas com base em notícias publicadas pela mídia em
geral e pelo próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ), já que o processo
corre em segredo de justiça.
Contudo,
e nada obstante, para além das discussões quanto a constitucionalidade ou não
da promoção do aborto de forma irrestrita no Brasil, quando o comportamento
exigido pela corte nos casos de aborto é analisado de forma comparativa a
outros tipos penais cujos profissionais médicos enfrentam, ressoa uma percepção
preocupante no sentido de haver, nesse julgamento, uma proposição de se inibir
a verificação do crime de aborto.
Vista
a casuística, em especial diante de outros crimes e cenários, o Superior
Tribunal de Justiça (STJ) parece sugerir a aplicação de pesos e medidas
distintas acerca da aplicação do artigo 207 do CPP, a depender do crime que foi
noticiado ou testemunhado pelo profissional médico.
Fato
que promove insegurança não apenas quanto a percepção do crime tipificado no
artigo 124 do Código Penal (CP), quanto em relação aos deveres do profissional
médico diante da disciplina do artigo 207 do Código de Processo Penal (CPP).
Esse
cenário, como anotado aqui, além de contraria a dinâmica democrática do
Direito, promove ainda mais insegurança jurídica sobre um tema que, inflamado
socialmente pela própria natureza, já foi levado aos campos de disputas
legítimos, seja no legislativo ou para efeito de controle de
constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal.
Fonte:
Por João Paulo de C. Echeverria e Yuri Coelho Dias, na Conjur
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