O conceito de
democracia é relativo?
Há
poucos dias o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou em um evento público
que o conceito de democracia é relativo. Bastou para que alguns representantes
da mídia mainstream, além de pelo menos um representante do STF,
atacassem a manifestação do presidente. Sem considerarmos o preconceito
constantemente manifestado contra Lula por muitos jornalistas, assim como por
uma parte do judiciário, impressiona observar a ignorância histórica de alguns
desses filhos das elites ou da classe média brasileira. Se Lula erra ao
defender regimes autoritários ou que flertam com o autoritarismo, parece claro
que acerta ao afirmar que democracia é um conceito relativo. Se preferirmos, é
historicamente contingente. Tivesse clareza ou não disso, a sua fala foi, na
verdade, uma defesa da democracia, e não a sua desqualificação, como
apressadamente derivaram alguns não muito bem-intencionados.
Se
é da democracia como um valor formal que se trata, portanto, algo limitado,
então alguns dos seus princípios ajudam a justificar a sua defesa por parte de
alguns cínicos ou oportunistas formadores de opinião. Afinal, o voto, a
independência dos poderes, a alternância no poder e uma imprensa livre estão
entre alguns desses valores. Mas frequentemente esses críticos do presidente
esquecem que a democracia pressupõe historicamente a universalização da
cidadania, com a consequente inclusão de cada vez mais amplas parcelas da
população no âmbito dos direitos sociais, políticos, econômicos etc. E quem, a
partir desse princípio elementar, é capaz de sustentar que o Brasil é um país
real e plenamente democrático? Criminalizamos movimentos sociais, a ponto de
instaurarmos CPIs contra eles, prendemos e matamos seletivamente jovens pretos
pobres e periféricos, permitimos que a polícia invada escolas e expulse dali
estudantes secundaristas que reivindicam o seu direito ao mundo, temos um dos
piores índices de distribuição de riquezas do mundo, mesmo sendo o Brasil um
país riquíssimo, aqui juízes podem ser empresários, abandonamos direitos
fundamentais básicos como educação, saúde, assistência, seja no que se refere à
sua expansão ou à sua qualidade, assistimos a práticas de escravidão
contemporânea e culpamos trabalhadores pobres e desassistidos por elas,
operamos orçamentos secretos com dinheiro público, encarceramos milhares de
pobres sem julgamento mas não conseguimos deixar na cadeia um único banqueiro,
latifundiário ou empresário desses que destroem a estrutura do Estado com o seu
sistemático exercício de corrupção. Até mesmo em aspectos mais elementares,
como a boa prática de consultas populares, nos limitamos ao voto em eleições
formais a cada dois ou quatro anos. É muito pouco. Aqueles que se pensam como
elite do país demonstram profundo medo de referendos ou plebiscitos. Ou seja,
podemos listar uma série de situações que nos permitem observar que, para além
do seu aspecto formal, o Brasil está longe de ser uma democracia plena.
Se
olharmos apenas um pouco para a história recente observaremos que países como
os Estados Unidos, tão incensados por essa mesma turma, produziu na década de
1950 um fenômeno como o macarthismo, com caça àqueles que simplesmente
simpatizassem com o socialismo ou o comunismo. O mesmo país que julga ter autoridade
moral para intervir nas práticas políticas de outros países com o exercício da
força bruta. Mas como a mídia inconsequente se nutre do efêmero, muitas vezes
com a ajuda de importantes autoridades, claro que muitos analistas não lembram
de Granada, Cuba, Iraque, Afeganistão e o tétrico ciclo de ditaduras apoiadas
pelos “valores democráticos” do Tio Sam na América Latina. Mas podemos, ainda,
lembrar como um país considerado como o berço da moderna democracia, a França,
atuou na condução das guerras de libertação colonial na África, no Oriente
Médio, da mesma maneira que algumas outras “potências democráticas”. Potências
como Israel, um Estado que a despeito da trágica saga do povo judeu na
história, nega o direito à existência digna ao povo palestino.
Pouco
se critica a aliança entre o neoliberalismo econômico e o refluxo político
autoritário ou reacionário que temos visto em vários países do mundo, hoje,
inclusive algumas daquelas “grandes potências” (Estados Unidos, França,
Alemanha, Itália). E é farto o material disponível para historiadores e
jornalistas interessados em conhecer as iniciativas de alguns desses zelosos
defensores da democracia vazia de conteúdos para treinar a mão de obra que
torturava e matava nos porões das ditaduras do então Terceiro Mundo. Mesmo os
arautos da ditadura empresarial-militar brasileira entre 1964 e 1985, defendiam
que no Brasil vivíamos em plena democracia “indireta”. Ou seja, a democracia
para alguns, é um valor se for devidamente tutelada e administrada a conta-gotas.
Nada de muito exagerado que faça com que os mais pobres, populações ou países,
reivindiquem mais do que devem.
Curiosamente,
mas talvez nem tanto, na mesma semana em que Lula emitiu o seu comentário sobre
a democracia, foi publicada uma pesquisa pela qual somos informados que 52% dos
entrevistados não apenas tem medo do comunismo, como acham que marchamos para
uma ditadura comunista. Obviamente podemos nos perguntar o que as pessoas
entendem por comunismo. Sobretudo um tipo de gente que manda mensagem para ET’s
e reza para pneus. Mas me parece ocioso, pois o trabalho sujo já foi feito. E
ele é evidenciado pelo anticomunismo semeado no Brasil a partir de um consórcio
entre um capitalismo predatório, um cristianismo reacionário, seja católico ou
evangélico e forças armadas que atuam sem muito apreço por valores
republicanos. Consórcio devidamente sustentado pela sedução exercida sobre a
grande mídia pelos valores por ele professados. Nunca conhecemos no Brasil, nem
mesmo no plano municipal ou estadual, qualquer governo que se aproximasse de
uma experiência minimamente socialista, imagine-se algo como o comunismo. Aqui
tratamos reforma agrária, conselhos tutelares, orçamento participativo, SUS,
direitos sociais básicos como maquinações comunistas. Da mesma maneira que
perpetuamos o privilégio de oficiais militares, magistrados e políticos
profissionais em relação a salários, carreiras e previdência, enquanto punimos
a maioria dos trabalhadores, além de autorizarmos empresários a fazerem a
gestão da riqueza que é de todas e todos. Ou seja, enquanto um tipo de lavagem
cerebral propaga o medo do comunismo, a população deixa de ser informada que
todas as suas mazelas são o prodígio de um rico país capitalista que nasceu da
escravidão e do genocídio indígena, que sempre foi e segue sendo capitalista.
Que pouco exerceu uma democracia que incluísse a todas e todos. No qual muitos
dos seus dirigentes em diferentes níveis não admitem que um mínimo de direito e
de participação sejam conquistados pelas minorias econômicas, étnicas, sexuais,
de classe. Caso contrário, é o comunismo tentando ferir a “nossa” (deles)
democracia.
No
Brasil, a despeito da falta de um claro projeto das esquerdas para o país, a
tentativa de instauração de um novo ciclo autoritário veio de uma ala da política
defensora do hiper-liberalismo econômico (empresários), de uma pauta dos
costumes medieval (líderes religiosos) e de parte de agentes do Estado (juízes,
militares, políticos) que deviam prezar pela Democracia de fato, não como algo
abstrato. Tudo com o silêncio constrangedor, por vezes cumplicidade, de uma
grande parte da mídia. Ou seja, de alguns agentes que têm a democracia na ponta
da língua, embora tratem dela como um mero detalhe retórico. E se é de retórica
que se trata, Lula está correto: o sentido de democracia que defendem alguns
desses agentes certamente não é aquele que interessa ao conjunto da população
brasileira. Pena que o presidente faça uma consideração tão importante para
defender figuras tão nefastas como Daniel Ortega e Nicolás Maduro, quando o que
mais temos no Brasil são personagens similares.
Parece
sintomático que, após a perseguição a Dilma Rousseff, a prisão de Lula sem
qualquer prova documental e o pacto feito pelos donos do poder para alçar à
presidência um medíocre deputado do baixíssimo clero, muitos apelem para uma
retórica carcomida para desqualificar a imagem de Lula junto à população,
afirmando que flerta com o autoritarismo. Difícil crer que se trate de
ignorância, visto serem pessoas aparentemente bem preparadas e influentes nos
cargos que ocupam no jornalismo ou no Judiciário. E não ignoram que o atual
presidente jamais flertou com o autoritarismo, mesmo quando tinha 80% de
aprovação popular e poderia tentar forçar as regras do jogo para permanecer no
poder. Parece claro, então, que as opiniões inconformadas contra ele são
posições ideológicas, que manifestam muito do preconceito contra os pobres que
é uma das marcas dessa “democracia” brasileira, tão feita para alguns poucos.
Ora, o presidente derrotado nas eleições passadas, incapaz de elaborar duas
ideias mais ou menos complexas, fez apologia do estupro, de torturadores,
defendeu que muita gente deveria ser morta, agrediu sistematicamente
opositores, jornalistas – sobretudo mulheres –, conduziu o país ao caos durante
uma pandemia. Mesmo assim, sistematicamente observamos uma tolerância absurda
do judiciário e da grande imprensa com os seus atos, como se fosse apenas um
bufão caricato e não representasse um perigo para o país. Por seu turno, Lula
emite uma opinião controversa sobre a relatividade de um conceito e é
suficiente para que seja enquadrado como a encarnação do mal. Definitivamente,
democracia é um valor relativo quando tratada na sua face formal.
Conforme
lembra um autor como Norberto Bobbio (2000), não há equivalência entre o
conceito ideal de democracia e o seu conceito real, ou seja, aquilo que se
assentou no mundo moderno como a delegação que os cidadãos dão a alguém para
que os represente. Em síntese, o exercício eleitoral, o direito ao voto. Toda a
retórica em torno dos valores democráticos quase “sagrados” do moderno mundo
ocidental se move entre a sua dimensão analítica e a axiológica. Político
arguto como é, Lula ofende os “teóricos” que só são capazes de enxergar a
democracia como expressão dos seus interesses e desejos, não como possibilidade
de plena realização de todos. Por isso achamos natural encarcerar uma jovem mãe
que “rouba” um shampoo ou um pacote de bolachas, mas sempre defendemos o amplo
direito à defesa de todo tipo de empresário pilantra que pode pagar caro por
advogados e sair em capas de revistas ou no caderno de economia dos grandes
jornais, mesmo quando enganam e roubam reiteradamente o país. Portanto, em
países de democracia formal frágil, como o Brasil, onde a cultura política se ancora
em uma moralidade bastante elástica, também os conceitos parecem adquirir uma
plasticidade que confunde o observador menos arguto. Assim, para muitos atores
sociais, incluindo parte significativa da mídia, democracia confunde-se com
votar. É pouco. E certamente alimenta um circuito de manutenção de privilégios
com a consequente exclusão da maioria da possibilidade de ter os mais básicos
direitos. De ter uma vida digna.
No
final dos anos 1990, foi um intelectual comunista que publicou um texto icônico
em defesa da democracia. Quando falava da democracia como valor universal,
Carlos Nelson Coutinho atualizava muito do pensamento crítico que rompia com
todas as formas autoritárias de exercício da política. Era uma voz da esquerda
política, de uma tradição que remonta à condenação de todo tipo de exagero
perpetrado por regimes totalitários ou autoritários, fossem capitalistas ou
comunistas. Como valor universal, algo que deveria ser almejado por sociedades
plurais e complexas, a democracia nem por isso é um valor absoluto ou abstrato.
Ela se manifesta e consolida em práticas sociais e políticas cotidianas, exige
um grande esforço e atenção constante no seu aperfeiçoamento. Tratá-la como um
valor absoluto é o mesmo que retirar a política da história e pensá-la como um
tipo de dadiva ou iluminação. E isso só interessa a um tipo de autoridade
pública e um tipo de jornalista, que são mais do que cafonas. São
ideologicamente muito bem situados e interessados, embora queiram fazer crer
que falam em nome de valores universais.
Fonte:
Por Marcus Aurelio Taborda de Oliveira, em Outras Palavras
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