Policiais civis
ameaçam quilombolas para retomar território em área turística da Bahia
Há pelo menos 14 anos, a presença da polícia é constante
na comunidade Riacho Santo Antônio-Jitaí, no litoral norte da Bahia. A
assiduidade dos agentes, no entanto, está longe de garantir a segurança – o
sentimento é exatamente o oposto: medo.
Lá,
policiais civis já ameaçaram quilombolas. Os agentes estão envolvidos em uma
ação de reintegração de posse, durante a qual moradores da comunidade foram
ameaçados com um facão e uma picareta. Eles participaram ainda de uma tentativa
à força de levantar uma cerca para delimitar uma propriedade; e, um deles, até
admitiu estar a serviço de um grande empresário da região. Tudo isso foi
gravado em vídeos de celular pelos próprios moradores durante as abordagens.
O Intercept teve
acesso a essas imagens.
A
Polícia Civil da Bahia também teve contato com as imagens e afirmou que a
corregedoria abriu procedimento para investigar a conduta dos agentes
envolvidos.
O
empresário defendido pelos agentes é Paulo Roberto de Souza, que afirma ser
dono, há 30 anos, das fazendas Riacho das Flores, Rozarinho e Bosque do Araken,
todas situadas no município de Mata de São João, a apenas 62 quilômetros de
Salvador.
Em
2009, Souza ingressou na justiça contra Germano e Domingos de Oliveira, dois
quilombolas, exigindo que eles e suas famílias saíssem das terras que afirmava
serem suas. Nesse mesmo ano, um juiz da comarca de Mata de São João deu uma
liminar autorizando a reintegração de posse em favor do empresário. Antes, em
2007, Germano havia entrado com uma ação na justiça por usucapião das terras
– modo de aquisição de uma propriedade após a ocupação sem contestação do
proprietário original e por determinado prazo legal.
Após
a morte de Germano, Paulo Roberto Souza passou a acionar na justiça seu filho,
Valmir Mendes de Oliveira, acusando-o de devastação em área de reserva
ambiental e novamente exigindo a saída dele e de seus familiares do território,
sob pena diária de R$ 50 mil em caso de descumprimento.
“Nunca
devastamos nada. É uma falsa denúncia de crime ambiental. Isso foi um pretexto
que inventaram para agir contra a gente. Quando os policiais chegaram, eles
disseram estar aqui pela justiça, mas faziam coisas que não estavam escritas no
texto da liminar”, disse Oliveira. Ele garantiu que o terreno onde vive é uma
herança dos avós, que ocuparam a área em 1916.
·
Ameaça com facão e armas
Nas
imagens gravadas pelo próprio Oliveira, é possível ver o momento em que os
policiais, acompanhados de um oficial de justiça, chegaram ao local. Eles
disseram ter uma ordem para desocupar a área – o que incluía derrubar um
galinheiro construído pelos quilombolas na área em disputa.
Um
dos policiais tentou impedir as filmagens: “Quando você filma, seu celular pode
ser apreendido como prova na delegacia”, ameaçou, desrespeitando o direito do
cidadão de filmar qualquer tipo de abordagem que
aconteça em espaços públicos. Nesse dia, após reclamação dos moradores,
a desocupação não foi iniciada.
No
dia seguinte, homens que se identificaram como “funcionários” usaram um carro
para arrombar o portão e entrar no terreno. Com marretas e picaretas, começaram
a derrubar o galinheiro, sem nem sequer retirar os animais do poleiro.
Eles
chegaram a pôr abaixo parte da estrutura, mas não concluíram o serviço. Antes
de irem embora, foram cercados pelos moradores. Um dos homens ameaçou retirar
uma picareta do fundo do carro, mas foi contido. Um outro, no entanto, puxou um
facão e rompeu o cerco à força. Sob gritos, foram embora.
Momentos
depois, um policial aparece. Disse que os homens que foram lá eram seus
“colegas” e que tinham autorização de derrubar o galinheiro por estarem
cumprindo ordem judicial – embora nenhum deles, nem ele próprio, portassem
distintivo que os identificassem como agentes de segurança do estado.
Em
outra gravação, dias depois, os moradores aparecem questionando um dos
policiais que aparece no primeiro vídeo – agora com distintivo da
Polícia Civil da Bahia – que tentava levantar uma cerca para dividir o terreno.
Eles pediram que o agente mostrasse em que parte estava escrito na liminar que
uma cerca devia ser levantada. Um morador questionou por que o policial estava
defendendo o empresário Paulo Roberto. Num ato falho, ele admitiu: “Se você me
contratar, eu defendo você também”.
O
empresário Paulo Roberto Souza foi procurado e, por meio de seu advogado,
enviou uma nota sobre o conflito de terra na região. Souza disse não reconhecer
qualquer tipo de disputa agrária e chamou os quilombolas de “invasores” que
buscam “ceifar a posse” sobre os terrenos.
“Os
proprietários adquiriram as terras por meio legítimo, os impostos sempre foram
devidamente quitados e os invasores vêm, em verdade, invadindo área que não
lhes pertence, avançando mais pouco a pouco, em comportamento até contraditório
com a própria ação de usucapião por eles proposta […]. Agora, após quase 15
anos de árdua discussão judicial, sugerem haver, na localidade, comunidade
tradicional quilombola – que não há e nunca houve, tratando-se inclusive de
alegação com a qual muitas pessoas que vivem no entorno, até da mesma família
dos invasores, não se identificam e não confirmam”, diz trecho da nota.
Em
outubro do ano passado, a comunidade do Riacho Santo Antônio-Jitaí foi
oficialmente incluída no livro de registro da Fundação Palmares como
quilombola.
No
texto enviado, Souza não mencionou nada sobre os policiais que admitiram ter
trabalhado para ele na desocupação do terreno.
·
Ameaça à esposa e ao filho
Em
novas gravações de dezembro de 2022, é possível ver policiais militares armados
em volta da área em disputa. Os quilombolas também denunciaram a presença de
homens armados rondando a propriedade para tentar levantar a cerca.
“Estamos
vivendo constantemente ameaçados. O pior que sentimos é que o estado não está
ao nosso favor, pelo contrário. A ameaça parte de quem deveria nos defender”,
disse Valmir Oliveira.
Em
maio deste ano, o Ministério Público Federal pediu que todos os atos sobre esse
caso fossem anulados. A justificativa do MPF é que o órgão deveria ter sido
intimado pela justiça da Bahia desde o início da ação judicial, pois “há
interesse social […], tendo em vista a existência de disputa coletiva pela
posse de terra rural envolvendo comunidade quilombola”.
No
texto, o MPF relembrou que a Constituição de 1988 versa que “aos remanescentes
das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o estado emitir-lhes os títulos
respectivos”.
Em
um ofício conjunto, assinado com a Defensoria Pública da União e endereçado em
março deste ano ao governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues, do PT, o MPF
sinalizou que as ações movidas pelo empresário Paulo Roberto para tentar
criminalizar os quilombolas com a prática de devastação ambiental “não passam
de má-fé, apenas para constranger e oprimir a comunidade violada”.
O
MPF também pediu ao governador que interrompesse qualquer operação policial na
região, além de lembrar que o processo foi remetido para justiça federal, com
competência para julgar o caso. O governo da Bahia foi procurado, mas não se
pronunciou sobre esse ofício.
Mesmo
com a entrada do MPF, as intimidações policiais não cessaram. Em maio deste
ano, Valmir Oliveira relatou que dois policiais civis estiveram em sua casa,
quando ele não estava presente, e ameaçaram sua esposa. “Quando eles estavam
indo embora, o carro do colégio chegou, e eles fizeram questão de perguntar às
crianças quem ali era meu filho. Foi uma ameaça a ele também”, contou.
“Por
meio da Defensoria Pública da União, nós deixamos registrado na corregedoria da
Polícia Civil esses tipos de ameaças que vêm acontecendo contra Valmir e sua
família. São claras e manifestas tentativas de intimidação para que ele deixe a
área”, disse José Moreira, advogado dos quilombolas.
Nós
procuramos a Polícia Civil da Bahia, que não identificou quem são os policiais
que aparecem nas imagens. Por meio de nota, a corporação disse que apura a
conduta dos agentes envolvidos na corregedoria. E que as imagens feitas em
vídeo, depoimentos e demais elementos “serão analisados para o esclarecimento
do caso”. A Polícia Civil disse ainda que prioriza o preparo dos servidores, além
de prezar “pelo compromisso com a ética e o equilíbrio social”.
A
Polícia Militar também foi procurada, mas não respondeu às nossas mensagens.
·
Prefeito com avião, supermercado e mansão
O
município de Mata de São João é cercado de praias e espaços badalados que
atraem turistas de todo país e também estrangeiros. O destino mais famoso é a
Praia do Forte – com resorts de luxo e uma vila, antes de pescadores, mas hoje
ocupada por marcas famosas, como Cacau Show, Havaianas, Chili Beans, Hering e
Carmen Steffens.
Por
trás do glamour, há uma história de disputa de terra em outras comunidades
quilombolas, além do Jitaí. O tucano João Gualberto, atual prefeito da cidade,
é apontado pelos quilombolas como responsável por tensionar esse processo por
dois motivos. O primeiro, na tentativa de transformar a reserva ambiental de
Praia do Forte, área reivindicada pelas comunidades tradicionais, em Unidade de
Conservação.
E
o segundo, por ser sócio de condomínios de luxo e empreendimentos milionários
na região de Praia do Forte. Gualberto está em seu terceiro mandato. Antes,
comandou a cidade de Mata de São João entre 2005 e 2012. Em 2020, foi eleito
para mais quatro anos. Ele é filiado ao PSDB, é do grupo político de ACM Neto e
já foi deputado federal.
Em
2014, quando concorreu à Câmara dos Deputados, Gualberto havia declarado um
patrimônio de R$ 68 milhões. Em seis anos, seu patrimônio engordou 250%. Na
última vez que foi candidato, declarou ao TSE uma fortuna de R$ 170 milhões,
que inclui: uma aeronave avaliada em R$ 2,9 milhões; uma casa em Praia do Forte
de R$ 7,4 milhões; uma conta do Banco do Brasil em Miami, com R$ 7,4 milhões
guardados; um apartamento em Salvador, de R$ 22 milhões; além de cotas de
participação em empresas – a principal delas é o supermercado HiperIdeal, que
administra com a família.
·
Reserva em nome de ex-assessora
Desde
2009, os 546 hectares da reserva legal de Praia do Forte – chamada também de
Reserva Sapiranga – estão registrados em nome da Fundação Garcia D’Ávila. A
organização atualmente é presidida pela jornalista Cristiane Correia de
Andrade, vereadora de Salvador, conforme consta no registro da Receita Federal.
Conhecida
no meio político como Cris Correia, ela foi assessora de comunicação de João
Gualberto em seu primeiro mandato como prefeito, sendo promovida a chefe de
gabinete quando ele assumiu uma cadeira na Câmara dos Deputados, em Brasília.
Gualberto depois foi o padrinho político de Correia, lançando-a, em 2020, na
disputa do legislativo municipal de Salvador – ela foi eleita, também pelo
PSDB, com 7.166 votos.
O
atual prefeito de Mata de São João foi o maior doador da campanha de Correia,
com R$ 225 mil, de acordo com dados do TSE. Com R$ 75 mil, José Humberto Souza
foi o terceiro maior doador, atrás da própria candidata.
Souza
é sócio administrador da rede de supermercados HiperIdeal, de Gualberto.
Aparece também como sócio de uma série de empreendimentos em Praia do Forte,
como a Eco Fazenda Praia do Forte LTDA e a construtora Enseada do Castelo
Empreendimentos – o empresário Luís Eduardo Magalhães Filho, primo de ACM Neto,
também compõe o quadro societário desta empresa.
Em
outro de seus negócios em Mata de São João, Souza novamente surge acompanhado
de pessoas influentes e endinheiradas da elite financeira e política da Bahia.
Ele é sócio e administrador da Praia do Castelo Empreendimentos Turísticos LTDA
– que tem na fileira de sócios nomes como o atual presidente do Esporte Clube
Bahia, Guilherme Bellintani; a diretora do jornal Correio e irmã de ACM Neto,
Renata Magalhães; e o deputado estadual pelo PSDB, Tiago Correia.
Na
última campanha de Gualberto para a prefeitura, Souza doou R$ 23 mil, além de
fornecer computador, celular, cadeira, mesa e armário, segundo consta na
declaração de campanha no TSE.
Procuramos
José Humberto Souza, por meio dos e-mails cadastrados em algumas de suas
empresas, mas ele não retornou nosso contato.
A
vereadora Cris Correia foi localizada, mas não quis falar sobre os conflitos de
terra em Mata de São João. Por, segundo ela, “não ser a fonte para falar desse
assunto” e “por não estar acompanhando de perto”.
Perguntei
sobre o fato dela ser a atual presidente da Fundação Garcia D’Ávila, mas
Correia negou ocupar o cargo. “Faço parte do conselho diretor, mas nunca fui
presidente”. Questionei o motivo de seu nome constar no registro da Receita
Federal como presidente e envei o documento que comprova o fato. “Eu não sei
explicar, mas garanto que não sou presidente da fundação. Faço parte dela
[fundação], mas não sou presidente”, afirmou.
Por
telefone, falamos com o prefeito João Gualberto. Perguntei sobre a relação dele
com o sócio José Humberto Souza e os diversos empreendimentos na região. “A
pergunta é capciosa. As pessoas falam que sou dono de Praia do Forte. E na
verdade nós somos [sócios] minoritários. Os empreendimentos que temos lá são do
fundo. São 50 sócios. Somos sócios minoritários, tem que procurar quem são os
majoritários. Do HiperIdeal [rede de supermercado], eu posso responder, porque
sou dono de 75%. Eu e Humberto”, disse.
Perguntei
também sobre a relação dele com a vereadora Cris Correia e o fato de ela
aparecer como presidente da Fundação Garcia D’Ávila. “Quando ela se lançou na
política, era natural que eu ajudasse ela. E pedi que Humberto ajudasse também.
Está explicado! E sobre essa questão da fundação, não é comigo. Eu só respondo
sobre minhas empresas e a prefeitura”, rebateu Gualberto.
Quando
questionei o fato de ele também já ter presidido a Fundação Garcia D’Ávila, o
prefeito se limitou a dizer que “isso foi há mais de 10 anos” e não quis
responder se ainda mantém algum vínculo com a organização.
·
Quando os condomínios eram quilombos
Muitas
dessas áreas, transformadas em condomínios residenciais de luxo, pertenciam a
quilombolas. Nos anos 1970, o empresário paulista descendente de alemães Klaus
Peters – já falecido – adquiriu diversas propriedades e iniciou o projeto de
transformar Mata de São João em área turística. Nesse processo, comunidades
tradicionais tiveram seus territórios invadidos e reduzidos.
“Praia
do Forte era um grande quilombo que foi tomado. Hoje, nós tentamos apenas
existir, porque perdemos nossas terras. Tentaram também nos tirar o acesso às
praias e até o direito de pescar. A vila, que era dos pescadores, nós não
conseguimos mais frequentar, porque ficou caro, e só pessoas com poder
aquisitivo conseguem comprar e vender lá”, disse Maria Jurema, presidente da
Associação Quilombo Tatuapara, que representa as comunidades de Pau Grande de
Baixo, Beira Rio, Tapera e castelo da Torre e adjacências.
Desde
2005, a Fundação Palmares reconhece essas comunidades como quilombolas. Jurema
contou, no entanto, que há um assédio constante de agentes da prefeitura para
desencorajá-los a seguir com a regularização junto ao Incra, o Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária – etapa final do processo de
reconhecimento.
“O
prefeito João Gualberto assedia os moradores das comunidades prometendo casas
novas, móveis novos, na tentativa de desmobilização do autorreconhecimento. Ele
tem feito um trabalho individual para comprar os terrenos e nos enfraquecer
enquanto grupo, tanto que muita gente já abriu mão desse processo”, completou
Jurema.
Sob
anonimato, uma moradora de uma das áreas próximas à Reserva Sapiranga contou
que tem sofrido assédio da prefeitura para deixar o terreno – propriedade que
diz ser da sua família há mais de 100 anos. Ela disse que a casa de alguns de
seus parentes já foi derrubada por agentes municipais e que uma quadra, usada
para prática de esportes, foi tomada para o reflorestamento.
“Eles
queriam que eu assinasse uma anuência para ceder o terreno, mas eu não assinei.
Por conta disso, tive vários problemas. A casa do meu filho foi separada da
minha e disseram que a dele estava dentro da área de reserva. Eu não aceitei.
Eles me assediam e ameaçam constantemente. Tudo isso para eu desistir”, narrou.
O
prefeito João Gualberto negou que isso aconteça. “O que existem são algumas que
não moram lá há muitos anos e que querem retornar e não tem área. Nós,
prefeitura, não podemos dar alvará, porque o Inema proíbe”, afirmou. “As
pessoas fazem construção sem alvará… Eu não posso fazer nada. Quem proíbe é o
Inema”.
Os
moradores temem que, ao transformar a reserva em Unidade de Conversação, a
prefeitura passe a dificultar a manutenção de uma série de atividades
desenvolvidas no entorno, como pesca, caça e criação de animais. Outra medida
possível é impedir que novos moradores, parentes dos quilombolas residentes, se
alojem nessa área – um pleito antigo de donos de empreendimentos luxuosos,
preocupados com o que chamam de “favelização”de Praia do Forte.
Para
que a certificação ambiental aconteça, a Fundação Garcia D’Ávila já teve a área
de reserva desapropriada. Pedimos que a prefeitura de Mata de São João nos
indicasse o valor dessa desapropriação, o que não foi feito. Como esse processo
ainda não foi concluído – ainda precisa ser averbado no cartório municipal – a
área ainda não está inteiramente regularizada como de propriedade do poder
público municipal.
“Parece um discurso ambiental, mas não é. Eles querem
garantir a reserva para ser um atrativo para os donos de condomínios e hotéis,
ao mesmo tempo que impede que nós continuemos naquele espaço, que sempre foi
nosso”, diz Maria Jurema.
Fonte:
Por André Uzêda, em The Intercept
Nenhum comentário:
Postar um comentário