Mudanças no clima impõe corrida contra o tempo para espécies da
floresta amazônica
As espécies da floresta amazônica deverão enfrentar
uma corrida contra o tempo para acompanhar o deslocamento dos nichos climáticos
onde vivem diante do avanço – cada vez mais veloz – das mudanças no clima.
Estima-se que até 2050 estas teriam que migrar em velocidade muito acima da
média global para conseguir acompanhar o deslocamento dos climas aos quais já
estão adaptadas. Isto é o que revela estudo recém-publicado na revista
científica Plos One.
Publicado no formato de artigo, o estudo, assinado
por pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA), da Universidade
Federal Rural da Amazônia (UFRA) e do Museu Paraense Emílio Goeldi, estima a
velocidade com que as mudanças climáticas avançam sobre as florestas amazônicas
– incluídas aquelas inseridas em unidades de conservação (UCs) e terras
indígenas (TIs) – nos nove países que as compõem.
O artigo estima que os nichos climáticos onde vivem
as espécies na Amazônia serão deslocados, em média, 7,6 quilômetros por ano
(km/ano) com o avanço das mudanças climáticas. “Essa é a velocidade mediana com
que os climas vão se deslocar para outras regiões no futuro”, explica a
((o))eco o geógrafo Calil Torres Amaral, primeiro autor do estudo.
Idealmente, as espécies teriam que acompanhar o
mesmo ritmo para permanecer nesses nichos climáticos onde já estão adaptadas.
Entretanto, a velocidade é quase quatro vezes maior do que o ritmo médio de
migração observado na maioria dos ecossistemas e grupos de seres vivos até
então conhecidos pela ciência, que é de cerca de 2 km/ano. “Este é o quanto
elas precisariam migrar (7,6 km/ano). Se as espécies vão ou não conseguir
acompanhar é incerto”, diz Amaral, que é doutorando em Ecologia e Conservação.
Para chegar a essa estimativa, os pesquisadores
dividiram a Amazônia em quadrados de 100 km² e determinaram em cada um destes o
seu nicho climático — com base nas quantidades anuais de precipitação e
temperatura médias anuais encontradas. Com métricas e modelos numéricos que
avaliam os efeitos de mudanças no clima, estimou-se então onde esses
“envelopes” climáticos estariam, nessas mesmas condições, em 2050.
“Tendo a distância entre essas duas áreas e
dividindo pelo tempo, a gente tem a velocidade climática. Ou seja, em que ritmo
e direção um clima está indo de um local para o outro”, explica o pesquisador.
“Com isso, estimamos com que velocidade as espécies que estão aclimatadas
nessas áreas hoje teriam que migrar para acompanhar o deslocamento do nicho
climático”.
• Uma
incógnita
A Amazônia é uma das regiões globais com o maior risco
de desenvolver, no futuro, condições climáticas sem precedentes – ou seja, até
então não registradas –, descreve o artigo.
Se as espécies irão conseguir ou não acompanhar a
velocidade das mudanças no clima no bioma, o tempo dirá. Entretanto, o cenário
projetado empurra a sobrevivências dessas para uma incógnita. “Existem variadas
formas de responder às mudanças no clima. Cada espécie procura a sua estratégia
para sobreviver”, diz o geógrafo.
Se aclimatar as mudanças em curso, se adaptar
evolutivamente ou migrar são respostas que podem ser apresentadas. “Mas se a
espécie não se aclimata, não tem tempo o suficiente para se adaptar
evolutivamente e não é capaz de migrar as distâncias necessárias, ela corre o
risco de ser extinta. Mas essa seria a última resposta”, diz o pesquisador.
Entender o impacto do ritmo acelerado das mudanças
no clima em cada grupo de espécie que vive na Amazônia requer estudos. No
artigo recém-publicado, a estimativa é do risco climático nas áreas em geral,
partindo da premissa de que em cada nicho climático, deslocado pelas mudanças
no clima, as espécies presentes estão aclimatadas a ele. “Poderiam ser plantas
e animais, mas sabemos que um animal consegue, ele mesmo, migrar em vida. Já a
planta precisa que uma outra geração, a próxima semente, avance na distribuição
geográfica para que a espécie comece a migrar”, explica.
Entretanto, a forma como se conhece hoje a
biodiversidade amazônica muito possivelmente deve mudar. “Possivelmente não vai
ser igual a hoje a composição de espécies, assim como a estrutura das florestas
e as funções ecossistemas que elas promovem. Isso tudo vai mudar. Porém, o
impacto sobre cada grupo taxonômico (de seres vivos) pode variar muito e por
isso caberá a um esforço interdisciplinar dos cientistas a interpretação dos
efeitos de um planeta em mudança”, completa.
A nível ecossistêmico, o risco é a perda de funções
e serviços fornecidos pelas florestas, como o armazenamento de um grande
estoque de carbono e a reciclagem de chuvas. “Se o clima no centro da Amazônia
não for mais climaticamente adaptado para muitas espécies, nós poderemos
começar a perder funções ecossistêmicas e serviços naturalmente fornecidos
pelas várzeas”, exemplifica Amaral.
• Áreas
protegidas não estão imunes
Importantes ferramentas de conservação da floresta
amazônica, as áreas protegidas ocupam 53,5% do bioma, descreve o artigo.
Entretanto, nem mesmo estas estão imunes aos efeitos das mudanças no clima.
Segundo Amaral, um terço das áreas protegidas da
Amazônia, especialmente em seu centro, não devem apresentar climas análogos em
2050, ou seja, nichos climáticos parecidos com os que existem hoje, e para onde
espécies abrigadas por essas áreas poderiam se refugiar. Altas temperaturas e
mudanças nos padrões de precipitação, sem precedentes no bioma, farão desta
região “um envelope climático potencialmente isolado e inadequado para espécies
no futuro”, diz o artigo.
“A gente tem uma condição paradoxal nesse centro
úmido da Amazônia Central. Se por um lado, pode ser visto como uma parte muito
conservada, por não ser atingido pelo avanço do arco do desmatamento, por
outro, segundo nossa métrica, é uma área
que vai perder muito dos seus nichos climáticos atuais.”, diz o pesquisador.
Compreender o porquê da vulnerabilidade dessa
região também requer mais estudos, mas uma hipótese associa isso à sua
estabilidade climática. “Esse centro é climaticamente estável, não tem grandes
alterações de temperatura anual, de precipitação anual”, explica Amaral. “Como
vai mudar, para encontrar um clima semelhante ao que se tem hoje seria muito
difícil no futuro”.
Pesquisador da UFPA, Everaldo de Souza acredita que
a força da pesquisa está na proximidade do cenário futuro considerado, o ano de
2050. “Ao extrair uma média de diversas projeções climáticas globais […] e
aplicarmos sobre ela uma métrica inovadora que nos informa a velocidade e
direção do movimento climático ao longo do espaço, conseguimos classificar cada
uma das áreas protegidas em relação ao risco de enfrentarem climas em
desaparecimento e climas novos”, diz ele, que é coautor do artigo.
• Cooperação
transnacional
Pesquisadora titular do Museu Paraense Emílio
Goeldi, Ima Vieira também assina o artigo. Segundo ela, as mudanças climáticas
impõem novos desafios às estratégias tradicionais de conservação da
biodiversidade.
“Tomadores de decisão e conselhos gestores de UCs
necessitam de dados mais personalizados para promover a adaptação de suas
áreas. Garantir a relevância e eficácia contínuas da rede de áreas protegidas
da Amazônia é um desafio fundamental para a conservação da biodiversidade
diante das mudanças climáticas”, aponta Vieira.
Uma forma de mitigar o impacto do ritmo acelerado
do avanço das mudanças no clima sobre as espécies na floresta amazônica seria a
formação de corredores ecológicos, que ligassem UCs, TIs e, até mesmo, áreas
privadas entre os países. “É preciso pensar a conservação da biodiversidade de
forma transnacional. Essas áreas precisam estar conectadas porque as mudanças
climáticas e a biodiversidade não enxergam fronteiras. As espécies precisam
migrar”, comenta Amaral.
Tudo para que esse deslocamento da biodiversidade
que compõe a Amazônia possa ocorrer com menor dificuldade e risco. “É o que
podemos fazer para adaptar a rede de áreas protegidas da Amazônia e mitigar os efeitos
das mudanças climáticas. Precisamos estar preparados para elaborar novas
estratégias de manejo, específicas para cada área e adaptadas às mudanças no
clima.”, conclui o geólogo.
“É
urgente decretar moratória ao desmatamento”, afirma cientista
Pesquisadora líder do estudo que ganhou os
noticiários de todo mundo ao sugerir que partes da Amazônia já emitem mais
carbono do que removem da atmosfera devido ao desmatamento e às mudanças
climáticas, a coordenadora do Laboratório de Gases de Efeito Estufa do Inpe,
Luciana Gatti, acredita que o cenário apontado no estudo ainda pode ser
revertido. Em entrevista após a publicação da pesquisa na revista Nature, na
última quarta-feira (14), ela comenta que é urgente não só fazer uma moratória
do desmatamento, com política de desmatamento zero, como ainda ter grandes
projetos de recuperação florestal nas áreas mais impactadas.
Leia a entrevista:
• De
onde veio a ideia de fazer um levantamento de longo prazo para testar essa
hipótese de a Amazônia ter virado fonte de carbono para a atmosfera?
Esse estudo começou no início do LBA (Experimento
de Larga Escala na Biosfera-Atmosfera na Amazônia, no final dos anos 1990) e se
pretendia, então, responder o que a Amazônia representa no balanço global de
carbono. Várias estratégias foram adotadas para tal, e a equipe de que faço
parte adotou a estratégia de fazer medidas com avião de pequeno porte coletando
um perfil vertical, que é um voo em espiral onde o pesquisador vai coletando
frascos de ar a várias alturas diferentes, desde 4,4 km até uns 200 m acima da
superfície. Começamos medindo apenas a Floresta Nacional dos Tapajós e por um
período de quatro anos, mas nos demos conta de que, para responder o que a
Amazônia representa no balanço global de carbono, era preciso estender não
somente as áreas a serem analisadas (foram adicionadas outras três), mas também
o período de análise. Estendemos o objetivo para uma década de medidas e,
fazendo isso, observamos que as emissões de queimadas ultrapassavam em muito a
absorção que a floresta conseguia fazer.
• Além
do efeito direto das queimadas e do desmatamento, o estudo apontou um efeito
secundário da ambiental sobre a absorção de carbono pela floresta . Poderia
explicar?
Já se sabe que acontece uma emissão direta com a
queimada. No nosso método conseguimos, através do monóxido de carbono, separar
o CO2 que veio da queimada e analisar o restante, ou seja, todas as emissões
que não são de queimadas. Ali temos toda a decomposição da matéria morta, o
desbalanço entre fotossíntese e respiração nos momentos de estresse e também
outras atividades antrópicas que geram emissões. Olhando isso, começamos a
querer entender quais os drivers que estavam influenciando esse processo. Para
tal, fizemos também um estudo de 40 anos das temperaturas e precipitações,
desmatamentos, etc. A primeira coisa que percebemos foi que as regiões mais
desmatadas apresentavam mais perda de precipitação e aumento de temperatura,
principalmente na estação seca (agosto a outubro). Nessas regiões com menos
chuva, você observa um decaimento na absorção de CO2, emissões muito maiores de
queima de biomassa, o que não ocorre em regiões onde a floresta está menos
impactada. Somando Pará e norte de Mato Grosso, por exemplo, essas regiões
estão em média 30% desmatadas e apresentam uma emissão de carbono total dez
vezes maior do que a emissão no lado oeste, que em média está 11% desmatada. O
impacto desse processo é muito grande e não é linear. Estudos mostram que, sob
estresse, algumas espécies de árvore entram em hibernação, e aí elas param ou
reduzem muito a fotossíntese, mas continuam com a respiração constante. Esse é
um primeiro motivo para vermos que, por exemplo no Sudeste da Amazônia, mesmo
nos meses sem queimadas diretas, já há emissão de CO2. Esse círculo vicioso faz
com que se tenha redução de chuva, aumento de temperatura e uma inflamabilidade
maior da floresta durante a estação seca.
• Ainda
é possível reverter esse quadro?
Essa é uma pergunta difícil de responder, mas não
podemos deixar de tentar. Se olharmos o sudeste da Amazônia, vemos que essa é
uma região de emergência. A floresta que não foi desmatada virou uma fonte de
carbono porque a mortalidade está muito alta. É urgente não só fazer uma
moratória do desmatamento, com política de desmatamento zero, como ainda ter
grandes projetos de recuperação florestal nas áreas mais impactadas. Não é
possível dizer se dá para recuperar ou não, mas eu acredito que sim. A natureza
é muito complexa, e precisamos entrar urgentemente em um ciclo positivo, com
mais evaporação de água, que irá reduzir as temperaturas, ajudando a amenizar
as mudanças climáticas e assim favorecendo a recuperação da floresta.
• Qual
o impacto ambiental dentro e fora da Amazônia da maior emissão que absorção?
A estação seca na Amazônia esta cada vez mais seca,
mais quente e mais longa. Isso causa um stress muito grande para planta, o que
está aumentando mortalidade das árvores. Então, além de o desmatamento estar se
intensificando, você tem menos árvores jogando vapor d´água para a atmosfera.
Isso resulta em cada vez menos chuvas. Vemos claramente essa perda de
precipitação no estudo de 40 anos e, juntamente com isso, um aumento
exponencial da temperatura, principalmente na região sudeste, que é onde se
somam dois efeitos: o regional do desmatamento e o global da mudança climática,
que também está interferindo na Amazônia.
• Quais
são as consequências para as pessoas que vivem fora da Amazônia dessa
transformação?
Estamos impactando a quantidade de chuvas não só na
Amazônia, mas em toda região central e sul da América do Sul. As massas de ar
que vêm do oceano e trazem umidade, precipitam na floresta e são as árvores por
meio da evapotranspiração, assim como os rios e lagos, os responsáveis pela
reposição das chuvas que chegam às demais regiões. Como estamos desmatando e
promovendo essa mortalidade das árvores, isso pode significar uma redução de
25% a 50% de reposição de vapor de água na atmosfera.
Hoje já estamos tendo incêndios incontroláveis no
Brasil inteiro, por exemplo. Nos últimos três anos o desmatamento acelerou
muito e a redução de chuva também. Já é possível fazer essa correlação.
• Como
isso dialoga com a ideia de tipping point, o temido ponto de virada a partir do
qual a floresta deixa de ser floresta? Dá para dizer que pelo menos no sudeste
da Amazônia o tipping point já chegou? E no restante da Amazônia?
Antes é preciso ver qual o conceito está por trás
do tipping point. Não dá para afirmar se esse cenário é reversível ou não, eu
entendo que ainda podemos criar condições de recuperação da floresta. Mas está
sim havendo processo de savanização no sudeste da Amazônia.
• A
sra. havia apresentado alguns resultados dessa pesquisa em 2018 na conferência
de Katowice, na Polônia. Por que o artigo na Nature só saiu três anos depois?
Partes desse estudo vêm sendo apresentados no meio
científico ao longo dos anos, em suas diferentes fases. Mas foram necessários
diversos ajustes de métodos, validações, até que chegássemos, de forma confiável,
às conclusões do atual estudo. Enquanto eu não tinha certeza do resultado, não
me sentia confortável em apresentar as nossas conclusões. Queria que isso fosse
feito com responsabilidade e confiança. Além disso, não queríamos contar para o
mundo somente o resultado, a gente queria mostrar o que realmente estava
influenciando este cenário, para ajudar a formular políticas publicas que visam
reverter esse quadro.
• Quais
podem ser as consequências desse processo para as metas do Acordo de Paris?
O Brasil está andando na direção oposta do acordo,
pois estamos só ampliando nossas emissões. Para reverter isso, em primeiro
lugar o esforço a ser feito a nível nacional tem que ser muito maior. Em
segundo, a solução que está sendo dada para a crise hídrica, a partir de
termelétricas, só vai aumentar as emissões. Estamos indo na direção oposta em
vários sentidos no Brasil, tanto nas políticas ambientais quanto nas de geração
de energia elétrica e nas comerciais, com o país se colocando como um produtor
de carne e grãos para o resto do mundo.
Fonte: ((o))eco
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