Como sentir raiva pode fazer mal à sua saúde
"O
ser humano é uma casa de hóspedes. Todos os dias chega uma nova visita, uma
alegria, uma tristeza, uma decepção…"
Em seu
famoso poema A Casa de Hóspedes, o escritor persa do século 13
Rumi relembra nossa coexistência diária com convidados inesperados: as emoções.
Algumas
podem ser intensas e desconfortáveis, mas também são aliadas que nos revelam
informações valiosas.
É o
caso da raiva, que pode nos
"sequestrar" e até ser prejudicial à saúde, mas também pode nos
dar clareza e motivar mudanças positivas.
A BBC
News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, conversou com duas
especialistas sobre esta emoção — e como administrá-la.
A
neurocientista espanhola Nazareth Castellanos é pesquisadora do Laboratório
Nirakara-Lab, e do departamento de mindfulness e ciências
cognitivas da Universidade Complutense de Madri. Dolores Mercado é professora
de graduação e pós-graduação na faculdade de psicologia da Universidade
Autônoma do México (UNAM).
O que
acontece no nosso corpo quando a raiva é liberada? Quais ferramentas podemos
usar para lidar com ela? E como podemos ajudar as crianças a expressá-la
de forma saudável?
- O que acontece
no cérebro
Quando
surge um conflito, um dos parâmetros que nos informa sobre nossa inteligência
emocional e nosso estado interior naquele momento, é a velocidade de reação,
diz Nazareth Castellanos.
"Diz-se
que há momentos em que o cérebro responde, e há momentos em que o cérebro
reage. Idealmente, o cérebro deveria responder, mas normalmente ele reage, ou
seja, responde muito rápido", ela explica.
"Imagine
que alguém chega e te diz algo que provoca aversão. Essa informação, quando
entra no cérebro, segue sua rota normal e, quando passa pela amígdala, que é a
área mais importante para as emoções mais aversivas, como a raiva, a amígdala
tem de interpretar, junto ao hipocampo e o córtex frontal, esses três, o quão
desagradável foi essa reação."
Quando
já estamos estressados, os neurônios da amígdala ficam muito ativos, e reagimos
mais rapidamente a qualquer estímulo, explica a especialista, que sugere
considerar três situações.
Na
primeira, "fulano chega e me diz algo desagradável. E então o hipocampo e
o córtex frontal, juntos, moderam a amígdala. Imagine o papel de um mediador. É
um cenário um pouco idílico, e nem sempre útil".
No
segundo cenário, alguém nos diz algo, e ficamos com raiva.
"A
amígdala aumenta sua atividade. E eu começo a respirar mais rápido, a tensão
aumenta, meu coração bate mais rápido e meus músculos mostram isso. É o que
deveria ser normal. Alguém vem e diz algo negativo para mim, e eu respondo à
raiva agora."
No
terceiro cenário, já estamos muito estressados ou muito irritados com fulano.
"E
ele vem e me diz algo negativo. Minha amígdala já está 'martelando' e ela envia
a informação para o córtex frontal, mas enviesada. Tudo se torna
amígdala."
A
reação, neste caso, é exagerada.
"Então
eu posso dizer coisas das quais me arrependo; há pessoas que podem ter um
ataque cardíaco. É o circuito da amígdala, do hipocampo e do córtex frontal.
Mas, neste caso, o que tem mais votos, o que tem mais peso, é a amígdala."
- O coração e o
sistema digestivo
Um estudo de 2024, liderado por Daichi Shimbo, professor de
medicina da Universidade de Columbia, nos EUA, descobriu que um episódio de
raiva de oito minutos altera a capacidade de dilatação dos vasos sanguíneos,
aumentando o risco de danos vasculares de longo prazo.
A
mudança mais imediata que notamos em um episódio de raiva é no sistema
cardiorrespiratório, pois a pressão arterial, a frequência cardíaca e a
frequência respiratória aumentam.
As
mudanças a nível digestivo, por outro lado, tendem a ser mais lentas.
"O
intestino tem toda uma rede de neurônios chamada sistema entérico. O sistema
entérico faz com que o estômago se contraia, e inflame", explica
Castellanos.
"Quanto
mais alto no corpo, mais rápido as coisas acontecem. O estômago e o intestino
são lentos. Talvez eu tenha ficado com raiva, e tenha me acalmado, e depois de
um tempo minha barriga parece inchada, inflamada, sinto queimação, e tenho
muito desconforto estomacal e intestinal."
- A
raiva, o motor da mudança
"Todas as emoções têm uma função, como
diz o belo poema A Casa de Hóspedes, de Rumi", observa
Castellanos.
"Às vezes, é preciso bater na mesa, e
não ficar sentado, e achar que está tudo bem."
"Há um livro de que gosto muito que
é El Optimismo Inteligente ('O otimismo inteligente', em
tradução livre). Se fulano de tal me diz isso e aquilo, e eu tento fazer uma
cara boa, talvez eu não esteja reagindo da maneira que deveria. É preciso ter
muito cuidado", diz ela.
Dolores Mercado nos lembra que "a raiva
é a resposta emocional a uma agressão, uma injustiça ou um obstáculo à
realização de seus objetivos".
"Assim como todas as emoções, ela tem
uma função adaptativa, naturalmente protetora, e suas funções incluem:
restaurar a justiça e remover obstáculos à realização de seus objetivos.
Comunicar que está com raiva."
Mas quando a intensidade é muito alta ou sua
duração é muito longa (é tão frequente que quase se torna habitual), a raiva
prejudica as pessoas fisiologicamente, seu bem-estar subjetivo e suas relações
sociais, acrescenta a especialista da UNAM.
"Além disso, quando a resposta não
corresponde à situação ambiental ou ao estímulo interno, é chamada de raiva
irracional. Não é adaptativa."
Quando as emoções surgem como reação a uma
situação que consideramos injusta, a raiva gera uma necessidade de ação.
"Santo Agostinho tem uma bela citação
que diz: 'A esperança tem dois filhos preciosos: a raiva quando percebemos as
coisas como são, e a coragem para mudá-las'", afirma Castellanos.
O problema é que, segundo ela, muitas vezes
não sabemos como canalizar nossa raiva para resolver o conflito.
"Na Espanha, por exemplo, costumamos
dizer que nos irritamos muito, e não fazemos nada. Outro dia eu estava no
metrô, e a máquina de cartão não funcionava", diz ela.
"E todo mundo ficava resmungando: 'Que
droga, que droga...', mas ninguém foi registrar uma reclamação."
"Então você ficou muito aborrecido, mas
não mudou nada."
Castellanos ressalta que a raiva aguça os
recursos neurais e amplifica a percepção.
"Devemos ser gratos pelo papel dela;
muito do progresso que fizemos como seres humanos foi graças à raiva de alguns.
Se as mulheres em Londres em 1900 não ficassem indignadas, não
votaríamos."
- Ferramentas
para controlar a raiva
1- Permitir e investigar
A psicóloga americana Tara Brach ensina uma
ferramenta para emoções chamada RAIN ("chuva" em inglês). RAIN é o
acrônimo para quatro palavras: Recognize ("reconhecer), Allow ("permitir"), Investigate ("investigar")
e Nurture ("nutrir e cuidar" da parte do nosso eu
interior de onde vem essa emoção).
Ao investigar a raiva, podemos nos perguntar:
o que me deixou com raiva? O que eu quero mudar? É justo mudar isso?
"Talvez eu esteja interpretando mal,
porque você sempre tem que ter essa autocrítica também. E com esse olhar
humilde, mas prático. Talvez eu esteja exagerando porque estou muito
nervoso", observa Castellanos.
"Para
mim, um dos exercícios mais importantes em saúde mental é ser capaz de
discernir entre uma emoção e outra. Primeiro com você mesmo, mas de uma forma muito honesta. Porque quando a
amígdala está hiperativa, perdemos a honestidade. Eu me defendo, culpo os
outros, porque a amígdala é muito protetora de si mesmo, da imagem de alguém.
Sempre se diz que a amígdala gosta de ter razão. Então, é claro, temos que
baixar um pouco a bola dela para termos clareza suficiente."
2- A importância da respiração
Nazareth Castellanos compartilha outra
ferramenta com a qual ela e seus colegas conduziram um novo estudo, que está em
processo de publicação na revista científica Biological Psychology.
"Quando estamos muito ansiosos e
irritados, nosso padrão respiratório é alterado. A amígdala faz algo chamado
apneia induzida pela amígdala. Normalmente, após expirar, fazemos uma leve
apneia; um breve período sem respirar. Eu inspiro, expiro, paro um pouco, e
depois inspiro novamente."
"Quando estou muito irritada, minha
respiração muda muito. Então, essa apneia após a expiração é alterada, e isso,
por sua vez, deixa meu cérebro mais estressado. Em outras palavras, a amígdala
usa o corpo para propagar seu estresse. Então, se eu me voltar para o corpo,
posso acessar a amígdala."
Se nesses momentos de raiva intensa,
tentarmos pensar "não temos controle frontal", estaremos batendo em
uma porta que será difícil de abrir. Mas a amígdala recebe informações não
conscientes do corpo.
O que devemos fazer então "é tentar
desacelerar a respiração, de modo que a expiração seja mais longa do que a
inspiração". Podemos, por exemplo, inspirar contando até três, e expirar
contando até seis.
"Vimos que essa parte da expiração é a
que mais trabalha nas redes cerebrais que controlam a amígdala".
A especialista ressalta que basta fazer o
exercício por alguns minutos para começar a sentir o efeito. Ela adverte, no
entanto, que haverá interferências.
"Você tem que treinar a si mesmo para
retornar à respiração e, se um pensamento vier, deixe-o passar, porque quanto
mais você fecha a porta para ele, mais ele bate. Deixe-o entrar, mas coloque-se
na posição de observá-lo."
3- O poder do mantra
Outra ferramenta compartilhada por
Castellanos é proveniente de um estudo da Universidade de Tel Aviv, em Israel, chamado
"O efeito mantra".
"É um artigo que me ajudou
pessoalmente", diz ela.
"Eles escolheram um grupo de pessoas e
disseram que, se você estiver com raiva, deve repetir uma palavra por um tempo.
Mas tem que ser uma palavra que não tenha conotação espiritual, religiosa,
emocional, não pode ser Jesus Cristo, nem Buda, nem amor, nada. Uma palavra
neutra, mesa, copo. Ninguém se comove com um copo."
A ideia é repetir, então, essa palavra:
"copo", "copo", "copo"... mas em silêncio. Os
pesquisadores observaram que a repetição deste mantra reduzia a atividade da
amígdala.
"Grande parte da interferência da
amígdala na raiva é verbal, 'mas você disse que não', 'mas eu fiz isso', a
amígdala é muito verbal, é uma tagarela raivosa, blá, blá, blá."
"E se você der a ela palavras, mas não
informações, a amígdala se cala. Ela precisa de linguagem, mas o pensamento não
é sobre como esse cara é um canalha e assim por diante. Dê a ela linguagem, mas
não informações".
- Ajudando
as crianças
Em muitos casos, as crianças são incentivadas
a não expressar raiva.
"Temos um pouco de medo da emoção
negativa. Seu filho precisa fazer birra, e você precisa saber que isso vai ser
muito desagradável para você", diz Castellanos.
"A criança que não faz birra é a que
preocupa. Outra coisa é se ela explodir ou for desproporcional. Quando falamos
de emoções, acho que a palavra mais importante é equilíbrio, não
ausência."
"A birra tem uma função no cérebro de
uma criança que está em desenvolvimento. É um mecanismo pelo qual o cérebro
gera essas conexões que vão da amígdala às partes frontais. São como testes de
som."
Como os pais podem ajudar as crianças nesse
processo?
"O que eu faço muito com minha filha é
respirar. É preciso deixar que ela se expresse. Deixá-la sentir que está
contida, que há alguém que está no controle, que há limites firmes, limites
amorosos. O que é difícil para mim é não me deixar levar pela birra dela, não
ficar nervosa também, porque estamos muito sincronizados com o corpo dos nossos
filhos. Ela faz uma birra, e eu sinto isso dentro de mim", admite.
"Então, muitas vezes eu respiro. Ou
recorro ao que eu estava te dizendo sobre o efeito mantra. Enquanto ela está
lá, fazendo um tremendo circo, repito uma palavra para mim mesma."
Dolores Mercado ressalta que é preciso
ensinar às crianças que é normal ficar com raiva — e que elas precisam
reconhecer quando estão bravas.
"Temos que dar espaço para que elas se
irritem e expressem sua raiva, temos que ajudá-las a analisar a situação que
provocou sua raiva, a reação que tiveram, as consequências dessa reação, e se
elas acreditam que a situação foi bem conduzida."
"Uma estratégia consiste em ensiná-las a
não expressar a raiva impulsivamente, a pensar sobre a situação e depois
responder. Outra é perguntar: 'o que eu quero? E como posso conseguir isso?
Ensiná-las que é possível obter mais resultados tentando soluções pacíficas do
que (soluções) impulsivas e agressivas".
- Gerencie
a raiva, mas não a reprima
"O primeiro problema com a raiva
reprimida é que ela não resolve o problema que a causou", explica Mercado.
"Uma consideração importante é o modo de
expressão da raiva. No modo explosivo, a pessoa entra em um ciclo de feedback
que estimula a raiva novamente... Quando se aprende a regular a raiva, é
possível expressá-la para provocar mudanças na situação que a provocou, com
menos danos pessoais e sociais. A raiva é expressa, e os problemas são
resolvidos".
Em seu livro Quando o corpo diz não, o
psiquiatra canadense Gabor Mate explica por que reprimir a raiva e não
estabelecer limites sendo autêntico e respeitando nossos sentimentos leva a
doenças. Se não dissermos NÃO, o corpo faz isso por nós por meio da doença.
"Qualquer emoção reprimida vai aparecer
em outro lugar, e geralmente será somatizada", ressalta Castellanos.
"Assim, da mesma forma que quando você
não está bem fisicamente, isso gera um estado psicológico, ou seja, há duas
direções."
"Temos que entender que são dois lados
da mesma moeda, e que cuidar da saúde mental é cuidar da saúde física, e cuidar
da saúde física é cuidar da saúde mental."
Castellanos ressalta que é importante lembrar
dessa conexão, especialmente em situações adversas da vida, quando sabemos que
nossa saúde física e mental vão sofrer.
"Então você se pergunta: como posso me
preparar?"
"Realizamos um estudo muito interessante
no qual vimos que quando estamos mal em termos de saúde mental, o cérebro
escuta mais o corpo. Portanto, se você tem uma alimentação ruim, e tem um
problema de saúde mental, isso vai te afetar mais. Você pode se permitir comer
porcaria de vez em quando, quando estiver se sentindo bem, mas se estiver se
sentindo mal, isso vai fazer com que você se sinta pior", afirma.
"Você diz: 'Estou passando por uma
situação porque fui demitido, porque me separei, porque houve um luto, isso vai
me afetar', sou um pouco mais obrigado a cuidar do meu corpo."
"Heidegger tem um conceito muito bonito
do dasein, que é o ser, ele diz que é intrínseco ao ser cuidar de
si mesmo. Qualquer um que não cuida de si está traindo seu ser."
Expressar a raiva, observá-la, investigá-la —
e não reprimi-la.
O mestre budista Thich Nhat Hahn afirmou que
devemos cuidar das nossas emoções como uma mãe cuida amorosamente do seu bebê
que chora.
"É sempre importante ouvir nossas
emoções", diz Mercado.
"A raiva é uma forma de interpretar a
realidade e um meio de comunicar emoções de outras pessoas e para elas. Ela
requer analisar a situação (reflexão) para tirar o máximo proveito dela."
Como indica o poema de Rumi sobre as emoções,
não se deve fechar a porta quando chegam convidados inesperados.
"Seja grato a quem vier,
porque todos foram enviados
como guias do além."
Fonte: BBC
News Mundo
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