sábado, 5 de abril de 2025

Massimo Recalcati: A melancolia da Democracia

A Europa teria sido reduzida a um aparato burocrático-administrativo sem alma? O fato de ter sido excluída das mesas internacionais de negociações de paz entre a Rússia e a Ucrânia não evidenciaria a triste imagem de seu declínio político?

O artigo é de Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pávia e de Verona.

Segundo ele, "o que está em jogo não é apenas uma crítica à burocracia das regras à qual o populismo reduz o espírito da democracia, mas uma mudança radical de paradigma. A intenção seria substituir a melancolia decadente da democracia pelo dinamismo hiperativo e extraparlamentar do populismo, que substitui a vacuidade das palavras pela eficácia sem lei da ação, a referência totalmente demagógica do poder ao povo. Esse é um novo vírus que a democracia não deve subestimar, mas deve conseguir enfrentar".

<><> Eis o artigo.

A imagem de um Biden sem mais vigor e incapaz de reconhecer a necessidade de sua substituição fotografa a dimensão melancólica na qual parece estar caindo não apenas o partido Democrata EUA, mas a democracia ocidental como um todo. O destino de um triste ocaso diante da força hiperativa do soberanismo e das lideranças antidemocráticas parece, de fato, encontrar nessa imagem a sua profecia: o apego senil ao poder, a dificuldade de troca geracional, a inépcia na transmissão de uma liderança vital e crível, capaz de visão e invenção, o distanciamento das classes empobrecidas ou mais frágeis e marginais, definem os limites profundos da política da democracia no Ocidente.

Na imagem de Biden tragicamente apegado, até o último suspiro, a um sonho de glória impossível, estão plasticamente impressas todas as razões da atual crise da cultura democrática. Desse ponto de vista, a atual divisão do mundo realizado pelas grandes superpotências é sua confirmação retumbante: a melancolia da democracia sucumbe diante da força viril dos nacionalismos soberanistas. A própria Europa democrática parece esmagada entre duas garras que lhe tiram o fôlego. De um lado, a dimensão senil e impotente da democracia EUA, superada pelo vigor populista do trumpismo e, de outro, a contestação autocrática do parlamentarismo democrático que anima não apenas a Rússia de Putin, mas a maioria dos governos do mundo.

Afinal, poderíamos aplicar à democracia o que Berlinguer disse sobre a União Soviética na década de 1970: seus ideais antigos e revolucionários de fraternidade, liberdade e igualdade teriam esgotado seu impulso propulsor, como aconteceu com a Revolução Bolchevique de Outubro. A Europa teria sido reduzida a um aparato burocrático-administrativo sem alma? O fato de ter sido excluída das mesas internacionais de negociações de paz entre a Rússia e a Ucrânia não evidenciaria a triste imagem de seu declínio político?

A interpretação geopolítica que também governou grande parte de sua opinião pública, particularmente aquela italiana, da resistência ucraniana como uma “guerra por procuração” não mostra sintomaticamente a incapacidade do Ocidente democrático de considerar os valores da democracia como ainda dignos de serem defendidos com a própria vida? Em vez disso, afirma-se uma versão apenas cínica da política que dá razão aos vários soberanismos que interpretam a democracia como uma idosa senhora em seu crepúsculo, cujo único interesse nela é apenas para saqueá-la e repartir seu patrimônio. Não é por acaso que as várias formas de populismo presentes no continente olham para o destino da Europa com desconfiança desencantada, buscando se desvincular de qualquer processo de fortalecimento de sua unidade supranacional.

Além disso, a demagogia populista tem facilidade em criticar o impotente impasse das democracias ocidentais, embaladas em procedimentos parlamentares que parecem desgastantes e impotentes. A essa impotência ela contrapõe a ação direta do líder autoritário, desprovida de inúteis mediações, capaz de uma eficácia inédita, de intervenções decisivas desconhecidas pelas velhas e ultrapassadas instituições democráticas. Se a democracia quer justamente preservar o valor simbólico da lei da palavra, o populismo antidemocrático afirma a força do impulso que transborda continuamente os limites estabelecidos por essa lei. Isso pode ser visto nas atitudes e escolhas de Trump, que reivindica para seu governo uma capacidade de ação imediata que contrasta com a velha e empoeirada democracia parlamentar.

Por trás desse aparente pragmatismo desponta, na realidade, um juízo sobre o fim da democracia como sonho político do Ocidente.

O que está em jogo não é apenas uma crítica à burocracia das regras à qual o populismo reduz o espírito da democracia, mas uma mudança radical de paradigma. A intenção seria substituir a melancolia decadente da democracia pelo dinamismo hiperativo e extraparlamentar do populismo, que substitui a vacuidade das palavras pela eficácia sem lei da ação, a referência totalmente demagógica do poder ao povo.

Esse é um novo vírus que a democracia não deve subestimar, mas deve conseguir enfrentar.

Além disso, não se pode esquecer que foi o fracasso de Biden em reconhecer sua própria insuficiência a tempo que escancarou as portas para Trump e suas infames tropas de choque, e que foi a falta de ação política da Europa que contribuiu para piorar o conflito na Ucrânia antes da invasão russa. Não é necessário apenas avançar em direção à constituição de uma Europa unida como sujeito político autêntico, mas é igualmente necessária uma profunda renovação da cultura democrática a fim de combater o diagnóstico populista da democracia como um ferro velho do passado.

Essa é a grande tarefa que cabe não apenas às forças liberais e de centro-esquerda italianas, mas a todo o Ocidente. Manter-se fiel ao evento ideal da democracia significa mostrar a sua força e não seu declínio resignado. Para fazer isso, no entanto, não basta relembrar os ideais fundadores da Europa como uma superação dos egoísmos nacionalistas, mas sim escrever hoje um novo manifesto político, adequado aos nossos tempos e ao futuro de nossos filhos, para fazer com que esses ideais fundadores vivam no presente e não apenas em sua lembrança nostálgica.

Nesse sentido, o destino futuro da Ucrânia é, para citar apenas um exemplo, uma questão que não pode ficar sem consequências para o Ocidente democrático. Não está em jogo apenas a redefinição territorial das fronteiras, mas a essência da democracia. O direito de defender a autodeterminação de um povo não pode ser subjugado à razão cínica do mais forte. Se os impulsos soberanistas colocarem suas mãos sobre a Ucrânia, eles as colocarão sobre a democracia, mostrando mais uma vez que seu tempo fatalmente se esgotou.

¨      A democracia, uma prática politica em declínio. Por Marcos Roitman Rosenmann

“Lentamente, impõe-se uma ordem de dominação dirigida pelas plutocracias em consonância com o poder de um cibercapitalismo que aumenta o seu controle graças à guerra neocortical, cuja capacidade para anular a consciência e a reflexão aumenta o grau de submissão e o conformismo social”, escreve Marcos Roitman Rosenmann, sociólogo, analista político e ensaísta chileno-espanhol.

<><> Eis o artigo.

Não vivemos na democracia, se por isso entendemos uma conduta fundada na busca do bem comum, da justiça social e da igualdade. Existe uma contradição entre um projeto democrático e a manutenção de relações sociais de exploração. E não só no que diz respeito à exploração de seres humanos por seres humanos, mas também à exercida contra a natureza. Refere-se à degradação do nicho ecológico, à especulação alimentar, à apropriação dos recursos hídricos, às epidemias de fome produzidas por bloqueios, ao patrocínio de guerras, à privatização da pesquisa científica ou limitando o acesso a medicamentos e vacinas às maiorias sociais.

Todos os fatos enunciados, além de questionarem a existência de uma ordem internacional enraizada na paz, evidenciam uma deflação democrática. Neste contexto em que prevalece o capitalismo, devemos somar as instituições que há séculos sobrevivem, como o patriarcado, o racismo, as desigualdades econômicas, o poder das castas, a nobreza, os proprietários de terras e os mandachuvas.

Sem pensar em uma visão idílica da democracia, a realidade social nos leva a acreditar que o futuro da democracia é incerto, quando não contrário aos seus princípios. A origem da democracia, um modo de vida e de governo, encontra-se nas lutas sociais pelo reconhecimento dos direitos dos cidadãos em seu sentido mais amplo. A democracia busca, ao mesmo tempo, equilibrar o poder exercido pelas plutocracias e combater as desigualdades sociais e econômicas por meio da participação política na tomada de decisões. Em outras palavras, que os cidadãos decidam por plebiscito sobre a guerra e a paz, promulguem as leis, controlem os poderes de facto, possam ser eleitos, além de evitar os abusos de poder daqueles que gozam da representação popular.

A democracia é uma proposta de organização social e política. Supõe um programa para a vida em comum, um projeto no qual as prioridades sejam determinadas pelas necessidades coletivas que fazem com que a pessoa, um ser humano, tenha as necessidades básicas atendidas e uma qualidade de vida digna. Tudo isto envolve pensar em um nós coletivo.

Na democracia, cada decisão tem efeitos sobre o tecido social. Construir hospitais, escolas, proteger as crianças, punir a violência de gênero, promover o investimento público em obras sociais e infraestruturas faz parte da democracia. Seu contrário é aprovar uma redução na tributação para as grandes fortunas, elaborar leis antissociais que favoreçam a demissão livre, leis trabalhistas leoninas, limites ao gasto social, criminalizar o protesto social, entregar as riquezas naturais a empresas privadas, vender o patrimônio público aos capitais de risco, reduzir a maioridade penal e favorecer a desregulamentação do capital financeiro e bancário.

As medidas antissociais e os cortes nas liberdades democráticas são cada vez mais comuns, o que nos fala de um processo de oligarquização do poder. A situação de saúde democrática das sociedades atuais é crítica e o diagnóstico futuro não é encorajador. Lentamente, impõe-se uma ordem de dominação dirigida pelas plutocracias em consonância com o poder de um cibercapitalismo que aumenta o seu controle graças à guerra neocortical, cuja capacidade para anular a consciência e a reflexão aumenta o grau de submissão e o conformismo social.

O risco de involução política no planeta é uma realidade a curto prazo. O triunfo das direitas antidemocráticas e o ressurgimento de propostas castradoras dos direitos sociais são um indício a mais do renascimento do fascismo societal. Não se trata do triunfo de uma crítica aos chamados “excessos da democracia” levantados por Hayek, mas uma rejeição à democracia como forma de governo e de vida em comum.

A democracia está sendo atacada e tem aliados em setores sociais que mais deveriam lutar por ela. Renunciar à democracia como projeto societal supõe abrir mão da ideia de uma vida digna, carecer de um sistema de saúde, moradia, educação, ter acesso ao lazer, a uma aposentadoria justa e simplesmente fazer três refeições por dia. Com a desigualdade, qualquer projeto democrático é uma quimera.

Para percebermos o quão longe estamos de viver na democracia, basta citar o Relatório da Oxfam de 2023, ao apontar que apenas no biênio pós-pandemia (2020-2022), 1% da população mundial monopolizou dois terços da nova riqueza gerada em escala global, o dobro dos 99% restantes da humanidade. É cada vez maior a população mundial arrastada para a exclusão social, cuja existência se situa na fronteira do subumano.

Sem medo de errarmos, uma economia e sociedade de mercado construídas sobre a competitividade e a meritocracia destroem qualquer opção de forjar uma ordem democrática. O capitalismo, em seus 500 anos de história, não foi um exemplo em forjar um poder democrático. Contudo, foi em suas entranhas que as lutas democráticas ganharam protagonismo, constituindo barreiras à sua ação predatória.

No entanto, a luta é desigual. Multiplica-se a existência de partidos políticos cujos programas fomentam o ódio, o racismo, a xenofobia, o negacionismo e a necropolítica, ganham adeptos, e o mais preocupante, suas declarações são seguidas por milhões de pessoas. Personagens como Donald TrumpJair BolsonaroJavier MileiNayib BukeleGiorgia Meloni governam ou governaram. São tempos difíceis.

O sucesso das políticas que levantam muros, a desumanização dos imigrantes, o uso da mão dura e o endurecimento das condenações são testemunho da insatisfação democrática. Mentir, enganar, sentir-se acima da lei, estuprar, sonegar impostos, rir das instituições, hoje, não têm consequências políticas. A sociedade não penaliza os comportamentos corruptos. Em conclusão: sem consciência democrática não há poder democrático.

 

Fonte: La Repubblica/La Jornada

 

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