Massimo Recalcati: A melancolia da Democracia
A Europa teria
sido reduzida a um aparato burocrático-administrativo sem alma? O fato de ter
sido excluída das mesas internacionais de negociações de paz entre
a Rússia e a Ucrânia não evidenciaria a triste imagem de
seu declínio político?
O
artigo é de Massimo Recalcati, psicanalista
italiano e professor das universidades de Pávia e de Verona.
Segundo
ele, "o que está em jogo não é apenas uma crítica à burocracia das
regras à qual o populismo reduz o espírito da democracia, mas uma mudança
radical de paradigma. A intenção seria substituir a melancolia decadente da
democracia pelo dinamismo hiperativo e extraparlamentar do populismo, que
substitui a vacuidade das palavras pela eficácia sem lei da ação, a referência
totalmente demagógica do poder ao povo. Esse é um novo vírus que
a democracia não deve subestimar, mas deve conseguir enfrentar".
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Eis o artigo.
A
imagem de um Biden sem mais vigor
e incapaz de reconhecer a necessidade de sua substituição fotografa a dimensão
melancólica na qual parece estar caindo não apenas o
partido Democrata EUA, mas a democracia ocidental como um todo. O
destino de um triste ocaso diante da força hiperativa do soberanismo e das
lideranças antidemocráticas parece, de fato, encontrar nessa imagem a sua
profecia: o apego senil ao poder, a dificuldade de troca geracional, a inépcia
na transmissão de uma liderança vital e crível, capaz de visão e invenção, o
distanciamento das classes empobrecidas ou mais frágeis e marginais, definem os
limites profundos da política da democracia no Ocidente.
Na
imagem de Biden tragicamente apegado, até o último suspiro, a um
sonho de glória impossível, estão plasticamente impressas todas as razões da
atual crise da cultura democrática. Desse ponto de vista, a atual divisão
do mundo realizado pelas grandes superpotências é sua confirmação
retumbante: a melancolia da democracia sucumbe diante da força viril dos
nacionalismos soberanistas. A própria Europa democrática parece
esmagada entre duas garras que lhe tiram o fôlego. De um lado, a dimensão senil
e impotente da democracia EUA, superada pelo vigor populista do trumpismo
e, de outro, a contestação autocrática do parlamentarismo democrático que anima
não apenas a Rússia de Putin, mas a maioria dos governos do
mundo.
Afinal,
poderíamos aplicar à democracia o que Berlinguer disse sobre
a União Soviética na década de 1970: seus ideais antigos e
revolucionários de fraternidade, liberdade e igualdade teriam esgotado seu
impulso propulsor, como aconteceu com a Revolução
Bolchevique de Outubro. A Europa teria sido reduzida a um aparato
burocrático-administrativo sem alma? O fato de ter sido excluída das mesas
internacionais de negociações de paz entre a Rússia e
a Ucrânia não evidenciaria a triste imagem de seu declínio político?
A
interpretação geopolítica que também governou grande parte de sua opinião
pública, particularmente aquela italiana, da resistência
ucraniana como
uma “guerra por procuração” não mostra sintomaticamente a incapacidade do
Ocidente democrático de considerar os valores da democracia como ainda dignos
de serem defendidos com a própria vida? Em vez disso, afirma-se uma versão
apenas cínica da política que dá razão aos vários soberanismos que interpretam
a democracia como uma idosa senhora em seu crepúsculo, cujo único interesse
nela é apenas para saqueá-la e repartir seu patrimônio. Não é por acaso que as
várias formas de populismo presentes no continente olham para o destino
da Europa com desconfiança desencantada, buscando se desvincular de
qualquer processo de fortalecimento de sua unidade supranacional.
Além
disso, a demagogia populista tem facilidade em criticar o impotente impasse
das democracias ocidentais, embaladas em procedimentos parlamentares que
parecem desgastantes e impotentes. A essa impotência ela contrapõe a ação
direta do líder autoritário, desprovida de inúteis mediações, capaz de uma
eficácia inédita, de intervenções decisivas desconhecidas pelas velhas e
ultrapassadas instituições
democráticas.
Se a democracia quer justamente preservar o valor simbólico da lei da palavra,
o populismo antidemocrático afirma a força do impulso que transborda
continuamente os limites estabelecidos por essa lei. Isso pode ser visto nas
atitudes e escolhas de Trump, que reivindica para seu governo uma
capacidade de ação imediata que contrasta com a velha e empoeirada democracia
parlamentar.
Por
trás desse aparente pragmatismo desponta, na realidade, um juízo sobre o fim da
democracia como sonho político do Ocidente.
O que
está em jogo não é apenas uma crítica à burocracia das regras à qual o
populismo reduz o espírito da democracia, mas uma mudança radical de paradigma.
A intenção seria substituir a melancolia decadente da democracia pelo dinamismo
hiperativo e extraparlamentar do populismo, que substitui a vacuidade das
palavras pela eficácia sem lei da ação, a referência totalmente demagógica do
poder ao povo.
Esse é
um novo vírus que a democracia não deve subestimar, mas deve
conseguir enfrentar.
Além
disso, não se pode esquecer que foi o fracasso de Biden em reconhecer
sua própria insuficiência a tempo que escancarou as portas
para Trump e suas infames tropas de choque, e que foi a falta de ação
política da Europa que contribuiu para piorar o conflito na Ucrânia antes da
invasão russa. Não é necessário apenas avançar em direção à constituição de uma
Europa unida como sujeito político autêntico, mas é igualmente necessária uma
profunda renovação da cultura democrática a fim de combater o diagnóstico
populista da democracia como um ferro velho do passado.
Essa é
a grande tarefa que cabe não apenas às forças liberais e de centro-esquerda
italianas, mas a todo o Ocidente. Manter-se fiel ao evento ideal da
democracia significa mostrar a sua força e não seu declínio resignado. Para
fazer isso, no entanto, não basta relembrar os ideais fundadores
da Europa como uma superação dos egoísmos nacionalistas, mas sim
escrever hoje um novo manifesto político, adequado aos nossos tempos e ao
futuro de nossos filhos, para fazer com que esses ideais fundadores vivam no
presente e não apenas em sua lembrança nostálgica.
Nesse
sentido, o destino futuro da Ucrânia é, para citar apenas um exemplo,
uma questão que não pode ficar sem consequências para
o Ocidente democrático. Não está em jogo apenas a redefinição
territorial das fronteiras, mas a essência da democracia. O direito de
defender a autodeterminação de um povo não pode ser subjugado à razão cínica do
mais forte. Se os impulsos soberanistas colocarem suas mãos sobre
a Ucrânia, eles as colocarão sobre a democracia, mostrando mais uma vez
que seu tempo fatalmente se esgotou.
¨ A democracia, uma
prática politica em declínio. Por Marcos Roitman Rosenmann
“Lentamente,
impõe-se uma ordem de dominação dirigida pelas plutocracias em
consonância com o poder de um cibercapitalismo que aumenta o seu
controle graças à guerra neocortical, cuja capacidade
para anular a consciência e a reflexão aumenta o grau de submissão e o
conformismo social”, escreve Marcos Roitman
Rosenmann,
sociólogo, analista político e ensaísta chileno-espanhol.
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Eis o artigo.
Não
vivemos na democracia, se por isso entendemos uma conduta fundada na busca
do bem comum, da justiça social e
da igualdade. Existe uma contradição entre um projeto democrático e a
manutenção de relações sociais de exploração. E não só no que diz respeito à
exploração de seres humanos por seres humanos, mas também à exercida contra a
natureza. Refere-se à degradação do nicho ecológico, à especulação alimentar, à
apropriação dos recursos hídricos, às epidemias de fome produzidas por
bloqueios, ao patrocínio de guerras, à privatização da pesquisa científica ou
limitando o acesso a medicamentos e vacinas às maiorias sociais.
Todos
os fatos enunciados, além de questionarem a existência de uma ordem
internacional enraizada na paz, evidenciam uma deflação democrática. Neste
contexto em que prevalece o capitalismo, devemos somar as instituições que há
séculos sobrevivem, como o patriarcado, o racismo, as
desigualdades econômicas, o poder das castas, a nobreza, os proprietários de
terras e os mandachuvas.
Sem
pensar em uma visão idílica da democracia, a realidade social nos leva a
acreditar que o futuro da democracia é incerto, quando não contrário aos seus
princípios. A origem da democracia, um modo de vida e de governo, encontra-se
nas lutas sociais pelo reconhecimento dos direitos dos cidadãos em seu sentido
mais amplo. A democracia busca, ao mesmo tempo, equilibrar o poder exercido
pelas plutocracias e combater as desigualdades sociais e econômicas
por meio da participação política na tomada de decisões. Em outras palavras,
que os cidadãos decidam por plebiscito sobre a guerra e a paz, promulguem as
leis, controlem os poderes de facto, possam ser eleitos, além de
evitar os abusos de poder daqueles que gozam da representação popular.
A democracia é
uma proposta de organização social e política. Supõe um programa para a vida em
comum, um projeto no qual as prioridades sejam determinadas pelas necessidades
coletivas que fazem com que a pessoa, um ser humano, tenha as necessidades
básicas atendidas e uma qualidade de vida digna. Tudo isto envolve pensar em um
nós coletivo.
Na democracia,
cada decisão tem efeitos sobre o tecido social. Construir hospitais, escolas,
proteger as crianças, punir a violência de gênero, promover o investimento
público em obras sociais e infraestruturas faz parte da democracia. Seu
contrário é aprovar uma redução na tributação para as grandes fortunas,
elaborar leis antissociais que favoreçam a demissão livre, leis trabalhistas
leoninas, limites ao gasto social, criminalizar o protesto social, entregar as
riquezas naturais a empresas privadas, vender o patrimônio público aos capitais
de risco, reduzir a maioridade penal e favorecer a desregulamentação do capital
financeiro e bancário.
As
medidas antissociais e os cortes nas liberdades democráticas são cada vez mais
comuns, o que nos fala de um processo de oligarquização do poder. A
situação de saúde democrática das sociedades atuais é crítica e o diagnóstico
futuro não é encorajador. Lentamente, impõe-se uma ordem de dominação dirigida
pelas plutocracias em consonância com o poder de
um cibercapitalismo que aumenta o seu controle graças à guerra
neocortical, cuja capacidade para anular a consciência e a reflexão aumenta o
grau de submissão e o conformismo social.
O risco
de involução política no planeta é uma realidade a curto prazo. O triunfo
das direitas antidemocráticas e o ressurgimento de propostas
castradoras dos direitos sociais são um indício a mais do renascimento do
fascismo societal. Não se trata do triunfo de uma crítica aos chamados
“excessos da democracia” levantados por Hayek, mas uma rejeição à
democracia como forma de governo e de vida em comum.
A democracia está
sendo atacada e tem aliados em setores sociais que mais deveriam lutar por ela.
Renunciar à democracia como projeto societal supõe abrir mão da ideia
de uma vida digna, carecer de um sistema de saúde, moradia, educação, ter
acesso ao lazer, a uma aposentadoria justa e simplesmente fazer três refeições
por dia. Com a desigualdade, qualquer projeto democrático é uma quimera.
Para
percebermos o quão longe estamos de viver na democracia, basta citar
o Relatório da Oxfam
de 2023,
ao apontar que apenas no biênio pós-pandemia (2020-2022), 1% da
população mundial monopolizou dois terços da nova riqueza gerada em escala
global, o dobro dos 99% restantes da humanidade. É cada vez maior a população mundial
arrastada para a exclusão social, cuja existência se situa na fronteira do
subumano.
Sem
medo de errarmos, uma economia e sociedade de mercado construídas sobre a
competitividade e a meritocracia destroem qualquer opção de forjar uma ordem
democrática. O capitalismo, em seus 500 anos de
história, não foi um exemplo em forjar um poder democrático. Contudo, foi em
suas entranhas que as lutas democráticas ganharam protagonismo, constituindo
barreiras à sua ação predatória.
No
entanto, a luta é desigual. Multiplica-se a existência de partidos políticos
cujos programas fomentam o ódio, o racismo, a xenofobia, o negacionismo e a
necropolítica, ganham adeptos, e o mais preocupante, suas declarações são
seguidas por milhões de pessoas. Personagens como Donald Trump, Jair Bolsonaro, Javier Milei, Nayib Bukele, Giorgia Meloni governam ou
governaram. São tempos difíceis.
O
sucesso das políticas que levantam muros, a desumanização dos imigrantes, o uso
da mão dura e o endurecimento das condenações são testemunho da insatisfação
democrática. Mentir, enganar, sentir-se acima da lei, estuprar, sonegar
impostos, rir das instituições, hoje, não têm consequências políticas. A
sociedade não penaliza os comportamentos corruptos. Em conclusão: sem
consciência democrática não há poder democrático.
Fonte: La Repubblica/La Jornada
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