Gigantes do agro deixam povo indígena
sem peixes para alimentação e rituais
“Tinha
muito piau, trairão, pacu, matrinxã, jaú, pintado, cachara, curimba… Mas depois
que construíram as PCHs, sumiu tudo”, relata Lalokwarise Detalikwaene,
liderança do povo Enawene Nawe, cujo território está localizado no noroeste de
Mato Grosso, zona de transição entre o Cerrado e a Floresta Amazônica. A
diminuição dos peixes coincide com a instalação, a partir de 2007, do chamado
Complexo Energético do Juruena, composto, até então, por oito Pequenas Centrais
Hidrelétricas (PCHs) pertencentes a duas gigantes do agronegócio: a Bom Futuro
e a Amaggi. A dieta enawene é composta
basicamente por peixes, tubérculos, milho e mel. Além da importância
nutricional por ser a principal fonte de proteínas, o peixe é essencial para a
reprodução cultural do povo, afinal é um dos elementos centrais para a
realização de rituais sagrados que, na cultura dos Enawene Nawe, mantêm a
harmonia com o mundo espiritual, evitando que sejam acometidos por doenças,
tragédias, colheitas, pescas fracassadas e males em geral. “Os espíritos ficam
bravos se a gente não faz ritual. Crianças vão morrer, o chefe vai morrer,
mulheres também vão morrer. Antigamente a gente pegava muitos peixes para os
espíritos, mas agora está ruim. A gente vai pescar e não pega nada e também não
conseguimos pegar mel. Como vamos tratar os espíritos e nossa família?”,
questiona Lalokwarise Detalikwaenê.
- A escassez de um
alimento físico e espiritual
Por
meio de um ciclo anual de rituais, os Enawene Nawe estabelecem uma relação de
troca constante com entidades subterrâneas (Yakairity) e celestes (Enore
Nawe). Eles organizam o trabalho de forma a produzir alimentos para o
consumo cotidiano e para serem oferecidos durante rituais que duram meses.
“O Yakairity entra na gente, come, bebe e canta. Depois volta
para baixo da terra e dorme”, explica uma liderança no documentário O Banquete dos Espíritos, de 1995, sobre o
ritual Yãokwa, que dura cerca de sete meses e é registrado como
patrimônio cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan) e como patrimônio cultural da humanidade pela
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Porém, desde a construção das hidrelétricas, a população de peixes diminuiu
gradativamente e hoje os Enawene Nawe são obrigados a comprar o pescado de
tanques e represas para garantir os rituais e, consequentemente, o tenso
equilíbrio cosmológico que rege suas vidas.
“Eles
convivem com dois tipos de seres superiores. Os Enore Nawe habitam
o alto e são potencialmente terapêuticos, inclusive são a eles que os pajés se
associam para curar doenças. E os Yakairity são os donos dos
recursos naturais, dos acidentes geográficos, mas são extremamente patogênicos,
vorazes e exigentes. É nessa estrutura cosmológica que entram os peixes, que
são a principal oferenda para esses dois grupos. Os rituais são os principais
instrumentos para a manutenção dessa harmonia, nos quais são ofertadas danças,
músicas e muita comida. A existência Enawene está ligada, quase que totalmente,
a essa tentativa de manter a harmonia com esses seres”, explica Fausto
Campolli, indigenista do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que trabalha
com o povo indígena desde o início da década de 1990.
- Uma compensação
que não compensa
Os
Enawene Nawe recorrem, há alguns anos, à compra de peixes de piscicultura,
afinal a quantidade de peixes nos rios do território diminui drasticamente
desde a instalação do complexo. Conforme explicado pelos indígenas, as
entidades já ficam descontentes com o fato de as oferendas não serem mais
pescadas nos rios da região. Não bastasse o aspecto espiritual, o alto custo do
peixe é incompatível com a renda local, colocando em risco a saúde financeira
da comunidade. Nesse sentido, eles recebem uma compensação financeira da Amaggi
e da Bom Futuro em razão dos impactos gerados pelas PCHs, porém esse recurso
tem sido insuficiente até mesmo para garantir a quantidade de peixe necessária
para a realização dos rituais. Em outras palavras, a compensação financeira
paga pelas empresas nem sequer garante a compra do alimento, cuja escassez lhes
é de responsabilidade direta. Por isso, os Enawene Nawe reivindicam o reajuste
dessa compensação. Atualmente, o repasse é de aproximadamente R$ 36 mil por
mês, o que se mostra insuficiente para uma população de 1,4 mil pessoas, que
precisa de 78 toneladas de peixe anualmente (6,5 toneladas por mês) para
cumprir o calendário de rituais, conforme dados do Monitoramento da Atividade Pesqueira
na Terra Indígena Enawenê-Nawê. “Não fomos nós que pedimos para construir
as usinas, foi a empresa que pediu para poder construir. A empresa está
ganhando com a usina que nós deixamos construir, então a gente também quer
ganhar uma compensação permanente para nossos rituais”, explica Holikiari
Enawene. “Estamos há 12 anos com esse acordo, mas agora estamos pedindo um
reajuste, porque não é mais suficiente”, complementa Holikiali Enawene. Por
força de uma determinação imposta pelo Ministério Público Federal (MPF), o
acordo mencionado – um Termo de Audiência e Conciliação (TAC) – foi firmado em
2012. Considerando os possíveis impactos gerados pela instalação do complexo
hidrelétrico, foi estabelecido um montante de R$ 600 mil para cada PCH,
totalizando R$ 4,8 milhões, valor a ser pago em parcelas mensais durante 20
anos, ou seja, até outubro de 2032. A quantia inicial era de R$ 20 mil,
reajustada ao longo dos anos conforme as tendências inflacionárias. Em
projeções atualizadas, seriam necessários R$ 1,95 milhão por ano para garantir
as 78 toneladas de peixe, entretanto a compensação atualmente é de apenas R$
432 mil. Portanto, o valor pago pelas bilionárias do agronegócio supre apenas
22% da demanda anual dos rituais. “Se você dividir esse valor por indivíduo,
vai dar menos de um real por dia”, contabiliza Fausto Campolli.
Segundo
levantamento do antropólogo Márcio Silva, a população Enawene Nawe costuma
dobrar de tamanho num intervalo de 10 a 15 anos. A partir desse prognóstico,
estima-se que, por volta de 2040, a população terá passado da marca de quatro
mil habitantes, e o custo com o peixe, considerando o valor vigente, será de
quase R$ 9 milhões por ano. Diante desse contexto, o povo tem se organizado
para cobrar das empresas reajustes no acordo. Eles exigem que a compensação
seja permanente (e não só durante 20 anos) e que o valor seja condizente com as
demandas dos rituais e com os impactos gerados. “Nós queremos um reajuste de R$
400 mil por mês para a manutenção dos rituais e da alimentação. Nós alimentamos
a comunidade juntamente dos espíritos. O ritual só faz com peixe, não podemos
fazer sem. Antes das usinas o peixe era grande, mas quando chegaram as usinas o
peixe diminuiu. Agora são pequenos, não crescem mais, ficam magrinhos. Assim
não dá pra alimentar e é ruim para o ritual, porque os espíritos querem peixes
grandes”, detalha Holikare Enawene.
- A dialética da
bala
Há anos
os Enawene Nawe tentam rediscutir os termos desse acordo com as empresas, que,
por sua vez, consideram que não há mais o que ser discutido e não se mostram
dispostos a nenhum tipo de concessão, tanto é que as tentativas de diálogo têm
sido sistematicamente ignoradas pelos empresários. Assim, inconformados com o
descaso com que têm sido tratados, os indígenas organizaram uma manifestação em
junho de 2023. A ideia era acampar na entrada de duas PCHs até serem atendidos
pelos responsáveis. Na ocasião, homens, mulheres, idosos e crianças se dirigiam
às portas das PCHs quando foram recebidos com tiros de
bala de borracha pela equipe de seguranças. Vários indígenas foram feridos. Além da
violência física e ofensas racistas, os seguranças queimaram veículos,
documentos e até alimentos. “A gente foi fazer manifestação porque já mandamos
documentos para a empresa muitas vezes com o nosso pedido, mas não adianta,
nunca chega resposta. A gente não levou flecha, não levou borduna, nada, não
levamos nada. Eles atiraram e a gente não revidou. A gente não quer briga. Nós
queremos resolver o problema para manter a cultura”, desabafou Lalokwarise
Detalikwaene Enawene. Na contramão dos fatos descritos em depoimentos, vídeos e
no relatório oficial da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), as
empresas fizeram Boletim de Ocorrência argumentando que foram coagidas e que
houve tentativa de invasão. Embora não haja qualquer registro de violência ou
revide por parte dos indígenas, a Bom Futuro classificou a manifestação como
ameaça e coação. Em nota, frisou que: “não concorda em ser coagida ou ameaçada
a pagar vultuosos valores para que, em contrapartida, não ocorram invasões em
suas propriedades” e acrescentou que rechaça “qualquer hipótese de pagamentos
infundados e de cobranças mediante coação”. Diante do ocorrido, a Defensoria
Pública da União (DPU) ajuizou Ação Civil Pública (ACP) contra as empresas,
requerendo o pagamento de indenização no valor total de R$ 20 milhões, sendo R$
10 milhões a título de danos morais destinados diretamente aos Enawene Nawe, e
mais R$ 10 milhões por danos morais coletivos destinados à Funai e a Secretaria
Especial de Saúde Indígena (Sesai), com destinação específica para políticas
públicas em benefício do povo.
- Não há margens
para um bom futuro
A
holding André Amaggi Participações é um conglomerado controlado por cinco
famílias herdeiras de André Maggi. É a maior empresa brasileira de grãos e
fibras e possui um faturamento superior ao do próprio estado de Mato Grosso,
onde está sediada. Em 2022, faturou R$ 47,37 bilhões, um aumento de 24% em
relação ao ano anterior, enquanto o estado arrecadou R$ 40,89 bilhões. Em 2024,
a Amaggi produziu 1,4 milhão de toneladas de soja, algodão e milho em 400 mil
hectares de lavouras. A empresa também comercializou 23 milhões de toneladas de
produtores brasileiros, argentinos, canadenses, estadunidenses e paraguaios. E
ainda atua em administração de portos, embarcações, fábricas, armazéns, geração
e venda de energia. “Desde que a Amaggi nasceu, a cada oito anos, dobramos o
tamanho da empresa”, declarou Judiney Carvalho de Souza, presidente-executivo
da Amaggi, à reportagem da Forbes. Já a Bom Futuro,
liderada por Eraí Maggi Scheffer, também membro do mesmo grupo familiar, é dona
de mais de 30 fazendas. Produz, por safra, cerca de 1,3 milhão de toneladas de
soja e 300 mil toneladas de pluma de algodão em aproximadamente 630 mil hectares
de lavouras. Recentemente, a Bom Futuro tem apostado na produção
de peixes,
justamente o que tem faltado aos Enawene Nawe, inclusive a empresa inaugurou no Mato Grosso um
frigorífico específico para pescados, conveniente após a proibição da pesca
artesanal no estado.
- Pequenas
hidrelétricas, grandes negócios
PCHs
são usinas de pequeno porte capazes de produzir até 30 mil megawatts. De acordo
com especialistas do setor, possuem valor médio de R$ 300 milhões depois de
construídas e geram receitas de aproximadamente R$ 20 milhões por ano, sendo
que 20% desse montante é destinado a despesas com operação, manutenção e
financiamento. Em reportagem publicada no ano de 2008, o jornal Valor
Econômico fez um levantamento do potencial de cinco PCHs do complexo
(ainda não eram oito) e estimou um ganho de R$ 110 milhões por ano. Incluindo
as outras três PCHs na lógica dessa projeção, estima-se um lucro de R$ 176
milhões (sem levar em conta os reajustes inflacionários do período, que devem
elevar consideravelmente esse valor). Descontados os 20% destinados à operação,
manutenção e financiamento, o lucro anual das empresas deve girar em torno de
R$ 140,8 milhões, portanto o reajuste solicitado pelos indígenas de R$ 400 mil
por mês (R$ 4,8 milhões por ano) representaria apenas 3,4% do montante líquido
arrecadado pelas empresas. Considerando a arrecadação das PCHs, o
reajuste solicitado pelos indígenas é ínfimo, mas ainda assim as empresas têm
se mostrado absolutamente inflexíveis. “Os empreendedores respeitam o
entendimento do povo indígena Enawenê-nawê, todavia tem convicção que essa
reivindicação é ilegítima”, diz trecho de uma nota emitida pela Bom Futuro.
Quando questionadas sobre a arrecadação das PCHs, as empresas preferem não
informar. “Além de não contribuírem para o deslinde da situação, tais
informações possuem obrigações legais que demandam e conferem a elas a
confidencialidade”, alega a Bom Futuro. A Amaggi também não respondeu a
pergunta, apenas pontuou que suas empresas “sempre cumpriram com todas as suas
obrigações legais junto aos indígenas” e acrescentou que vem “apoiando de forma
voluntária, além de suas obrigações legais, a cultura e rituais da comunidade
indígena”.
Além
das oito PCHs em operação, ainda estão previstas outras três hidrelétricas para
fechar o Complexo Energético do Juruena, totalizando em onze empreendimentos
nos arredores da terra indígena. O conjunto é formado por 9 PCHs (Divisa, Ilha
Comprida, Segredo, Rondon, Parecis, Sapezal, Cidezal, Telegráfica e Jesuíta) e
2 UHEs (Juruena e Mato Grosso). Quase todas as PCHs em operação estão
localizadas em um trecho de aproximadamente 70 quilômetros do rio Juruena, com
exceção da PCH Divisa, que opera em um de seus afluentes, o rio Formiga. Dos
três projetos ainda previstos, dois são Usinas Hidrelétricas (UHEs Juruena e
Cachoeirão), empreendimentos bem maiores do que as PCHs, uma vez que são
capazes de operar com potência acima de 30 MW. A UHE Juruena está em processo
de licenciamento e a UHE Cachoeirão está prestes a entrar nesta mesma etapa. O
último nome da lista das que estão em planejamento é a PCH Jesuíta, que também
está em processo de licenciamento. “Falta uma PCH e duas UHEs pra matar o
Complexo Juruena. E é literalmente matar mesmo, porque vão matar o rio”, avalia
Fausto Campolli.
- O rio não está
para peixe
Há
alguns anos, os Enawene Nawe não têm peixes suficientes para os rituais e lutam
para conseguir reajustar o valor da compensação. Porém, quando os
empreendimentos ainda não tinham saído do papel, os responsáveis garantiram que
não haveria nenhum prejuízo aos indígenas. De acordo com estudos encomendados à
época pelas empresas, as terras indígenas não sofreriam impactos ambientais.
Entretanto, em 2006, o MPF sustentou que a Secretaria Estadual de Meio Ambiente
(Sema-MT), durante os processos de licenciamento das obras, teria violado
preceitos ambientais e constitucionais. Lílian Ferreira dos Santos, então
superintendente de infraestrutura, mineração, indústrias e serviços da Sema-MT,
afirmou que a pasta seguiu todos os procedimentos legais do licenciamento e
assegurou que os povos indígenas não seriam afetados. “Não haverá impactos
diretos às terras indígenas. A PCH mais próxima fica a 40 quilômetros”. No ano
de 2012, em audiência na Justiça Federal, Guilherme Moura Müller, coordenador
de Gestão Ambiental dos Empreendimentos e responsável por todos os estudos de
impacto causado pelas usinas, ratificou que as consequências seriam
praticamente imperceptíveis: “O impacto é de baixa magnitude e não vai
interferir diretamente na vida dos índios”.
Curiosamente,
os resultados dos estudos encomendados pelas empresas foram na contramão
do relatório elaborado pelo biólogo da
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Francisco de Arruda Machado,
especialista em peixes e doutor em ecologia. Em 2006, antes da implantação das
usinas, Francisco foi contratado para fazer um levantamento de possíveis
impactos causados pelas empresas e apontou que os barramentos impediriam o
processo migratório de peixes em períodos reprodutivos, causando impactos
irreversíveis às suas populações. Todavia, sua análise foi ignorada.
- Peixes grandes
nos bastidores
Importantes
nomes da política mato-grossense são responsáveis pela atual situação vivida
pelo povo Enawene Nawe. Essa trama, que teve início há mais de duas décadas,
está detalhada no Mapeamento dos financiamentos a
empreendimentos hidrelétricos na Bacia do rio Juruena-MT, relatório técnico
publicado em 2022 pela pesquisadora Vanessa Parreira Perin. Tudo começou em
2001, quando Blairo Maggi, então agropecuarista e suplente do senador Jonas
Pinheiro, criou a empresa Maggi Energia e deu início a dois inventários de
projetos hidrelétricos na região. Após a conclusão dos estudos, foram
identificados doze pontos em potencial, dos quais onze se mostraram
economicamente viáveis para a exploração. Então, em parceria com as empresas
Linear Participações e Incorporações e MCA Energia e Barragem, a Maggi Energia
formou o Consórcio Juruena. Para conseguir tirar uma PCH do papel é preciso que
ela seja licenciada, o que significa passar por uma série de etapas, pois se
trata de uma concessão pública outorgada pela Agência Nacional de Energia
Elétrica (Aneel) e com autorização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Pelos trâmites normais, o processo de
aprovação chega a levar dois anos. Mas o consórcio empresarial obteve a Licença
Prévia das PCHs em apenas três meses. E aproximadamente um mês mais tarde já
havia adquirido também a Licença de Instalação. Um dos principais interessados,
Blairo Maggi, era governador de Mato Grosso nesse mesmo período.
Em
2005, as licenças do Complexo Juruena foram colocadas à venda pelo Global Bank.
A companhia Juruena Participações e Investimentos S.A. – holding criada no
mesmo ano pela empresa MCA – adquiriu o controle de cinco PCHs do complexo
(Cidezal, Sapezal, Telegráfica, Parecis e Rondon). A MCA pertence à família do
deputado Carlos Avallone (PSDB). Já os demais projetos (Jesuíta, Ilha Comprida,
Segredo e Divisa) continuaram sob responsabilidade das empresas Maggi Energia e
Linear Participações e Investimentos, esta última de propriedade do empresário
José Geraldo Nonino. Em 2014, Carlos Avallone e seu irmão, Marcelo Avallone,
proprietários da MCA, foram indiciados na Operação Lava Jato. A Juruena S.A.
foi alvo de busca e apreensão por parte da Polícia Federal. O grupo já
respondia a uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho
por explorar 78 trabalhadores em
condições de trabalho que se assemelham à escravidão no canteiro de
obras das PCHs Ilha Comprida e Segredo, pelas quais foram condenados, em 2018,
ao pagamento de R$ 2,2 milhões por danos morais coletivos. Após todo esse
imbróglio, em 2019, a razão social da companhia foi alterada para Hydria
Participações e Investimentos S.A. Em seguida, foi adquirida por outro gigante
do agronegócio, o Grupo Bom Futuro (Bom Futuro Energia S.A, braço energético da
holding homônima), cujos proprietários são primos de Blairo, no caso Eraí
Maggi, Elusmar Maggi e Fernando Maggi Sheffer. Assim, cinco PCHs do Projeto
Juruena saíram do controle de grupos empresariais e políticos ligados ao setor
da construção civil e voltaram para as mãos do agronegócio. Levando em conta
que as outras três PCHs são de propriedade da Amaggi, pode-se afirmar que a
mesma família toca todo o Complexo Juruena.
- Lucros privados,
investimentos públicos
E por
que esse grupo empresarial e familiar bilionário com tentáculos espalhados em
diferentes setores produtivos e grande influência política foi se enveredar no
ramo energético? Na monografia Alta Tensão na Floresta: Os Enawenê
Nawê e o Complexo Hidrelétrico Juruena, apresentada em 2010, a antropóloga
Juliana de Almeida sustenta que a energia gerada visa reduzir os custos de
produção das empresas da família Maggi e o excedente atende parte da demanda
energética regional, gerando lucros e dividendos aos acionistas. E de onde
vieram os recursos para pôr de pé um complexo hidrelétrico milionário?
Considerando as receitas e os bens do grupo empresarial, tende-se a imaginar
que são recursos próprios. Todavia, em reportagem publicada no site De Olho
nos Ruralistas,
em fevereiro de 2019, o jornalista Lázaro Thor Borges trouxe detalhes da
delação premiada do ex-governador Silval Barbosa, apadrinhado e sucessor de
Blairo, na qual admite que as empresas do Consórcio Juruena conseguiram
viabilizar boa parte das construções graças a créditos tributários – pagos de
forma irregular – na ordem de R$ 75 milhões.
Segundo
o ex-governador, Carlos Avallone e José Geraldo Nonino (proprietários,
respectivamente, da MCA Energia e Barragem e Linear Participações e
Investimentos, empresas que compunham o Consórcio Juruena com a Maggi Energia),
o procuraram em 2010 para cobrar o saldo. “O valor foi pago meses depois,
com uma condição: 50% do dinheiro retornaria ao governo para que Barbosa
quitasse outros débitos ilegais adquiridos na gestão Maggi”, diz trecho da
reportagem.
Além
dos R$ 75 milhões oriundos, supostamente, do pagamento ilegal de créditos
tributários, os empreendimentos também receberam R$ 360 milhões do Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a construção de um
parque gerador de energia elétrica. E as empresas ainda conseguiram acessar
financiamentos do BNDES na modalidade Project Finance, que totalizaram R$ 84,4
milhões. Como as PCHs do Consórcio Juruena fizeram parte do conjunto de
iniciativas apoiadas pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC-1), foram
consideradas como projetos prioritários para o governo federal à época, daí o
motivo de conseguirem acessar R$ 444,4 milhões somente via BNDES. A influência
política de Blairo Maggi também pode ter contribuído. “A passagem de Blairo
Maggi pelo senado federal e pelo governo de Mato Grosso são imprescindíveis
para a consolidação de seus investimentos empresariais. Maggi, já ocupando o
posto de governador de Mato Grosso, insere duas UHEs do Complexo Juruena no
PAC, obtém apoio do STF para liberar as obras embargadas por uma liminar do MPF
em 2008 e consegue também agilizar o licenciamento das obras através da
SEMA-MT”, indica Juliana de Almeida em sua monografia.
- Na bacia das
almas, povos em luta
Quando
se passa a limpo todo esse histórico, desde a implementação do complexo de
hidrelétricas até o atual impasse sobre o reajuste da compensação, percebe-se
como o modo de vida Enawene Nawe tem sido significativamente afetado por
decisões tomadas por pessoas e empresas que desconsideram a presença e ocupação
indígena desde os tempos imemoriais na bacia do rio Juruena. Aliás, trata-se da
mais extensa bacia hidrográfica do Mato Grosso (19 milhões de hectares), que
concentra 23 territórios de mais de uma dezena de povos indígenas. A bacia do Juruena é alvo de 179
projetos de usinas hidrelétricas. Entre 2019 e 2023, houve o acréscimo de 51
empreendimentos, o que representa um aumento de 39,8%, uma média de mais de dez
novos projetos por ano. Os impactos causados por esses empreendimentos ameaçam
a soberania alimentar e a reprodução cultural dos povos da região. Importante
lembrar que nem todos saíram do papel, então ainda há tempo para impedir o
avanço de algumas dessas hidrelétricas, como ocorreu com a UHE Castanheira. Dos 179 projetos,
20% estão em operação, 10% em construção e os outros 70% se encontram em fase
de planejamento. Os dados são do Boletim de Monitoramento de Pressões
e Ameaças às Terras Indígenas na Bacia do rio Juruena, produzido pela
Operação Amazônia Nativa (OPAN).
A
implantação de tantas hidrelétricas contribui para intensificar a ocupação não
indígena no entorno dos territórios, acarretando o aumento significativo de
outras pressões e ameaças. A fauna, até então abundante, tem diminuído
expressivamente diante do aumento constante do desmatamento. Os agrotóxicos
utilizados em fazendas têm poluído rios e nascentes, afetando a reprodução de
espécies. Houve também a modificação da paisagem com a interrupção de cursos
d’água, alterando a dinâmica e o equilíbrio do ecossistema aquático da bacia do
Juruena. É neste cenário que os Enawene Nawe, convencidos à época de que não
seriam prejudicados, agora lutam pelo reajuste de uma compensação
insignificante comparada ao lucro de empresas que os deixaram sem peixe
suficiente para alimentação e rituais. A instalação de um complexo de, por
enquanto, oito PCHs provocou a perda de áreas de desova e bloqueou rotas
migratórias das principais espécies de peixes consumidos pelos Enawene Nawe.
Além do déficit nutricional, uma vez que se trata da principal fonte proteica
do povo, há de se destacar desarranjos de ordem espiritual, afinal a escassez
gera conflitos com entidades que orientam seu mundo cosmológico, portanto os
prejuízos são ambientais, nutricionais e sócio-culturais. “Brancos querem fazer
onze usinas no nosso rio, mas aí acabaram os peixes e eles não querem pagar a
compensação para a gente manter os rituais. Ritual não faz acontecer uma coisa,
ritual faz muitas coisas pra nós. A gente busca os meios naturais na floresta e
no rio. A gente pega os peixes pra oferecer durante os rituais. Enawene Nawe
são conhecidos pela espiritualidade. Muita coisa mudou, antes a gente usava
canoa, depois barcos e agora estamos usando veículos para buscar os peixes, mas
os rituais não mudam”, concluiu Wayali Wesley Enawenê.
Fonte: Por Tulio Paniago, no Le Monde

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