Juan Torres López: E se o caso de Trump não
for uma simples loucura pessoal?
A opinião que mais aparece quando ouço falar
de Donald Trump, mesmo de acadêmicos ou pessoas bem informadas, é que ele é
louco.
É verdade que o comportamento dele, tão
diferente do daqueles a quem nos acostumamos a ver como líderes mundiais, nos
leva a pensar assim.
Ele é errático, bizarro, rude, sem instrução,
um mentiroso compulsivo, sem vergonha e grosseiro, não tem a menor empatia com
os fracos e se orgulha de governar o país mais poderoso do mundo como se fosse
sua agência imobiliária.
Ele admite que quer ser um ditador, ignora as
decisões judiciais contra ele, insulta seus adversários sem compaixão ou
restrição e os ameaça, e até despreza e humilha seus próprios parceiros.
Suas ideias são extremistas, faz alarde de
sua religiosidade e seus valores morais, quando seu relacionamento com
prostitutas e prostíbulos de todos os tipos é conhecido.
Sua vida e trajetória comercial é a de um
personagem sem princípios ou limites, obcecado em conquistar quem está à sua
frente. Inúmeras biografias e documentários já expuseram isso, e basta vê-lo em
ação para ver seu jeito de ser, e como ele age e trata outras pessoas.
No entanto, temo que seja errado pensar que o
que ele está fazendo e o que fará mais tarde é simplesmente expressão de
loucura, de seu comportamento pessoal aberrante e reacionário.
Pode ser que Trump seja de fato um louco, um
bilionário que pode dar-se ao luxo de qualquer capricho e se gabar como um
pavão do poder que tem, sendo, como é, tão ignorante.
Eu me inclino a pensar que o que Donald Trump
está fazendo é muito mais do que um comportamento pessoal, e a melhor prova
disso é que as ações que ele realiza vêm de longe, antes mesmo, inclusive, de
que ele aspirasse a ser presidente.
“Em meus dois últimos livros, Más
difícil todavia (2023) e Para que haya futuro (2024),
escrevi em detalhes sobre o que acho que está acontecendo e por que Trump está
fazendo o que está fazendo. Então, vou resumir aqui muito
brevemente o que penso.”
Primeiramente, tendo a pensar que Trump é
apenas mais uma peça de um processo que vem de mais longe com o objetivo de
desmantelar democracias e sistemas de legitimação que, desde os anos oitenta do
século passado, geraram a aceitação pelas classes sociais empobrecidas dos
processos que as haviam despojado.
A razão ou necessidade de fazê-lo é simples:
o nível de concentração de riqueza e desigualdade alcançado é tão
extraordinário que já é incompatível com a democracia representativa e o debate
social transparente.
Alguém tão insuspeito de esquerdismo como
Martin Wolf explicou e documentou isso perfeitamente em seu livro A
Crise do Capitalismo Democrático (Deusto, 2023).
Em segundo lugar, considero que a nova
presidência de Trump é mais um momento de um processo de desglobalização e
protecionismo que se arrasta há muito tempo, embora agora esteja certamente
decorrendo de uma forma mais exagerada e radical.
Contabilizado em seu sentido mais amplo, em
Alerta de Comércio Global foram registradas quase 59.000 medidas restritivas ao
comércio em todo o mundo desde 2009.
Como acabei de lembrar em um artigo recente,
Obama já foi descrito por The Wall Street Journal como “um
presidente protecionista”.
Biden não apenas não alterou as medidas que
Trump havia adotado em seu primeiro mandato, senão que até as ampliou em alguns
casos e, sobretudo, com a China.
Escreveu-se sobre ele que praticava
“protecionismo cortês” e “educado” e que sua política comercial era “trumpismo
com rosto humano”, sem “tweets raivosos ou alegações absurdas, mas com tarifas
de segurança nacional”.
É verdade que Trump exacerbou a política
protecionista (resta saber até onde ela vai), mas é um erro acreditar que isso
é apenas “coisa dele”.
Creio que temos de ler bem o que Donald Trump
está fazendo agora. Quando ele alardeia pomposamente ao mundo que impõe tarifas
mesmo a uma ilha onde vivem apenas pinguins ou a países com os quais os Estados
Unidos quase não têm comércio, ele não está fazendo isso porque está
implementando uma nova política comercial, mas para deixar patente a maneira
diferente pela qual esse poder com a vontade de permanecer sendo imperial vai
se dirigir ao mundo a partir de agora.
Ou melhor, ao universo, porque ele fala de
uma “tarifa universal”, termo que pode não ser acidental quando os grandes
capitais tecnológicos estão planejando se apropriar do espaço, de outras
estrelas e asteroides, para fazer negócios.
Em terceiro lugar, o que Trump está fazendo
mais claramente é exonerar o capital, na medida do possível, dos custos que as
mudanças climáticas e a desigualdade exagerada que foi gerada nas últimas
décadas inevitavelmente terão.
Suas declarações a esse respeito podem
parecer espalhafatosas, exageradas, incrivelmente negacionistas e até
desumanas, dado o desprezo com o qual fala sobre pobreza, ou as medidas que ele
tomou em questões ambientais, sanitárias e sociais.
Contudo, quanto tempo levou para as grandes
empresas suspenderem seus programas de diversidade e inclusão? Quais grandes
líderes empresariais expressaram sua oposição às medidas de Trump? Onde estão
as corporações que falavam de capitalismo responsável com rosto humano?
Como se explica que, ao longo do percurso,
todas as boas intenções e programas de investimento que eles tinham até poucos
dias atrás para combater as mudanças climáticas estejam sendo eliminados?
Como é possível ou é explicado que tenha
bastado algumas declarações e alguma ordem executiva de Trump para que essas
questões não fossem mais consideradas uma ameaça?
Por fim, também acho que o que Trump está
fazendo é muito semelhante, senão o mesmo, àquilo que outros presidentes
anteriores, e principalmente Biden, já haviam começado a fazer para lidar com o
declínio do império dos EUA, embora seja verdade que, agora, de forma
estrondosa e em meio a insultos e ameaças.
Não nos esqueçamos que foi Biden quem sabotou
o gasoduto Nord Stream, uma infraestrutura vital para um de seus grandes
aliados, cometendo um ato que, se outros o tivessem feito, teriam sido
processados como terroristas.
O que estamos começando a ver (a cada dia de
modo mais claro e aberto) é como os Estados Unidos tentam salvar seus móveis
quando o modelo que, desde os anos oitenta do século passado, vem
permitindo-lhe viver de empréstimos gratuitos perante o resto do mundo.
Seria patético e risível, se não fosse pelo
sofrimento humano que isso acarreta, ver como o governo dos Estados Unidos
trapaceia ao contabilizar os saldos externos, registrando apenas os balanços
comerciais e deixando de lado os de serviços e capitais, que é onde está hoje o
coração do comércio internacional.
Ou esquecendo que, se tem déficits comerciais
com muitos países, não é por culpa deles, como diz Trump, mas porque as
empresas estadunidenses foram a terceiros países para ganhar mais dinheiro, e
de lá exportam o que poderia ter sido computado como receita de exportação dos
EUA, se tivessem permanecido em seu país.
Ao concluir a Segunda Guerra Mundial, os
Estados Unidos detinham mais de 80% do ouro do planeta, seu PIB era equivalente
à metade do conjunto de todos os países, e controlava 60% do comércio mundial e
quase 50% dos investimentos diretos do mundo.
Foi-lhes fácil fazer que aceitassem que sua
moeda funcionasse como reserva de valor e garantir sem problemas sua total
conversibilidade em ouro.
Entretanto, com o passar do tempo, os países
que haviam sido quase totalmente destruídos na guerra começaram a ressurgir e
suas indústrias se tornaram poderosas, expandindo sua produção e exportações.
O dólar entrou em colapso e, como Yanis
Varoufakis nos lembrou em um artigo recente, Nixon deu um brutal golpe de mão
em 1971. Na minha opinião, muito mais difícil e prejudicial do que o que Trump
está dando neste momento, e que tantas pessoas estão qualificando como “o maior
golpe da história em comércio internacional”.
Nixon primeiro desvalorizou o dólar e depois
acabou com sua conversibilidade em ouro, forçando assim sua moeda a ser usada
sem a necessidade de a economia dos Estados Unidos garanti-la, não já com o
metal precioso, mas nem mesmo com produção ou investimentos.
Vocês podem imaginar se tivessem uma máquina
em casa que emitisse as notas verdes que quase todo mundo gostaria de ter em
mãos para comerciar?
Quem seria capaz de resistir a tal privilégio
e não contrair dívidas constantes, desde que pudesse imprimi-las sem quaisquer
limitações?
É por isso que se diz que os líderes dos
Estados Unidos confessam aos dos outros países: o dólar é a nossa moeda, mas é
um problema de vocês.
Apesar disso, mesmo assim não foi possível
resolver a crise estrutural que vinha ocorrendo e que constituía um perigo
existencial para o capitalismo (entre outras razões, por causa da existência
alternativa e ameaçadora da antiga União Soviética).
Os conflitos se multiplicavam, os
trabalhadores estavam ganhando cada vez mais força e os salários disparavam, a
produção em massa não era mais vendida, a inflação aumentava e os lucros caíam…
O edifício que havia permitido aos Estados
Unidos se consolidar como a grande potência que dominava o mundo estava
desmoronando.
Outro presidente republicano, Ronald Reagan,
se encarregou de tomar medidas e adotar outra que foi também muito mais brutal
e prejudicial para o resto das economias do que as atuais de Donald Trump: o
Federal Reserve disparou as taxas de juros (chegaram a 20% em 1981), afogando a
produção, multiplicando o desemprego e a dívida e provocando deliberadamente
uma crise generalizada.
Mais uma vez, para manter seu poder de outra
maneira, os Estados Unidos sacudiram a poeira de suas costas e descarregaram
sobre os outros todo o peso dos problemas que haviam sido produzidos pelo
regime em que se baseava seu poder.
Repito que as bravatas vazias de Trump, suas
declarações grosseiras, a forma tão cientificamente inconsistente de fazer
propostas e a recusa em levar em conta um único de seus potenciais efeitos
adversos, podem nos induzir a considerar que estamos diante de um histriônico
cuja loucura veio à tona.
Eu mesmo, às vezes, sou tentado a simplificar
meu pensamento e acreditar que é tão somente isso o que há diante de mim.
Ainda hoje li um brilhante comentarista da
política estadunidense, Roger Senserrich, afirmando que “as elites econômicas
dos Estados Unidos estavam atônitas diante da dimensão do desastre”.
Talvez ele tenha razão, mas tenho muita
dificuldade em acreditar que tudo o que Trump faz possa ser realizado contra o
poder econômico.
O que vejo, ao contrário, é que a seu redor
estiveram e estão as pessoas mais ricas do mundo, aquelas que com seu
financiamento extraordinariamente generoso permitiram que ele se tornasse
presidente.
As mesmas que forneceram o dinheiro para que
a Heritage Foundation desenvolvesse o Projeto de Transição Presidencial de
2025, que Trump está implementando quase ao pé da letra, que comentei há apenas
um ano em um artigo que intitulei A extrema direita veio para ficar.
Pode ser que eu esteja cometendo um erro e
vendo mais coisas do que as que existem, mas o que as análises que venho
realizando há anos me dizem é que estamos diante de um fenômeno de longo
alcance.
Em meu entender, o que está acontecendo é que
os Estados Unidos estão tentando se reassentar para enfrentar um planeta que
sabem que não poderão mais dominar como potência imperial exclusiva.
Supõe-se que o poderio crescente e imparável
da China vai moldar de novo um mundo bipolar, e os Estados Unidos vão derrubar
o tabuleiro com violência, mais uma vez, para forçar as economias e seus
governos a realocar em seu redor suas posições estratégicas, na condição mais
débil possível e em benefício dos Estados Unidos.
Uma estratégia que, na esfera econômica,
deveria concluir com um processo generalizado de realocação de capitais e
indústrias nos Estados Unidos, como única forma de garantir sua hegemonia.
Em princípio, não vejo obstáculos
intransponíveis para que isso aconteça, desde que:
a) Que a China e o bloco que inevitavelmente
se formará em torno dela sejam isolados e obrigados a iniciar uma corrida
armamentista, que venha a deteriorar sua capacidade tecnológica e industrial.
b) Enfraqueça ao extremo a Europa e faça com
que ela desapareça ainda mais do mapa como operador estratégico e concorrente
comercial.
c) Mantenha a Rússia suficientemente
afastada, e
d) Encontrem-se novas fontes de vantagem
competitiva e geoestratégica (daí, Panamá ou Groenlândia).
Dito isto, penso que é também necessário
salientar as grandes dificuldades que a tentativa de salvaguardar a supremacia
dos Estados Unidos enfrenta hoje em dia. Entre outros:
a) É um processo que precisa do médio prazo
para produzir resultados, já que no curto prazo pode vir a ser tão traumático a
ponto de produzir rupturas globais inusitadas, com danos tão graves que nem mesmo
os Estados Unidos poderão evitar.
b) Levar adiante este processo de
realinhamento pelas mãos da extrema-direita para avançar no desmantelamento das
democracias que está se alastrando pelo mundo é uma faca de dois gumes, uma
verdadeira bomba de efeito perverso e retardado com consequências muito
perigosas. Afinal, as democracias são um elemento de contenção de conflitos. O
totalitarismo, por outro lado, o cria. E a polarização generalizada pode
estourar, com consequências incalculáveis, antes de que os Estados Unidos
consigam redefinir o campo de jogo que melhor lhes convenha e fortaleçam
suficientemente sua economia.
c) A situação interna nos Estados Unidos pode
se tornar explosiva e tudo pode ocorrer por lá a qualquer momento.
d) Os Estados Unidos têm cada vez menos
possibilidade de se impor à China em termos econômicos ou tecnológicos e,
certamente, também em termos financeiros. A opção que lhe resta é a militar, e
não há muito a dizer sobre os riscos que isso acarreta quando se fala de
potências nucleares.
Em suma, se o que estamos vendo é o
comportamento de um louco que confronta a todos, é mais provável que, mais cedo
ou mais tarde, a situação seja revertida; pelo menos, o suficiente para evitar
a inevitável crise que traria consigo a guerra comercial e o colapso econômico
que ocorrerá se Trump não for detido o mais rápido possível.
Se minha hipótese estiver correta, o que
veremos será algo maior e muito pior.
Será o mesmo que já aconteceu em ocasiões
anteriores: uma tabula rasa, a geração deliberada de uma grande crise econômica
e de uma democracia que permite que tudo mude para que o que se busca preservar
não seja modificado: o domínio de uma potência em declínio acelerado, e até em
risco de extinção se não reagir, perante um bloco rival em ascensão e com força
crescente.
Tenho dúvidas, mas se tivesse que apostar eu
o faria por esta segunda hipótese.
Tentarei escrever sobre como poderíamos nos
comportar diante de tudo isso, especialmente na Europa, nos próximos dias.
Fonte: Rebelion/Viomundo

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