A saúde mental virou um indicador silencioso
de injustiça social
Mark Fisher foi um pensador britânico que não
teve medo de encarar o mal-estar contemporâneo sem anestesia. Em 2009, pouco
depois da crise financeira global, ele escreveu Realismo Capitalista, quando o
discurso dominante já nos dizia que o capitalismo era inevitável. O subtítulo
do livro é revelador: “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do
capitalismo”. Retirado do seu diálogo crítico com Frederic Jameson.
Fisher não ficou nos grandes temas da
economia ou da geopolítica. Ele foi direto ao que dói por dentro, o cotidiano
que nos consome, a tristeza que vai se instalando até parecer normal. No
capítulo 5, ele acerta em cheio: o sofrimento mental que nos atravessa não é
defeito biológico nem fraqueza moral. É consequência direta da forma como
estamos sendo forçados a viver.
No Brasil, isso fica evidente. Quando a
ansiedade se torna rotina, quando a exaustão é tratada como falta de
disciplina, quando o sono não vem e a culpa não vai embora, é o sistema e a
imposição que estão falando. Não é a química do seu cérebro, ao contrário do
que diz o discurso pronto da psiquiatria tecnicista. É a maneira como a vida
foi estruturada para sugar tudo o que você tem. A saúde mental virou um
indicador silencioso de injustiça social. E Fisher nos ajuda a enxergar isso.
Veja o caso das redes de supermercado que
contratam jovens sob o rótulo de “experiências de aprendizagem”, oferecendo
salários irrisórios, metas impossíveis, vigilância constante. E ainda exigem
sorrisos. Ou aquelas empresas que vendem “ambiente descontraído”, mesa de
pingue-pongue e “vale-terapia”, enquanto exploram cada segundo do seu tempo
emocional.
É o que Fisher chama de “empresário de si
mesmo”: esse sujeito transformado em gestor da própria miséria, culpado por não
dar conta de uma demanda que nunca acaba. Nesse cenário, o burnout não é
exceção. É regra, disfarçada por palavras suaves.
E o servidor público? Demonizado nos
discursos oficiais, sobrecarregado na prática. É a professora com três salas e
nenhum tempo de planejamento. O agente de saúde que atende trinta famílias por
dia e ainda precisa bater meta. O técnico administrativo que segura sozinho um
setor inteiro. Nos chamam de encostados, mas esperam que a gente funcione como
engrenagem silenciosa. E quando o corpo trava, quando a cabeça falha, dizem que
é frescura. O adoecimento psíquico entre os servidores não é fraqueza. É sintoma
da violência institucionalizada que Fisher denuncia: o Estado como fonte de
esgotamento, ausente quando se trata de cuidado.
Tem também a realidade das universidades.
Fisher, que dava aulas, conhecia bem esse cenário. No Brasil, é o estagiário
sem bolsa, o mestrando que dá aula em três escolas, o doutorando que já passou
dos quarenta e ainda ouve que “precisa se vender melhor no mercado”. A lógica
meritocrática transformou o conhecimento em moeda e o desejo de estudar em
culpa. Quem não aguenta, se cala. Quem surta, vira estatística. O adoecimento
mental na universidade não é desvio. É política de exaustão.
E quando alguém desaba, o que se oferece?
Receitas. Palestras. Grupos de mindfulness no RH. Mas ninguém pergunta por que
está todo mundo tão doente. Fisher denuncia o esvaziamento político da dor. A
psiquiatria dominante, com sua linguagem clínica e seus protocolos, acaba
servindo à manutenção da ordem. No Brasil, isso se traduz em Saúde Pública
atacada, CAPS desmontados, ausência de cuidado territorial e remédio como
primeira e única resposta. Não se trata de negar os diagnósticos. Trata-se de
perguntar o que os produz.
Então, não. Você não está sozinho. Nem é
fraco. Você vive numa engrenagem que exige mais a cada dia, oferece cada vez
menos, e ainda espera gratidão e reverência. Fisher nos mostra que politizar o
sofrimento é o primeiro passo. Não para transformar a dor em bandeira, mas para
tirá-la do silêncio. Para romper com essa lógica que individualiza o
adoecimento e desativa a crítica. A saúde mental é atravessada pela forma como
organizamos a sociedade. E se não enfrentarmos isso juntos, a conta vai
continuar sendo cobrada no corpo de cada um.
“A recusa em enquadrar o sofrimento mental
como uma questão política é, em si, uma decisão política” — escreve Fisher.
É isso. A sua tristeza tem contexto. O seu
cansaço tem história. E não é você que precisa mudar. É o mundo que precisa
parar de fingir que está tudo bem.
Leiam Mark Fisher, dividam com os seus
companheiros e suas companheiras. Politizem e coletivizem seus sofrimentos, é a
única saída contra a máquina de moer gente.
Fonte: Por Ricardo Queiroz Pinheiro, em Opera
Mundi
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