Mais Médicos: surge uma contradição na base
do SUS
Festejado pelo governo Lula como grande
símbolo da “reconstrução”, o programa Mais Médicos quebrou recordes de adesão e
beira os 30 mil profissionais contratados, distribuídos por unidades de saúde
de todo o Brasil. Em comparação com o desmonte do SUS e do direito à saúde
promovidos ativamente pelo governo Bolsonaro, o programa deve ser visto de fato
como um grande sucesso. Mas há um outro lado, pouco debatido. Na visão de Marco
Tulio Pereira e Ricardo Heinzelmann, médicos de Família e Comunidade entrevistados
pelo Outra Saúde, questões trabalhistas envolvidas no programa podem ser lidas
como uma bomba-relógio na Atenção Básica. Como explicam, a forma de contratação
acabou por ofuscar outro objetivo perseguido pelo programa: a ampliação do
corpo de profissionais da Medicina de Família e Comunidade (MFC), especialidade
essencial ao funcionamento do SUS. Isso porque a contratação por bolsa
representa vínculo precário de trabalho e na prática se tornou a forma
predileta de contratação de municípios, inclusive aqueles que possuem boas
condições econômicas.
Leia entrevista completa:
>>> Considerado um sucesso no
governo Dilma, o Mais Médicos foi encerrado pelo governo Bolsonaro, em sua
intenção de trocá-lo por um programa que mal saiu do papel, em anos que
acabaram marcados pelo esvaziamento da Atenção Primária em Saúde (APS) no
Brasil. E se antes o programa era mais dependente de profissionais
estrangeiros, agora tem uma versão ampliada, com muito mais profissionais
contratados. No entanto, vocês apontam uma precarização da medicina, em
especial de sua especialidade Família e Comunidade, nesta nova versão do
programa. Qual a visão geral de vocês sobre essa retomada do Programa Mais
Médicos e sua nova concepção?
Marco Tulio Pereira: O SUS foi criado pouco
antes de o país adotar uma concepção econômica e administrativa neoliberal, o
que na saúde se refletiu em várias ações, a exemplo da criação das Organizações
Sociais, para realizar a gestão privada de estabelecimentos públicos de saúde.
Na atenção básica, não podemos dizer que o Mais Médicos criou a precarização,
porque ela já existia, claro. Poucos municípios de fato oferecem carreiras
municipais para médicos. Tal lógica, portanto, já existia. Nossa reflexão é que
o Mais Médicos, uma solução muito importante para resolver o problema dos
vazios assistenciais e provimento médico em áreas muito vulneráveis e remotas,
passou a ser considerado uma solução de contratação de profissionais médicos
para a APS no Brasil. Aqui, temos um vínculo precarizado porque se contrata por
bolsa, como se fossem eternamente estudantes, o que se expressa através dos
gatilhos formativos concedidos pelo programa, a exemplo do reconhecimento do
título de especialista. Falamos de um cenário onde metade das Equipes de Saúde
da Família (ESF) são contratadas com esse vínculo de bolsa do Mais Médicos. Ao
não avançar numa agenda de regularização dos vínculos e criação de direitos
trabalhistas para os profissionais médicos, que são trabalhadores como qualquer
outra categoria profissional, o governo avançou na precarização a partir de uma
política ministerial. Isso fez
municípios que tinham situações regulares de contratação de profissionais
médicos e histórico de concursos públicos em condições atrativas abandonarem
tais práticas. Por exemplo: Florianópolis e Belo Horizonte passaram a não ter
mais essa atratividade e só ofertam vagas através do Mais Médicos. Isso
aprofunda o problema da precarização dos vínculos, inclusive em municípios que
não o tinham, o que agora passa despercebido.
>>> O programa adota a racionalidade
neoliberal de Estado em sua lógica de redução de custos da mão de obra, o que
pouco parece mudar num governo de viés mais progressista com mais engajamento
em políticas de justiça social?
M.T.P.: Ouso dizer que, a partir de 2023,
quando o ministério da Saúde lançou edital com o chamado modelo de
coparticipação, o Mais Médicos pode ser caracterizado como uma contrarreforma
trabalhista, pois o próprio ministério oferta aos municípios ferramentas para
uma forma de contratação mais barata. Os vínculos de trabalho na atenção
primária sempre foram, de maneira geral, precários, com exceção de alguns
municípios de grande porte, com melhor estruturação de serviços, que conseguiam
contar com recursos públicos e planos de carreiras. Isso tem várias outras
dimensões, mas se produziu uma falta completa de atratividade dos médicos por
tais vínculos de trabalho, que se tornam muito rotativos, como um primeiro
emprego, temporário, pois ninguém quer construir carreira com este grau de
precariedade. Talvez agora menos, a falta de profissionais sempre foi muito
gritante no cenário da atenção primária. O Mais Médicos enfrentou essa questão,
muito importante. Mas pela forma como está se estruturando e se consolidando
também está se transformando numa forma hegemônica de contratação de médicos.
Metade das ESF são vinculadas ao Programa, e não tem nenhuma perspectiva de
transição para um vínculo trabalhista mais qualificado. É uma política
emergencial de estabilização de médicos na atenção primária muito importante.
Mas e no futuro? Vamos conviver com metade dos médicos que trabalham na atenção
primária, nível de atenção tão importante para o funcionamento do SUS, como
temporários e bolsistas? Isso não induz uma estruturação da política pública.
Ricardo Heinzelmann: Precisamos vislumbrar
uma transição a fim de estruturar a APS com vínculos mais estáveis, com mais
atratividade. Inclusive agora, num cenário em que se carece de muito menos
médicos no Brasil, pois o país e seu mercado de trabalho mudaram
significativamente nos últimos 10 anos, em razão também da criação de
faculdades de medicina. Mas da forma como está, é difícil que os futuros
profissionais possam se interessar e se dispor a seguir a trajetória de se
formar em Medicina de Família e Comunidade (MFC) e trabalhar no sistema de
saúde. Nossa posição é: MFCs, profissionais que optaram por fazer uma
especialidade praticamente exclusiva do SUS, precisam encontrar um caminho de
trabalho minimamente atrativo. Não estamos falando de carreira de juiz ou do
mercado de trabalho privado, mas de um mínimo de estabilidade e de perspectiva
de carreira. Por exemplo: pelo painel do Mais Médicos, Santa Catarina tem 42%
dos médicos da APS ligados ao programa. Pelo Censo das UBS, realizado no ano
passado, 45% das Unidades Básicas de Saúde (UBS) do Sul do Brasil têm médicos
ligados ao programa. Falta tanto médico assim no Sul do Brasil? Recife tem 70%
dos médicos ligados ao programa, uma cidade como Santa Maria, com faculdade de
medicina, tem praticamente 100%… A estrutura da organização, da gestão do
trabalho dos médicos na APS é, basicamente, orientada para os Mais médicos.
M.T.P.: Eu trabalho no programa no município
de Araripina, polo gesseiro do sertão do Araripe em Pernambuco, uma cidade
média, 90 mil habitantes, que tem curso de medicina: das 32 Equipes de Saúde da
Família, 27 são do Mais Médicos. As outras 5 são contratadas por CLT. O
município nunca faz concurso público. Nunca criou uma estratégia de atração e
fixação dos médicos e o Ministério da Saúde oferta a solução com vínculos por
bolsa, temporários. É o que estamos vendo.
>>> O Mais Médicos está preenchendo
os vazios assistenciais atribuídos ao governo anterior? As cidades que
realmente tinham uma carência de profissionais também estão sendo providas?
M.T.P.: O Mais Médicos tem o grande mérito de
garantir o provimento de médicos no Brasil na atenção primária, isso eu afirmo
categoricamente. Trabalho no sertão de Pernambuco, conheço o sertão e afirmo
que aqui na região não falta médico. Em outros níveis de atenção faltam, nós
estamos vivendo no hospital do Estado uma falta crônica de anestesistas.
Tivemos uma situação gravíssima num hospital de referência para trauma de
ortopedia e neurocirurgia com falta de neurocirurgiões. E o hospital tem
recurso para contratar, mas as pessoas não aparecem. Na APS na nossa região,
não falta médico, o que é fruto, essencialmente, do Mais Médicos. Isso o
programa garante. Porém, o cenário do mercado de trabalho está mudando muito.
Teremos alguma outra estratégia para regularizar a atuação desses médicos? A
proposta atual é emergencial.
R.H.: Dez anos depois do primeiro Mais
Médicos, apuramos dados em que se constata que, do total de médicos, apenas 38%
estão em municípios de alta e muito alta vulnerabilidade e 62% estão em
municípios que não seriam o foco do Mais Médicos.Aqui entramos em várias
discussões importantes. Uma delas é o próprio recurso financeiro investido no
programa. É um programa bilionário, de mais de R$ 5 bilhões. Mas este valor não
está orientado pelo princípio da igualdade, não se fez tal estratégia, porque
estamos falando de municípios ricos. Tranquilamente, tais municípios poderiam
abrir concurso e contratar médicos com condições mais atrativas. Mas fica mais
fácil e cômodo ter o médico do programa garantido.
Já os recursos financeiros, não são apenas
relativos a salários. Por trás do Mais Médicos, tem uma estrutura gigante que
envolve a oferta da especialização, os supervisores, os preceptores, a
logística. Gasta-se muito para ter esse médico recebendo bolsa de municípios. A
forma como está sendo conduzido o processo é equivocada. Atualmente, apenas 6%
dos médicos do programa são da especialidade Medicina de Família e Comunidade.
Não está sendo atrativo para médicos da especialidade. Porque, de fato, não tem
perspectiva nenhuma de continuidade. Depois de quatro anos, o processo acaba, e
aí vai acontecer o quê? Ninguém vai se mudar com filhos para um município sem
perspectiva de carreira. Além disso, mais da metade dos médicos atualmente não
teve revalidação da atividade profissional. Considerando a baixa possibilidade
de passar da prova do Revalida, a maioria desses médicos, depois de quatro
anos, não continuará trabalhando e pode não conseguir fazer a titulação em MFC.
E aqui temos mais recursos, porque todo mundo está recebendo especialização em
MFC, pois a adesão ao programa vale como uma pós-graduação. É um recurso
milionário que está sendo investido em médicos que não vão ficar na atenção
primária, pois da forma como o programa está moldado haverá rotatividade. Uma
parte importante desses recursos poderia ser canalizada, por exemplo, para
descentralizar os programas de residência, pois é um momento de utilização do
médico em local de trabalho próximo à família. Poderia haver muito mais chance
de expandir a APS com qualidade pela MFC, com outras estratégias. O Mais
Médicos poderia ser direcionado para, de fato, áreas mais vulneráveis. Mas isso
não acontece.
>>> Em 2023, quando entrevistamos
Zeliete Zambon, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e
Comunidade, no momento em que o programa foi recriado, havia uma visão positiva
desses gatilhos de carreira que o governo instalava. Segundo a explicação da
época, isso atrairia mais profissionais em relação ao primeiro programa, muito
dependente de médicos estrangeiros. Agora, vê-se uma crítica justamente a essa
ideia, inclusive como se fosse uma espécie de “atalho”, pois em vez de se promover
a residência, cria-se uma espécie de concorrência, uma divisão na
carreira.
R.H.: Sim. A pós-graduação nunca vai
substituir a residência. É interessante que eu estou nesses dois lugares. Eu
estou vendo a nossa residência aqui em Santa Maria, na Universidade, e ao mesmo
tempo eu sou tutor da especialização. Acompanho turmas nos dois cenários. É
muito diferente. Não tem como comparar o padrão de formação da nossa
residência, a qualidade com que os residentes saem depois de dois anos, e o da
especialização. São estratégias que precisariam ser complementares, a
especialização direcionada para situações de áreas específicas, de difícil
acesso, alta vulnerabilidade. Mas o que aconteceu foi a especialização em massa
enquanto a residência é deixada sem dinheiro. Os preceptores trabalham por amor
mesmo. Ficamos implorando para eles receberem uma turma de residência. Como
universidade pública, criamos cursos, eu faço treinamento, procedimento como
habilitação para colocar DIU, a fim de dar alguma contrapartida profissional a
quem adere, mas não há nenhum estímulo. E tais recursos poderiam ser usados
para estimular os preceptores, inclusive para direcioná-los a mestrados e
doutorados. Precisamos fazer uma revisão disso.
M.T.P.: Eu acho correto ter programa de
atrelamento da pós-graduação a algum processo formativo em programa de
provimentos. Isso qualifica os médicos associados ao programa de provimentos,
para terem alguma trajetória nesse sentido. Mas minha impressão é de que
ninguém trabalha nos processos formativos do Mais Médicos para fazer
pós-graduação. Ninguém foi atraído para o Mais Médicos por conta da
pós-graduação. As pessoas foram atraídas para o Mais Médicos por dois motivos
principais: 1) uma parcela grande de médicos do programa não tem atualização de
diploma, são mais de 10 mil médicos que têm como única opção de trabalho o Mais
Médicos; 2) os médicos que têm CRM no Brasil: uma parte são médicos que já
trabalham no interior, são do município, trabalham ali com plantão, na UBS.
Diante dos vínculos precaríssimos que existiam nos municípios, pelo
patrimonialismo das gestões que se apropriam dos cargos públicos, tais
profissionais veem no Mais Médicos uma maior estabilidade. Ser vinculado ao
governo federal é mais garantido. O nível salarial não é muito superior, não é
uma atratividade necessariamente financeira, mas de estabilidade. Outro ponto é que os recém-formados querem um
primeiro emprego antes de buscar alguma especialização, ou ainda não procuram
uma especialização. Eles não querem ser MFC. Inclusive, o Mais Médicos teve uma
crise recente no processo formativo porque está muito mais robusto do que a
versão anterior. Eu acho que esse é o elogio que a Zeliete fez. O processo
formativo realmente está muito mais robusto. E muitos médicos não querem passar
por este processo porque não querem se formar em Medicina de Família e
Comunidade. Eles não veem a perspectiva de terminar esta especialização e fazer
a prova de título. Não tem uma perspectiva positiva de carreira. Querem,
basicamente, um primeiro emprego com o mínimo de estabilidade, um salário
garantido, condição de estudar para a residência, ou de fazer pós-graduação no
mercado privado e depois seguir uma trajetória específica. Eles não querem ser
MFCs; quem quer faz residência médica. Tem um padrão de formação absolutamente
melhor. Outra crítica que faço é: vincular a pós-graduação a programa de
provimento me parece correto, mas ter como estratégia nacional de formação de
especialista, não. O Mais Médicos deve ser direcionado para áreas e regiões
realmente mais necessitadas, Amazônia Legal, algumas periferias de grandes
cidades, partes do Nordeste, outras regiões que ainda estão se estruturando na
atenção básica… Acho que pode ser um processo temporário de organização de
operação da rede de APS.
Espero que a atual concepção seja um processo
de transição para uma formação central de médico de família por meio da
residência médica, seguido de um caminho de fixação por meio de carreiras mais
estáveis. O ministério da Saúde sabe que hoje falta menos médicos na APS do
Brasil, pois os números são muito diferentes de 2013. O argumento agora não é
uma questão tanto de faltar médicos, mas de fixá-los. E realmente a
rotatividade é muito grande. Mas por que tem rotatividade? Em Florianópolis,
entre os concursados, não tem rotatividade grande. Em Brasília tampouco. Mas em
lugares onde o vínculo é PJ, mesmo CLT através de OS e muita pressão de
gestões, realmente se produz muita rotatividade. Esse é o motivo da dificuldade
de fixação de médicos. O ministério faz um conjunto de indenizações para
incentivar médicos que não querem ficar na APS a permanecerem um pouquinho
mais. Tais médicos, obviamente, num período de estruturação da vida, de dívida
estudantil, aceitam ficar ali 3, 4 anos, mas depois seguem sua trajetória. É um
caminho possível de organização e de fixação de médicos em algumas áreas de
desenvolvimento? Talvez. Mas fazer disso o caminho de fixação de médicos por
período de 2, 3 anos, com um custo financeiro bastante alto, não é o caminho
ideal. Nós precisamos de outras estratégias mais estruturantes para estabilizar
e fixar os médicos. É só olhar para a realidades dos municípios que fazem
concurso público. Com carreira, os médicos ficam na APS e seguem uma trajetória
para a formação em Medicina de Família e Comunidade, topam fazer residência e
se especializar na área.
>>> Em alguma medida, o Médicos pelo
Brasil tentou contemplar este aspecto que você coloca aqui?
M.P.T.: O conflito que houve recentemente com
os Médicos do Brasil é um exemplo. Quando se tem um mercado de trabalho
minimamente atrativo, com mais recursos, um corpo de garantias e benefícios
trabalhistas, os médicos vão aderir. No caso do Médicos pelo Brasil, os
profissionais estão lutando para efetivar seus direitos e afirmam que estão se
formando adequadamente, dentro de um processo formativo de dois anos, para
depois se fixarem no local.
R.H.: A questão da gestão é importante aqui.
Se a gestão sinaliza que em algum momento vai ter um novo acelerador, como um
concurso para MFC, vai ser muito disputado. Muita gente vai fazer. Hoje, o
Brasil tem 14 mil MFCs e menos de 1.200 estão no Mais Médicos. Olha que
desencontro. No cenário social que vejo, eles vão terminar a residência e se
perguntar aonde vão trabalhar. Como pode o programa preencher quase 30 mil
vagas, de acordo com o Governo Federal, e ao mesmo tempo MFCs terminam a
residência sem saber onde vão trabalhar? Dessa forma, tem uma incapacidade da
política construída em ver o novo cenário. De certa forma, faz uma leitura do
cenário de 10 anos atrás. Na questão da abertura de vagas de escolas médicas,
com todos os seus problemas (outro capítulo à parte, sobre a qualidade da
formação, dentre outros), hoje temos um número muito grande de estudantes
formados no interior dos estados. A formação está menos concentrada nas
capitais e grandes centros. Para onde vão estes formados? Se conseguirmos fazer,
de fato, um processo casado de ampliação das vagas em residência de Família e
Comunidade em tais locais e fixar MFCs titulados, com concursos CLT, via AgSUS,
eles ficariam ali, se forem ofertadas vagas com estabilidade. Porque foram os
locais onde eles fizeram a graduação. Seria um plano mais estratégico. Um ponto
que me gera incômodo é que, muitas vezes, o diálogo fica em torno de ser 100% a
favor do Mais Médicos ou totalmente contrário, entende? Não existe, parece, uma
possibilidade de fazer uma crítica no pensamento do SUS sobre o Mais Médicos,
sobre aprimoramento dos procedimentos. Agora mesmo, discussões estão rolando a
defender que o Mais Médicos não teve impacto nos indicadores. Tem vários
profissionais da área, inclusive vinculados ao campo da direita, que adoram
fazer críticas e detonar o Mais Médicos. Eu não concordo com a questão de não
ter impacto nos indicadores, mas da forma como está caminhando vai ter um
impacto menor do que o potencial nos indicadores de saúde do país, considerando
os R$ 5 bilhões investidos. Dá pra ampliar o impacto se qualificarmos as
Equipes de Saúde da Família, o que não está acontecendo. Dos R$ 5 bi, pode manter R$ 3 bi para
garantir os médicos nas áreas vulneráveis, onde precisa, e pegar R$ 2 bi desse
mesmo orçamento e colocar no processo de qualificação. É possível melhorar o programa com o mesmo
orçamento.
M.T.P.: É possível construir uma perspectiva
de longo prazo. Tem 14 mil MFCs no Brasil e 53, 54 mil Equipes de Saúde da
Família. Se for pensar em ter médicos de família em todas essas equipes, vai
precisar de uma transição a longo prazo. Pode-se estruturar uma proposta a ser
consolidada nos próximos 10 anos. Com o aumento gradual de investimento, pois é
claro que um pico de concurso público é mais caro do que um pico de bolsista. É
um dos eixos centrais. Optou-se por um caminho fácil, mais barato, em detrimento
de um caminho mais estruturado. Mas se pensar numa transição de médio prazo, é
possível que o Estado se organize. Houve opções políticas, inclusive no campo
da saúde pública, que estruturaram políticas públicas, por exemplo, para
garantia do piso salarial de Agentes Comunitários de Saúde (ACS), que foram
muito mais disruptivas em termos orçamentários. A PEC que instituiu o
financiamento federal de dois salários mínimos para os ACS faz com que o
governo federal gaste, anualmente, mais de R$ 12 bilhões de reais para os
nossos colegas. Uma ação superinteressante de garantir salários dignos,
estabilidade, um piso salarial mais justo. Talvez mereça até uma progressão. E
os aumentos salariais são acima da inflação, considerando que o salário mínimo,
atualmente, é aumentado no Brasil acima da inflação anual. Se pensarmos neste
valor, conseguiríamos estruturar uma política de carreira para praticamente
100% das Equipes de Saúde da Família no Brasil em um intervalo de 10 anos. Isso
faria com que os médicos viessem para a APS, porque está difícil o mercado de
trabalho. Para nós, formados há mais tempo, é mais estável. Mas para quem é
recém-formado, com os MFCs que estão terminando a residência, estudantes sem
emprego, como aqui no sertão de Pernambuco, é mais difícil. Vai ficar dando
plantão, umas coisas muito ruins, substituindo profissionais de folga ou
afastados. Na APS, não tem trabalho. E quem termina residência em MFC vai
entrar no Mais Médicos e trabalhar com bolsa referente a uma formação que já
possui?
>>> Como dito no início, o programa
é de emergência, de provimento contra vulnerabilidades específicas. Portanto,
avançar para a criação da carreira é uma questão de garantia da própria Atenção
Primária em Saúde? Em última instância, deveríamos falar de um financiamento
adequado da APS para que um programa como o Mais Médicos se torne uma
necessidade superada?
R.H.: É necessário o plano de carreira para
todo mundo. Mesmo em países com sistemas de saúde bem desenvolvidos,
investimentos pesados, como Austrália ou Inglaterra, se mantêm programas de
provimento. Para algumas áreas de difícil acesso e integração, é necessário.
Aqui, foi um programa elaborado há mais de 10 anos no contexto de toda aquela
crítica à vinda dos médicos estrangeiros. Mas países com grande extensão
territorial, como o Canadá, adotam a lógica de ter médicos que fiquem um tempo
mais curto atuando em áreas remotas. Contextos específicos podem exigir
programas de provimento. A questão é que passados mais de dez anos – claro que
houve um intervalo importante nos governos de Temer e Bolsonaro – não
construímos algo que possa superar o Mais Médicos. Talvez essa ampliação tenha
sido importante para consolidar a APS no Brasil. Com a estabilização da
política, é hora de construir um processo de transição nos pontos que nós
estamos determinando aqui. Vai precisar de políticas de provimento em locais como
a Ilha de Marajó, interiores do país, algumas regiões do Nordeste, ou regiões
mais inóspitas… Mas 40% dos médicos de Santa Catarina, 30% de Florianópolis,
30% de Brasília? Isso não é provimento emergencial, tem uma outra coisa
acontecendo. Cito o exemplo de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, onde moro. Um
município que tem duas faculdades de medicina, dois programas de residência de
MFC e é classificado com de muito baixa vulnerabilidade. A cidade tem 25 ESF e
18 médicos do Mais Médicos. É uma coisa absurda. Não tem nenhum motivo. Não tem
sustentação tamanha quantidade de profissionais vinculados ao Mais Médicos num
local onde se forma 180 médicos e 10 residências por ano.
>>> A troca do ministério da Saúde,
com a entrada de Alexandre Padilha, que teve participação importante na
construção da primeira versão do programa, quando era ministro, pode gerar
essas mudanças aqui debatidas?
M.T.P.: A Nísia Trindade fez uma boa gestão
no Ministério da Saúde, é uma figura importante do campo da Saúde Pública,
presidente da Fiocruz, teve um papel importante na pandemia e agora na
reconstrução do Ministério da Saúde. Foi uma grande gestora. Não há uma grande
mudança de rota com a chegada do Padilha, uma figura de uma trajetória na Saúde
Pública identificada com os estudos progressistas, da reforma sanitária. É uma
gestão de continuidade. O Padilha foi um bom ministro da Saúde no governo
Dilma, trouxe políticas importantes. Acho que pode ter uma gestão exitosa.
Temos esperança de que possa haver alguma abertura para um diálogo maior em
relação a questões como essas. Desejamos que sua gestão traga outras
perspectivas para o campo da Atenção Primária em Saúde, que possa abrir um
canal de diálogo com os médicos de Família e Comunidade, para que possamos
pensar na transição do Mais Médicos e uma estruturação de carreira para os
trabalhadores da atenção primária.
R.H.: Ele tem um conhecimento total do
funcionamento do programa. Também considero que todo arranjo do ministério é
uma mudança prática, não há ruptura em questões críticas. Já vínhamos em
tentativas de diálogo entre nossas entidades com o ministério, sem êxito, mesmo
tendo uma ótima relação. Mas, talvez, como toda mudança, possa ser uma nova
oportunidade.
>>> Aparentemente, um dos grandes
desafios de Padilha será lidar com a questão das emendas e das pressões que
bancadas parlamentares têm exercido para acessar esse grande manancial de
dinheiro destinado à saúde.
R.H.: Do ponto de vista macro, tenho uma
leitura de que o Ministério da Saúde é, digamos assim, refém dos municípios. Há
uma atuação muito semelhante à lógica do Centrão no Congresso Nacional, em
relação às políticas do ministério.Padilha é um quadro técnico. Talvez não
tenha alguém mais capacitado para estar à frente da pasta. Mas devemos observar
a seguinte contradição: deixamos de evoluir em discussões de ter no ministério
a execução da função primordial de indução de mudanças na política da atenção básica
para o ideal da autonomia municipal. Porque a Saúde ficou refém de discussões
dos municípios, que por sua vez estão muito mais interessados no imediato do
que na qualificação do processo de trabalho e organizações de pautas
importantes para dentro das Unidades Básicas de Saúde. Eles estão interessados
em reforma, construção de unidades, aquisição de equipamentos e ter médicos.Há
uma crise, que se refere à gestão interfederativa do SUS, que passa pela crise
da representatividade dos municípios, reféns da lógica das emendas
parlamentares e seus acertos político-eleitorais. E o ministério ficou
repreendido. Eu não sei até que ponto isso vai se aprofundar ou se haverá
habilidade política para enfrentar.
>>> A tripartição do SUS foi
enfraquecida?
M.T.P.: Tem a influência das emendas, mas tem
uma coisa da própria lógica do governo anterior de fortalecer o Centrão, num
contexto onde, para se preservar politicamente, Bolsonaro abdicou de certas
prerrogativas de liderança política do Poder Executivo e as transferiu ao
Legislativo. Isso acabou fortalecendo a gestão dos próprios municípios e dos
parlamentares aliados, que agora não querem abrir mão desse espaço ganho.
Perdeu-se a lógica da política indutora de uma construção e elaboração
estruturante.
Fonte: Por Marco Tulio Pereira e Ricardo
Heinzelmann em entrevista a Gabriel Brito, para Outra Saúde

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