quinta-feira, 24 de abril de 2025

Henrique Rodrigues: a revelação trazida pela morte do Papa Francisco sobre o bolsonarismo. ‘Gente má’

Eu estava dentro de um trem, indo de Milão para Turim, quando recebi às 10h02 (5h02 no horário de Brasília), 17 minutos após o anúncio oficial do Vaticano, a informação sobre a morte do Papa Francisco, que falecera às 7h45 de 21 de abril. Instantes depois, os passageiros que iam no mesmo comboio também passaram a ser informados por amigos e familiares, ou acessando jornais locais pelo celular. O clima era estranho, afinal, um papa representa muito mais para a Itália do que para qualquer outro país.

Nas horas que se seguiram, o que se viu foi uma avalanche de pronunciamentos vindo de praticamente todos os cantos da Terra. Chefes de Estado, de governo, ex-governantes, líderes políticos, sacerdotes de diferentes religiões, cristão, muçulmanos, judeus, hindus, budistas, enfim, o planeta sinalizava com deferência para o argentino de 88 anos que deixava a vida naquele momento e marcaria então, de forma definitiva, seu nome na História como um sujeito de bondade imensa.

Donald Trump, homem mais poderoso do mundo e também uma alma abjeta, o chamou de “homem bom” e citou suas ações pelos menos favorecidos, caminho repetido por seu vice, JD Vance, uma figura ultrarreacionária que chegou a pregar abertamente contra ensinamentos de Francisco. Na Itália, Giorgia Meloni, a primeira-ministra de extrema direita e simpatizante notória do fascismo, também o mencionou de forma carinhosa, mesmo sabendo o que o Bispo de Branco pensava dela. Nesse sentido, seguiram-se pronunciamentos de respeito extremo ao Papa vindos da Rússia, de Israel e de países do Oriente Médio, todos que em algum momento foram criticados pelo pontífice. Seu papel e seu caráter estavam acima de todas as questões.

Até Javier Milei, o presidente atual da Argentina, mesmo que contrariado, até mesmo por ser quem é (um extremista inescrupuloso e mau), viu-se impelido a elogiar Francisco e a prestar condolências por sua partida, evitando assim quaisquer rusgas.

Mas Jair Bolsonaro e o bolsonarismo? Bem, antes de chegar neles, é de bom tom citar algumas coisas sobre o recém-falecido Bispo de Roma, para o caso de haver algum desavisado que não saiba de quem estamos falando.

Jorge Mario Bergoglio, que adotou o nome de Francisco em 2013, foi um jesuíta nascido na América Latina, homem de uma grandeza singular. Ligava todos os dias pela manhã para o padre Gabriel Romanelli, sacerdote responsável pela paróquia e pela comunidade cristã de Gaza, que mesmo sob intenso bombardeio e arriscando sua vida o tempo todo leva os ensinamentos de Jesus Cristo em meio ao terror.

O mesmo Francisco recusou-se a atacar os homossexuais e transexuais durante uma entrevista num voo que o conduzia a uma viagem oficial. “Se uma pessoa é gay e procura Jesus, e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?”, respondeu à correspondente brasileira em Roma, Ilze Scamparini, completando ainda que no seu papel de pastor máximo do rebanho católico é sempre necessário fazer uso de uma “teologia do pecado”. “É importante uma teologia do pecado. Penso em São Pedro que cometeu um pecado grave: renegou Jesus. E mesmo assim foi feito papa”, completou.

Francisco era um sujeito magnífico em sua sabedoria, incontornavelmente bom em sua essência e compadecido com os males e sofrimentos do mundo. Abraçava doentes terminais e com enfermidades graves e contagiosas, consolava e beijava miseráveis sujos e maltrapilhos, não fazia qualquer distinção em termos humanos com relação a cristãos ou não cristãos, assim como entre crentes e ateus.

“É melhor ser ateu do que um católico hipócrita”, disparou certa vez. Ele chegou a consolar um menino que chorava muito numa missa após perder o pai, e que contou ao Santo Padre que o falecido era “uma boa pessoa”, mas ateu, temendo assim que ele tivesse ido para o inferno. “Deus não abandona as pessoas boas”, respondeu à criança, sem fazer qualquer proselitismo, barato ou sofisticado. Francisco foi uma das máximas representações da bondade de Jesus Cristo de Nazaré.

Retomando ao tema do bolsonarismo e de seu líder, a morte de Francisco acabou por trazer uma revelação ao mundo e, sobretudo, aos brasileiros. Tratar-se de uma seita absolutamente irracional que trafega num campo minado por desrespeito e pura maldade. Sim, gente má.

O próprio Jair Bolsonaro, não podendo ignorar a morte de Francisco (para sinalizar às suas franjas católicas radicalizadas, mas também para surfar no grande assunto mundial), fez menção ao pontífice, mas sem escrever ou pronunciar seu nome, restringindo-se a usar uma expressão patética: “figura do Papa”. Não dava para esperar muita coisa de alguém que, tendo a vida salva por uma governadora rival que enviou um helicóptero para socorrê-lo, preferiu agradecer aos PMs que pilotaram a aeronave.

Seus correligionários graúdos, entre eles um ex-ministro de Estado e um deputado federal de linha de frente, fizeram piadas com a morte de Francisco, apelando para trocadilhos e imagens grotescas feitas com a ajuda de Inteligência Artificial. Isso para não falar no grosso da matilha eleitoral que venera o ex-presidente.

Nas redes, desde as primeiras horas após o anúncio da morte do Papa, toneladas e toneladas de insultos contra Francisco foram disseminados, algo completamente diferente e único se comparado com setores até mesmo da extrema direita de outros países, que por óbvio não se entristeceram com a notícia, mas que mantiverem o mínimo de humanidade, mesmo que falsa, ao se referir a uma figura com tamanho relevo.

Outra vez o bolsonarismo se mostra desumano e baixíssimo. Uma tralha humana forjada nos “valores” mais nojentos e nauseabundos de um elemento sórdido que se engrandeceu distribuindo ódio em estado bruto gratuitamente contra aqueles que não fazem parte da seita controlada por ele. Outra vez, como na pandemia e em vários eventos históricos, a súcia seguidora de um desequilibrado colocou o Brasil como alvo de críticas por sua incivilidade e falta de bom senso.

•        A falta que fará Francisco a todos os homens de boa vontade. Por Ricardo Noblat

Foi no início dos anos 1970 que ouvi de dom Hélder Câmara a história que passo a contar. Como bispo auxiliar do Rio de Janeiro na década de 50, ele servira de guia a Giovanni Battista Montini, à época arcebispo de Milão, na Itália, em visita às favelas do Rio.

Os dois tornaram-se amigos à primeira vista. Montini, em junho de 1963, elegeu-se Papa com o nome de Paulo VI, sucedendo a João XXII, que sucedera a Pio XII. Dom Hélder, em março de 1964, foi promovido por Montini a arcebispo de Olinda e Recife.

Em uma de suas visitas anuais a Roma, dom Hélder foi recebido por Montini no Vaticano. E, em meio a uma conversa sem testemunhas, o arcebispo ousou sugerir ao Papa:

– Por que viver cercado de tantas riquezas, Santidade? Por que não vende grande parte do patrimônio da Igreja e vai morar em meio aos pobres?

Montini apertou-lhe as mãos em um gesto de carinho e respondeu:

– Como eu gostaria de fazer isso, como gostaria. Mas, não posso, meu irmão, não posso.

João Paulo I, o Papa Sorriso, sucedeu a Paulo VI em agosto de 1978, morrendo 33 dias depois. João Paulo II, o Papa polonês, governou a Igreja até 2005. Bento XVI, o primeiro Papa alemão, renunciou ao cargo em fevereiro de 2013, alegando o peso da idade.

Em 16 de março, três dias após a sua eleição, o argentino Jorge Mario Bergoglio, que adotou o nome de Francisco e se dizia o Papa “do fim do mundo”, dada à distância entre Roma e Buenos Ayres, cunhou uma frase que lembra o diálogo de Hélder com Montini:

– Como gostaria de uma Igreja pobre para os pobres!

A Igreja jamais renunciará à fortuna que acumulou durante séculos. Até onde enxergo, jamais veremos um Papa abandonar a fortaleza do Vaticano para ir morar com os pobres. Mas Francisco foi o que mais se aproximou desse ideal de despojamento.

A paz e o amor aos pobres foi a marca do seu pontificado. Salvo um milagre para quem acredita em Deus e em milagres, o sucessor de Francisco, a levar-se em conta o perfil dos cardeais mais cotados para se eleger Papa, imprimirá um novo rumo à Igreja.

Francisco não realizou grandes reformas porque esbarrou no conservadorismo da Cúria Romana. O mais provável é que a fumaça branca a ser expelida pela chaminé do Vaticano anuncie a eleição de um Papa conservador travestido de moderado.

Rezem por ele.

•        Franciscus, o Primeiro. Por Pastor Zé Barbosa Jr

21 de abril de 2025, a humanidade ficou mais triste. Cai diante de nossos olhos um daqueles que ainda nos fazia acreditar num cristianismo que seja bom para o mundo. Jorge Mario Bergoglio, ou como ficou conhecido após seu pontificado, Francisco. Papa Francisco. Que fez de nós, católicos ou não católicos como eu, reverenciar uma figura papal depois de anos de atraso e retrocesso na Igreja Católica Apostólica Romana.

Lembro como se fosse hoje a emoção daquele 13 de março de 2013 quando o mundo viu a fumaça branca tomar o céu de Roma com o anúncio de um novo papa. Por que a emoção para um protestante que não faz mais parte da igreja de Roma? Porque ali, naquele momento, alguns sinais se mostravam para o mundo que algo de realmente bom acontecera para todos, os ventos traziam boas novas e com uma pitada de ironia para os brasileiros: o papa era argentino. E humilde. O primeiro milagre já estava realizado, com o devido perdão da brincadeira para nossos hermanos. Mas não eram essas as boas novas...

O então cardeal Jorge Bergoglio inaugura uma série de novidades para a igreja ao ser escolhido o Bispo de Roma. Era o primeiro papa americano, e mais que isso, Sulamericano. Havia 1200 anos que a Igreja Católica não tinha um papa não europeu (o último havia sido Gregório III, que nasceu na Síria) e decidiu escolher um de um país ao sul do Equador e no “fim do mundo”, como brincou o próprio Bergoglio em sua primeira aparição pública, já como Papa. Também era a primeira vez que um jesuíta, ordem fundada por Santo Inácio de Loyola em 1540, assumia o mais alto posto do mundo católico.

Mas esses fatos eram apenas prenúncios da maior novidade que viria, a escolha do “nome papal”: Franciscus. Para quem não está acostumado aos meandros papais, a escolha do nome papal indica a direção para qual o papado caminhará. João Paulo era um sinal de evangelização/apostolado. Bento mostrava uma igreja mais teológica, conservadora. Mas de repente eis que surge... Franciscus! E o primeiro recado está dado: é uma igreja que caminhará na direção dos pobres e excluídos.

Aqui preciso abrir um parêntese nesta coluna com uma pergunta: Não choca a ideia de que após quase 8 séculos e 89 papados desde a canonização de São Francisco de Assis, seja a primeira vez que um Papa tenha escolhido esse nome? Fecha parêntese.

O agora Papa Francisco continua em sua missão de transformar as coisas já em sua primeira aparição. Antes da tradicional benção papal ele subverte a ordem e pede que o povo lhe abençoe antes. Meus olhos ainda lacrimejam quando lembro vividamente deste episódio. Imediatamente após pedir isso, Francisco se curva diante do povo que lotava a Praça de São Pedro. Era o servo da igreja ao invés dos tradicionais “senhores” que ali estava. Francisco encarnava o que Cristo dissera: “Eu vim para servir...” e era o fiel representante do santo que lhe dava o nome, o “irmão de Assis”.

Francisco viveu como Francisco. Renunciou muitas vezes aos luxos e benesses papais e adotou um jeito simples de viver o papado, coisa até então inimaginável para muitos. Sua figura mais pastoral que administrativa trouxe um vigor e um sopro de esperança por dias melhores em toda a terra. Suas mensagens e, mais que isso, sua prática cristã de acolhimento e carinho àqueles e àquelas que por séculos foram postos à margem pela igreja ecoarão ainda por muitos anos e espero que ainda sopre sobre o novo papado que há de vir.

Francisco morre como Francisco, deixando a saudade de um irmão amado, onde seres humanos, animais e a natureza choram e lamentam sua partida, ao mesmo tempo que celebram a sua vida de entrega e disposição, sua voz profética ao denunciar guerras, genocídios (como o da Palestina) e crimes ambientais, sua determinação em não acobertar mais escândalos sexuais e crimes cometidos por seus pares sacerdotais, seu amor-em-ação ao abraçar gente que a igreja excluiu por séculos. E pede, como último sopro de um gigante, que em sua lápide só tenha uma palavra escrita: Franciscus.

Curiosamente, suas últimas palavras públicas são, ao mesmo tempo, despedida: “Feliz Páscoa!”... e saiu dali para viver a sua própria. Na madrugada, atravessou o deserto, e encontrou-se, certamente, com o mestre de Nazaré e seu irmão Francisco. Teve a sua feliz Páscoa.

Que não fiquemos mais 800 anos esperando Francisco II, eis a minha oração. Para alegria de toda a humanidade. Enquanto isso, só nos resta agradecer a vida e a obra de Franciscus, o primeiro.

•        Francisco e o trabalho que dignifica: uma homenagem ao Papa operário. Por Álvaro Quintão

Na despedida de Francisco, não são apenas os sinos de Roma que dobram. Uma quietude diferente paira sobre praças, igrejas e fábricas. O silêncio pede palavras que recuperem o significado de uma vida dedicada à dignidade humana. Entre suas incontáveis falas, ecoa mais forte uma verdade simples e profunda: "É o trabalho que unge de dignidade". Nessas palavras, Francisco sintetizou uma doutrina social que buscou amparar o ser humano contra as brutalidades do mercado e da injustiça.

Francisco, desde o início de seu pontificado, mostrou-se menos chefe religioso e mais companheiro de jornada. Preferiu a periferia à pompa, as fábricas aos palácios. Era como se a própria vida fosse um grande ofício, executado com paciência e obstinação. Em suas homilias e pronunciamentos, o trabalho deixou de ser apenas meio de sustento e tornou-se a medida da dignidade humana, um sacramento cotidiano que aproxima homens e mulheres da realização plena.

Em um mundo de mercados implacáveis e crescentes desigualdades, Francisco desafiou poderosos com coragem e lucidez. Já em sua primeira exortação apostólica, Evangelii Gaudium, denunciou sem rodeios: "Esta economia mata". Para o Papa, o desemprego não era falha econômica casual, mas o resultado cruel de escolhas conscientes, que descartam vidas como objetos sem valor. Neste cenário, o trabalho não era apenas uma necessidade, mas o direito humano fundamental à existência digna.

A pandemia revelou mais ainda o quanto sua mensagem era urgente. Ao falar à Organização Internacional do Trabalho em 2021, Francisco defendeu que a dignidade laboral se constrói em "condições decentes, nascidas do diálogo coletivo". Ele via o sindicato como espaço vital, protegendo trabalhadores do isolamento e da exploração. Sem direitos coletivos, advertia, o trabalho perde seu papel civilizatório e se converte em mera sobrevivência.

Seus apelos ecoam diretamente nos tribunais brasileiros, onde se trava a batalha cotidiana contra a precarização. Em meio à "uberização" e contratos intermitentes, a palavra de Francisco oferece apoio moral às decisões judiciais que garantem vínculos trabalhistas justos e jornadas humanizadas. É uma luta incessante, onde cada sentença representa o esforço silencioso por justiça social.

Francisco compreendeu, ainda, que o trabalho humano é inseparável da questão ecológica. Em sua encíclica Laudate Deum (2023), advertiu sobre a insuficiência das respostas diante da crise climática. Denunciou, com firmeza, que são os trabalhadores os primeiros a sofrer com o descaso ambiental: agricultores explorados, mineradores expostos ao risco constante, entregadores invisíveis em suas motos vulneráveis. Sua voz instava à responsabilidade coletiva, à urgência de uma transição justa para economias sustentáveis, onde o trabalho humano e o cuidado com a Terra caminham juntos.

A solidariedade com migrantes e refugiados também permeou seu ministério. Diante da tragédia recorrente no Mediterrâneo, Francisco chamou de "instante de vergonha" o descaso global pelas vidas perdidas. Para ele, o trabalho não poderia ser privilégio, mas um direito garantido aos que cruzam fronteiras em busca de dignidade e sobrevivência. Esta mensagem encontra respaldo na Constituição brasileira, que assegura o acolhimento e a igualdade no mercado laboral aos estrangeiros, confirmando que Francisco pregava valores universais e profundamente humanos.

No campo jurídico brasileiro, decisões recentes do STF negam os ensinamentos de Francisco. O STF acaba de suspender a tramitação de todos os processos que julgam e que poderiam combater práticas ilegais como a "pejotização". Estes processos poderiam resgatar justamente o valor fundamental proclamado pelo pontífice: o trabalho digno não é negociável. Seriam pequenos avanços legais, inspirados talvez pela coragem daquele homem simples que ousou lembrar ao mundo o óbvio: nenhuma vida é descartável, nenhum trabalhador é peça substituível.

Com sua partida, Francisco nos deixa não apenas saudade, mas responsabilidade. Sua mensagem sobre o trabalho digno é um legado vivo, desafio cotidiano para juristas, líderes e cidadãos comuns. Se há uma homenagem verdadeira possível, ela reside na continuidade dessa luta, na defesa cotidiana dos direitos trabalhistas, no compromisso com a justiça social.

Que a voz de Francisco continue ecoando, como uma oração silenciosa nos tribunais, fábricas e campos, lembrando-nos sempre: é no trabalho justo e digno que repousa a esperança humana.

 

Fonte: Fórum/Metrópoles

 

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