Luiz Eduardo Soares: Glauber, heroísmo e
refundação da política
No ano
2000, publiquei um artigo no site No, sob o título
“Perdão e esquecimento: a cultura política brasileira e as lições da África do
Sul”i, onde procurava
mostrar que a subordinação da política ao mercado corroía a credibilidade das
instituições democráticas e poderia abrir, perigosamente, espaço para a
reemergência do autoritarismo, se forças conservadoras identificassem a
profundidade da rejeição popular à cultura política liberal e oferecessem
um blend ideológico de ordem e mudança. O artigo afirmava a
negligenciada importância do heroísmo – entendido como o sacrifício dos
próprios interesses, quando não da própria vida –, como fonte de valor e
legitimidade da política, talvez a única força moral e afetiva capaz de
reverter a hegemonia degradante da mercantilização generalizada.
Reproduzo,
aqui, sinteticamente, o artigo escrito há 25 anos, em homenagem ao gesto de um
político que honra o instituto da representação. Durante dez dias, o deputado
federal Glauber Braga, ameaçado de perder o mandato por se opor ao jogo das
emendas secretas, esteve em greve de fome. Decidiu pôr sua vida em risco em
resposta ao absurdo. Sua decisão causou surpresa e perplexidade. Havíamos
esquecido que política não se restringe à lógica liberal, utilitária e
individualista. Para evocar virtudes heróicas na política, não é preciso
recorrer às armas. Basta apagar a fronteira entre privado e público, não para
tornar a sociedade voyeur de intimidades narcísicas, mas para
entregar o próprio corpo à luta política coletiva.
O gesto
de Glauber foi vitorioso, ao menos provisoriamente. Não apenas porque ampliou o
arco de solidariedade, chamou à responsabilidade tantos que antes se mostravam
indiferentes, envolveu partidos e entidades da sociedade civil, jogou luz sobre
a questão de fundo (as emendas secretas como fontes de reprodução de mandatos
parlamentares) e obteve um recuo – embora parcial – da Câmara. Também porque
alargou nosso repertório político, mobilizou nossa memória e tocou o nervo do
descrédito popular, matriz da reemergência do fascismo: a mercantilização da
política. O heroismo de Glauber trouxe de volta à cena a problemática do valor
– aquele que não se troca, não é monetizável, aquele que é incomensurável e se
chamava (lembram-se?) dignidade. Valor que nos situa ante o limite de nossa
humanidade, revelando que a política, em sua grandeza histórica, diz respeito à
vida e à morte.
***
O
descrédito das instituições públicas, particularmente das instituições
políticas, é crescente, no Brasil. Há três fatores, a meu juízo, que,
combinados, explicam essa perda de credibilidade: o fracasso econômico – duas
décadas de estagnação e a incapacidade de oferecer condições de vida dignas à
maioria da população –; a magnitude da corrupção e sua visibilidade, associadas
à impunidade; a redução da vida política a simples extensão do mercado. Os dois
primeiros fatores têm sido bastante discutidos. O terceiro me parece
insuficientemente reconhecido e problematizado. Esse artigo pretende ajudar a
tirá-lo do limbo e colocá-lo na agenda do debate público.
- A Política como
Extensão do Mercado
As
teorias liberais pensam a política como um mercado, o que significa dizer: como
a extensão da economia de mercado e da lógica que orienta suas práticas. Em
outras palavras, a política, para os liberais, é um campo de competições entre
atores que buscam maximizar vantagens, benefícios e acesso a mecanismos que
permitam a reprodução em escala ampliada de seu poder. Esses mecanismos são,
essencialmente, aqueles que acionam decisões, por parte dos governos e dos
cidadãos. Voto é o nome da principal decisão dos cidadãos, desse ponto de
vista. Os nomes das principais decisões governamentais são: “formação das
alianças dirigentes” e “políticas públicas”, que incluem as suas pré-condições,
entre elas a aprovação de legislações específicas, a confecção do orçamento e a
composição das máquinas estatais.
Os
embaraços teóricos começam na identificação dos atores: são indivíduos ou
agências coletivas, como os partidos? A distinção é de grande relevância,
porque uma coisa é agir como o personagem individual egoísta e maximizador da
microeconomia; outra coisa bem diferente é sacrificar o interesse individual em
nome do cálculo que visa privilegiar a realização das finalidades de um ente
coletivo, mesmo que o cálculo do ente coletivo siga a mesma lógica econômica da
redução de custos e ampliação de benefícios –o que muda é a definição do que
sejam custos e do que sejam benefícios. A dor de cabeça dos liberais surge
quando essas definições variam e se contradizem, nos dois casos. Quer dizer,
quando, por exemplo, a vantagem para o partido corresponde a perdas graves para
indivíduos que o compõem.
Os
liberais ortodoxos, que levam ao extremo suas crenças individualistas, afirmam
que o que importa mesmo é o indivíduo (e seu interesse), até porque os atores
coletivos são feitos de indivíduos e se movem de acordo com decisões dos
indivíduos, os quais se organizam para isso e implantam sistemas decisórios de
tipos diferentes, cuja única peculiaridade é reproduzir em escala minúscula as
soluções para a pergunta “como tomar decisões?”, respondida, em escala mais
ampla, pelas sociedades. Os problemas, portanto, seriam sempre os mesmos e
poderiam ser resumidos em uma única fórmula: os indivíduos buscarão formas de
proteger seus próprios interesses, mesmo que isso signifique a redefinição do
interesse da coletividade de que fazem parte; para que essa redefinição seja
alcançada, os indivíduos se empenharão em negociações, trocas, barganhas e
acordos, os quais se apoiarão, sempre e necessariamente, portanto, nos
interesses egoístas dos atores individuais. Uma ilustração seriam as
manipulações de convenções partidárias: os liberais radicais consideram natural
a substituição do interesse partidário pela agregação contingente de interesses
individuais, resultante da disputa no mercado de votos dos convencionais.
Outras teorias liberais, que eu considero mais sofisticadas, reconhecem a
diferença irredutível entre os atores individuais e os coletivos. Essas
concepções atribuem muita importância às instituições, cujas regras de
funcionamento determinariam os comportamentos dos atores individuais e
condicionariam as principais dinâmicas políticas.
De todo
modo, a despeito de suas divergências, os liberais compartilham alguns dogmas e
muito ceticismo: não creêm em Rousseau, ironizam a vontade geral, desqualificam
a relevância das ideologias e consideram irracional a experiência subjetiva da
identificação coletiva.
- A Cultura
Política Liberal: domínio sem hegemonia
Tudo
isso fica muito mais complicado e interessante quando deixa de ser mera
especulação teórica e se transforma em modelo de ação e em normas práticas de
organização da realidade. Ou seja, as teorias e os credos liberais revelam-se
matéria de grande importância quando deixam de ser instrumentos de
interpretação da realidade e se convertem em cultura política, isto é, em um
conjunto de valores pelos quais se avaliam comportamentos próprios e alheios, e
em padrões de orientação para as ações políticas. No Brasil, desde a
promulgação da Constituição, em 1988, somos regidos pela institucionalidade
política democrática, que é compatível com modelos analíticos e práticos de
inspiração liberal, ainda que possa transcendê-los, porque a democracia não se
confunde com o liberalismo. E desde que a transição para a democracia se
completou, a cultura política liberal tem exercido forte domínio, no Brasil,
sem ter conquistado, todavia, a hegemonia, o que gera contradições e desgastes
profundos na própria imagem da atividade política. Explico meu argumento: nossa
vida política, desde a reconquista da normalidade democrática, passou a ser
regida pela introjeção e mimetização dos valores e da lógica do mercado. A
grande maioria dos políticos têm sido caracterizada pelo seguinte perfil: são
indivíduos que atuam como profissionais, dedicados à própria carreira,
maximizando votos e acesso a postos de decisão legislativa e executiva,
reduzindo riscos, custos de decisão e faixas de tensão, o que os condena à
previsibilidade do centro. Eles não cedem ao fisiologismo; eles são a própria
“fisiologia” da política enquanto mercado; são negociantes de votos e
oportunidades – podem se entregar à corrupção ou opor-se a ela, segundo as
conveniências do jogo, quer dizer, do mercado político. Consequentemente, boa
parte dos políticos, enquanto observadores da cena em que se inscrevem, pensam
a política com a mesma régua e o mesmo compasso, isto é, com os critérios do
mercado: o movimento de cada ator se avalia de acordo com a adequação entre sua
ação e o fim que deseja atingir. O cálculo ganha autonomia e passa a ser
valorizado por sua eficiência, pelo ajuste interno entre meios e fins. Deixa de
haver espaço para a reflexão crítica sobre a natureza dos fins e a qualidade
dos meios. Em resumo, impera a cultura política utilitária e liberal.
Por
outro lado, segundo o que vêm demonstrando muitas pesquisas antropológicas e
sociológicas, os valores predominantes na sociedade brasileira ainda
privilegiam o interesse público e os benefícios coletivos que resultam das
iniciativas privadas – e não por conta da crença de que os vícios privados
produzam, automaticamente, virtudes públicas, como querem os liberais, desde
Mendeville, mas por conta da convicção de que a virtude pública pode ser um fim
em si mesmo, mobilizador do interesse individual e capaz de se sobrepor ao
egoísmo, ou seja, aos vícios privados. Nossa sociedade ainda se anima a agir de
acordo com sentimentos e imagens do mundo que continuam a ser gregários,
igualitários e universalistas. Está muito distante, felizmente, do cinismo
individualista e do ceticismo generalizado, ainda que essas percepções tenham
se difundido bastante, entre nós. A sociedade brasileira é seletivamente cética.
Tem se tornado crescentemente cética em relação à vida política. A
predominância do credo e da prática liberal, no meio político, isto é, o
domínio da cultura política liberal, em um contexto cultural mais amplo
dominado por valores anti-individualistas, tem contribuído para a expansão
desse ceticismo, que subtrai legitimidade na exata medida em que retira confiabilidade
das instituições. Insisto: a repulsa popular não diz respeito apenas aos
corruptos, aos atos de corrupção ou à possibilidade de comprometimentos mais
generalizados; diz respeito ao tratamento prático e moral da política como
mercado.
- Usos e Abusos da
Resistência Popular ao Liberalismo Político
Considero
o liberalismo político preferível a qualquer forma de autoritarismo, por mais
que seja crítico em relação à sua capacidade de servir à causa democrática. Por
isso, é com preocupação que antecipo riscos autoritários, no horizonte, se
forças conservadoras identificarem a profundidade da rejeição popular à cultura
política liberal e oferecerem um blend ideológico de ordem e
mudança, composto pelos seguintes ingredientes: o fim da impunidade, um
distributivismo democratizante ousado e algum tipo de restrição à liberdade
política, que viria provavelmente mascarada por retórica nacionalista e
xenófoba. Para bloquear essa hipótese obscurantista, seria necessário que os
intérpretes da rejeição popular à cultura política liberal fossem atores
políticos democráticos, com capacidade para traduzir de modo criativo e
positivo a demanda por ordem, por estabilidade e segurança, e por penalização
rigorosa dos criminosos de todos os tipos e classes. O redistributivismo ousado
teria de vir acompanhado de uma defesa não-autoritária da ordem pública e não
revanchista da justiça, porque a barbárie policial só concorre para a
disseminação da violência e o encarceramento não pode ser mais, no início do
século XXI, a resposta generalizada às transgressões.
Sendo,
portanto, necessário interpretar a rejeição popular à cultura política liberal
– o que jamais deveria ser confundido com rejeição da institucionalidade
democrática –, proponho aos leitores uma reflexão.
- A Política Além
do Mercado: Heroísmo e Legitimidade
Em
1954, ocorreu o episódio talvez mais marcante de nossa história recente e,
certamente, o mais extraordinário. O presidente Getúlio Vargas estava
desgastado, enfraquecido, crescentemente isolado, acuado por acusações de
corrupção e envolvimento criminoso e prestes a sofrer a derrota final, que o
desmoralizaria, afastando-o do Palácio do Catete. Um gesto reverteu esse
quadro, aparentemente irreversível. Na noite do dia 23 de agosto, as oposições,
articuladas com as Forças Armadas, impuseram a Getúlio seu afastamento da
presidência. Nenhuma força política expressiva, nenhum partido, nenhum
personagem importante do drama, nem o próprio presidente, considerou a hipótese
de que a população se mobilizasse em massa, nas ruas, contra o afastamento,
tais a profundidade e a extensão do desgaste. Getúlio estava descartado. Era
carta fora do baralho. Recolheu-se para a última noite, no Palácio. Como um
estrategista incomparável, imaginou uma saída. A única que lhe devolveria a
dignidade, o apoio e o prestígio perdidos, mesmo que a um preço altíssimo: a
impossibilidade de beneficiar-se de sua própria conquista. Na madrugada do dia
24, Vargas suicidou-se com um tiro no coração.
Assim
que a notícia começou a circular, as ruas da capital foram tomadas por
multidões incalculáveis. Jornais de oposição foram empastelados. A população
encontrou formas surpreendentes de manifestação espontânea de sua solidariedade
ao líder morto. As massas tomaram a cidade: um mar de gente saudando o velho
caudilho, chorando sua perda, homenageando sua memória e investindo sua cólera
contra os detratores, aqueles que, horas antes, celebravam a vitória e se
preparavam para assumir o poder. Getúlio Vargas adiou por 10 anos a festa da
UDN.
Que
mistério há nesse gesto extremo? Por que o suicídio foi capaz de virar a
história de cabeça para baixo? Que propriedades há nesse lance trágico e
magistral? Por que a grandeza do ato e a intensidade dos efeitos são tão
evidentes e, ao mesmo tempo, tão enigmáticas e difíceis de explicar? Que
pensador político liberal poderia formular uma equação econômica para o
“cálculo” de Vargas? Qual o preço da vida e da morte? Em que jogo racional, em
que mercado, a morte do jogador se inclui como custo voluntário da maximização
de um poder evanescente? Entenda-se por evanescente o poder cuja natureza é
oferecer-se a quem se dispõe a perdê-lo, é dar-se como e enquanto perda, conforme
ficará claro adiante.
- Um Tiro no
Coração: o sacrifício como virtude política
Em
certo sentido, a pergunta já contém a resposta: a grandeza desse gesto, que lhe
infunde valor e o diferencia radicalmente de todos os demais gestos rotineiros
da política, está em sua gratuidade, na disposição de renúncia que revela. Mas
essa é uma renúncia por tudo distinta daquela outra, formal, que apenas
afastaria o presidente de suas funções, ou melhor, que apenas separaria o
indivíduo do cargo que ele ocupa. Essa renúncia envolve o sacrifício da própria
vida. Por isso, é uma renúncia unilateral e absoluta, que não espera nada em
troca, que não exige qualquer pagamento e não representa uma reação a qualquer
determinação externa. É voluntária, decidida somente por quem renuncia, e, por
definição, anula seu autor, quer dizer, elimina a existência daquele que seria
beneficiário do reconhecimento ou de alguma outra forma de reciprocidade. Não
há negação mais radical da individualidade. Seu receptáculo material, o corpo,
tem sua vida física destruída. A esfera privada é oferecida em sacrifício à
lógica da esfera pública, subordinando-se às suas necessidades, que, por essa
razão, resumem-se aos interesses da coletividade, depuradas de quaisquer
resquícios de autointeresse. Esta é a lógica simbólica que confere ao
presidente morto a estatura do herói.
Não há
heroísmo sem algum grau de sacrifício, vale dizer, de risco excessivo para o
autointeresse, em nome do respeito ao outro, ou aos outros. E não há vitalidade
nas máquinas institucionais sem alguma dose de heroísmo, nem que seja através
da representação, na atualização ritual do sacrifício pretérito, sintetizado no
mito de origem da comunidade. Não há cimento que mantenha juntas as partes do
edifício político-institucional, sem a celebração do heroísmo, que, no fundo, é
apenas a descrição mitológica da dimensão altruísta do ser humano, é apenas a
notação simbólica que sinaliza a existência de um plano coletivo (que Émile
Durkheim chamaria transcendente) como condição de existência da sociabilidade.
Vargas presenteou sua geração com essa dádiva incomparável: o gesto supremo de
doação, entrega e sacrifício do ator público. Ele saiu da vida e entrou para a
história, em um duplo sentido: (a) morrendo por suas crenças, reafirmando os
compromissos com o povo brasileiro, a que servia, o que o tornava digno de figurar,
com destaque, na memória coletiva; (b) tornando possível a história,
quer dizer, o relato que uma sociedade se conta a si própria a respeito de si
mesma, com algum senso de estar falando de um objeto dotado de sentido,
unidade, integridade, valor ou, numa palavra, identidade.
O
apoio, as homenagens espontâneas, a solidariedade foram o reconhecimento, o
pagamento moral, o contra-dom, a dádiva da sociedade – dádiva atraída pelo
vácuo criado pelo sacrifício do presidente (como talvez dissessem Marcel Mauss
e Lévi-Strauss).
- A Tragédia
Instituinte
Um
fenômeno também extraordinário, uma tragédia política de grande significado
para a história recente do Brasil foi a morte do quase-presidente Tancredo
Neves. Durante sua carreira, Tancredo foi muito conhecido em todo o país e
bastante popular em seu estado, Minas Gerais, que chegou a governar. Mas nunca
foi um político carismático. Era um homem inteligente, refinado, um artífice
prodigioso de alianças, que enxergava muito mais longe que a média de seus
pares. No entanto, carismático nunca foi. Nem pretendeu ser. Não fazia o
gênero. Nunca foi um grande orador em manifestações de massa, ainda que fosse
um mestre na retórica política. Era antes o spalla sofisticado
do quarteto de cordas, do que o metal colorido e abundante da sinfônica. Tudo
mudou em seu martírio. Quando a doença o alcançou na véspera da posse,
projetou-se sobre seu destino o arquétipo cristão do calvário. Os longos dias
de sua agonia passaram a ser lidos pelo filtro da cultura popular brasileira
como a expiação sacrificial de nossos pecados, de nossas faltas, das injustiças
de que somos cúmplices. O passado ditatorial e a história brasileira de
opressão eram exorcizados pelo sofrimento vivido pelo presidente. Definhando,
submetendo-se à sequência de cirurgias, Tancredo era o exemplo de obstinação e
paciência, em seu heroísmo modesto e pertinaz. Assim como Cristo, Tancredo
resistia à morte, mas, paradoxalmente, experimentava sua iminência com
resignação.
Getúlio
Vargas submeteu seu destino à virtude política – domesticando a fortuna com
suas mãos, literalmente, Getúlio transformou a virtude em fortuna. Tancredo
Neves sucumbiu à tragédia – a fortuna impôs seu poder superior a toda virtude
humana. Contudo, o martírio e a morte, em seguida à vitória política, em um
contexto histórico absolutamente singular, impedindo que o autor da conquista
se beneficiasse de seus frutos, imitaram o arquétipo universalizado pelo
cristianismo e seu modelo tradicional de sublimação (realização que suprime a
fruição e eleva o autor e sua obra a um plano imaterial, em que o valor se
separa do interesse). Por isso, pode-se concluir que a experiência trágica de
Tancredo converteu a fortuna em virtude, invertendo a estrutura simbólica do
mito de Vargas, mas, por isso mesmo, preservando-a, citando-a, representando-a
e a atualizando. Nos dois casos, a vida política recebeu intensa
transfusão de valor e significado. A sociabilidade brasileira se fortaleceu e
as instituições públicas se revitalizaram, com doses maciças de legitimidade.
Ambos os legados foram gastos pela vulgarização da política, convertida em
mercado. Não os soubemos aproveitar adequadamente, nem como história e mitos de
origem de um país renovado. O suicídio de Vargas tornou-se recordação
partidarizada. Tancredo, bem, o que sabem dele nossos estudantes secundaristas?
- A Política do
Esquecimento: amnésia funcional e conciliação das elites
Essa
incapacidade de incorporar o gesto heróico, a simbólica do heroísmo, ao relato
sobre nós próprios, sobre nossa sociedade e nossa história, impede que as
instituições oriundas dessa história se descolem da utilização eventualmente
mercantil que dela façam e pairem acima dos predadores, preservando seu valor,
sua credibilidade, sua legitimidade, sua grandeza. Grandeza que, afinal de
contas, provém da ação criativa, generosa, solidária e altruísta de muitos
brasileiros de que nos esquecemos.
A
amnésia brasileira não é uma patologia natural ou aleatória, típica dos
trópicos; é a contrapartida necessária do mecanismo sócio-político mais
importante e conspícuo, no processo de nossa formação nacional: a conciliação
entre as elites. Para que os conflitos sejam superados e a unidade se
recomponha, sempre que conveniente, de modo a evitar a tomada do poder pelos
representantes das classes subalternas, é indispensável que o passado seja
esquecido. Essa é a condição da viabilização política de coalizões que, ante o
risco de emergência dos excluídos e periféricos, reaglutinam agentes, grupos e
classes superiores, antes divididos por confrontos violentos. A amnésia
funcional é uma exigência estratégica, portanto, para a reprodução do status
quo no interior de um processo de mudanças. Nossa evolução tem sido
conservadora e autoritária, exatamente porque, como dizia Edmund Burke em fins
do século XVIII, a mudança pode ser a melhor forma de conservação, se houver o
ajustamento adequado dos interesses oligárquicos. Por isso, o esquecimento tem
de ser valorizado positivamente. A única forma de fazê-lo é redefini-lo como
transigência, abertura flexível à diferença, tolerância, com o que,
automaticamente, se desvalorizam os conflitos pretéritos, reclassificados como
intransigência, inflexibilidade e intolerância.
- Refundação
Democrática: algumas perspectivas
Claro
que já é tarde para uma redefinição coletiva do sentido da transição
democrática, para a reversão da política do esquecimento e para o abandono da
simbólica da negação. Nossa realidade, hoje, é a do continuísmo neutralizador
de conflitos, moralmente diluidor, pilar da conciliação das elites. É também a
da mercantilização da política, reduzida a mercado de votos e oportunidades.
Por outro lado, também é parte da nossa realidade a presença forte da cultura
solidarista e igualitária, que valoriza a justiça e ainda preserva um espaço
nobre para a ação generosa, gratuita e altruísta. Considerando-se a contradição
entre o predomínio prático da cultura política liberal e a preeminência moral
da cultura solidarista, na qual o heroísmo político ainda é cultuado, pode-se
propor a seguinte conclusão: há espaço, no Brasil, para uma refundação da
política, que revalorize as instituições democráticas, como originárias de uma
história valiosa e significativa. Essa refundação, que revitalizaria o espaço
público e infundiria legitimidade e credibilidade às instituições políticas,
dependeria de gestos heróicos que sensibilizassem a cultura solidarista e a
memória coletiva. Seria patético, absurdo e despropositado propor o heroísmo
entendido em seu sentido bélico, que se alimenta do combate armado e arma
tiranias em nome de utopias românticas. O heroísmo a que me refiro e que
considero decisivo para revitalizar nossa democracia é aquele do pequeno (e
grande) gesto anti-utilitário dos atores políticos, individuais e coletivos,
gesto improvável, que transgride as normas da cultura política liberal e
surpreende quem espera a política rotineira. Hoje, no quadro da política
reduzida a mercado, no quadro do esquecimento funcional e da neutralização
moral das diferenças em benefício das uniões oportunistas, trair conveniências
e cálculos utilitários, ousar dizer a verdade e agir em conformidade com ela,
contar a história e apostar no valor da memória coletiva, podem ser gestos
revificadores da democracia. Talvez tenhamos outra chance de carregar de
sentido e valor as instituições que nossa história construiu, com muita luta e
muito mais heroísmo do que reconhece o ethos cínico da cultura
política liberal.
Fonte: Outras Palavras

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