Por
trás do colorido nas prateleiras do supermercado
Poucos
lugares são tão coloridos quanto um supermercado. Cada corredor contém
prateleiras e mais prateleiras, sobre as quais embalagens de todos os tons
disputam a atenção do nosso olhar, mesclando palavras e figuras criadas
minuciosamente pelos departamentos de marketing para otimizar sua
“atratibilidade”, aumentando a chance de venda.
Confesso
que, sempre que fico algum tempo distante desses centros de mercadorias
reluzentes, me sinto um tanto chocada ao entrar em seus ambientes
sobrecarregados de estímulos visuais. Para refletir a partir do que me incomoda
neles, convido você a vir comigo em uma experiência imaginativa, que nos levará
mentalmente para espaços totalmente díspares.
Para
começar, imagine que você está em um desses “templos do consumo”, com pacotes e
pacotes de produtos comestíveis, um mais colorido que o outro, e todos gritando
pra você: “me leva, eu sou diferente dos outros!” Slogans divertidos, fotos
tentadoras, referências a uma natureza idílica, promessas de boa forma ou de
saúde turbinada se revezam em superfícies plastificadas que provavelmente nunca
mais serão usadas, mas que não “morrerão” tão já, dada sua não
biodegradabilidade.
Imaginou?
Agora, vamos fazer um corte radical neste “filme”, e você vai imaginar que está
em meio a uma imensa monocultura de soja, com fronteiras a perder de vista.
Para qualquer direção em que olhar, só o que você verá é apenas um único tom de
verde, típico da espécie que está sendo cultivada ali – espécie cuja semente
provavelmente foi modificada em um laboratório de biotecnologia, através de um
processo de transgenia, para que, ao brotar, a planta siga determinados padrões
desejados pelos seus des-envolvedores. Sentiu o baque do contraste?
A
pergunta que não quer calar é: considerando que estamos em um dos países mais
biodiversos do mundo, qual a relação entre a acachapante uniformidade de uma
imensa área de cultivo, como a que você visualizou, e a Disneylândia
multicolorida tão característica dos espaços em que os alimentos
industrializados são vendidos?
Para
responder a essa questão, precisamos entender de quê esses produtos comestíveis
são realmente feitos. Aliás, chamar muitos deles de comida seria uma injustiça
imensa com nossa história alimentar, baseada em milênios e milênios de
relacionamento com a agrobiodiversidade presente nos diferentes ecossistemas ao
redor do planeta. Gosto de chamá-los de “coisas engolíveis”. Mas, nomenclaturas
pessoais à parte, o importante mesmo é analisar a composição de alguns desses
preparados.
Deu
vontade de um chips crocante? É algo relativamente simples de fazer – basta ter
um determinado tipo de alimento (como um tubérculo ou cereal), óleo e sal, não
é? Pois ERA. O processo de fabricação de um salgadinho bem popular, por
exemplo, envolve dezenas de etapas, nas quais seu ingrediente básico, milho
transgênico, é transformado em uma pasta, que será submetida a várias máquinas
sofisticadas, até adquirir a visualidade do produto conhecido por milhões de
pessoas. E é só nesse momento que os petiscos recebem, ainda, a aplicação de
uma fórmula secreta de aditivos para conferir a eles um dos três sabores
típicos da marca – o que dá margem para que muita coisa que não é bem o que
entendemos por comida entre em cena. Aliás, boa sorte para quem quiser descobrir
o tal segredo laboratorial.
Mas
passemos à algo mais corriqueiro… Segundo um documento divulgado pela própria
empresa em 2012, as batatas fritas presentes na rede de fast food mais popular
do mundo – que supostamente também deveriam conter apenas o tubérculo, óleo e
sal – levam, ainda, ácido cítrico (conservante), dimetilpolisiloxane
(antiespumante), ácido sódio pirofosfato (realçador da cor) e dextrose (açúcar
derivado do milho). Fica aí a dica pra você “fazer em casa”, se quiser se
aventurar no mundo dos preparados culinários com sobrenomes químicos.
• Que tal uns pedaços de frango?
Na
época em que a tal rede de fast food chegou ao Brasil, eu e minha irmã enchemos
o saco do meu pai para nos levar para conhecer e experimentar a tão alardeada
novidade. Embora ele e minha mãe sempre tivessem adotado uma postura crítica em
relação ao sistema econômico globalizado, no qual alguns países do Norte
planetário impõem padrões de consumo ao restante da população, ele acabou
cedendo, e lá fomos nós.
Quando
chegou nossa hora de fazer o pedido, e todas as pessoas da fila estavam
caprichando para falar os nomes gringos dos sanduíches oferecidos pela (mal)
dita lanchonete, meu pai resmungou assim para a atendente: “me vê aí os pedaços
de frango”. A minha cara e a cara da minha irmã ferveram de vergonha porque
havíamos implorado a ele, durante dias e dias, para que pedisse e comprasse os
tais dos nuggets, novidade absoluta naqueles tempos.
Se a
intenção dele foi desconstruir a marquetagem da empresa – baseada em nomes
sofisticados e quase impronunciáveis por crianças brasileiras, como nós éramos
na época -, acabou dando certo. Entendemos que aquilo era algo do tipo “galinha
frita” e não merecia muita babação, já que não éramos uma família muito ligada
ao cardápio carnívoro (ou mesmo franguívoro). Nunca mais fomos com ele a essa
rede de lanchonetes, mas ela segue aí, firmona após várias décadas e
incontáveis polêmicas. E ainda vende os tais pedaços de frango empanados.
Só que
não é bem assim… E é aí que a estória dá uma cambalhota. Na realidade, os tais
nuggets até contêm a carne dos simpáticos galináceos, que sofrem horrores antes
de virarem petiscos, mas estão muito longe de ser o que meu pai achava que
eram. Cada quitutezinho desses, além de ter carne e pele moídos, é um
aglomerado de ingredientes dos mais diversos (como farinha, gordura vegetal,
temperos, emulsificantes e estabilizantes), que passa por um processamento
complexo, formando uma massa uniforme, cortada no formato padrão, de modo a
sugerir algo mais ou menos como o que minha família conhecia como frango à
passarinho. Por sinal, vídeos que mostram essa fabricação são bastante
indigestos.
Da
mesma maneira que observamos as batatas e os nuggets, podemos olhar para boa
parte dos outros produtos alimentícios industrializados vendidos nos
supermercados e – batata! – vamos encontrar ingredientes e formas de produção
muito diferentes do que entendemos, respectivamente, por comida e por cozinhar.
Eles fazem parte do tipo de “coisa engolível” que o Guia Alimentar para a
População Brasileira denomina como ultraprocessados, aconselhando as pessoas a
ficarem o mais longe que puderem de seus pacotes. São exemplos dessa categoria
os biscoitos recheados, os cereais do tipo corn flakes, os néctares de
caixinha, os macarrões instantâneos, as salsichas e os refrigerantes, entre
outras figurinhas carimbadas que povoam as propagandas.
• Ilusão dos sentidos
Entretanto,
se os ingredientes são distintos do que usamos em nossas cozinhas para preparar
as refeições, eles são muito semelhantes entre si. A base de quase todos é
soja, milho, trigo, cana-de-açúcar, sal e um bom punhado de aditivos
artificiais, como aromatizantes, conservantes, emulsificantes, estabilizantes,
adoçantes sintéticos etc… tudo isso é misturado em diferentes composições e
proporções, de maneira cuidadosamente calculada para aumentar a palatabilidade,
ou seja, a sensação de prazer ao ingerir, viciando nossos cérebros.
Tendo o
sabor, o aroma, a consistência, a textura idealizados, é o momento de escolher
um formato, uma embalagem, um nome, buscando passar a ideia de que é algo
original – e ter mais chance de concorrer com os outros produtos que foram
elaborados a partir do mesmo tipo de procedimento fake, especialidade das Big
Foods.
É por
essa maquiagem toda que achamos que há uma variedade imensa de opções de
alimentos nos corredores supermercadeiros, quando, na verdade, as espécies
comestíveis presentes nas incontáveis prateleiras são sempre uma meia dúzia,
com acréscimo de mais meia dúzia, em alguns casos. Para ter noção do
empobrecimento alimentar que isso significa, vale lembrar que, só no território
brasileiro, há a estimativa da existência de cerca de 3 mil plantas
comestíveis, sendo que centenas ou até milhares de variedades de algumas delas,
como o milho e a abóbora, já foram cultivadas e consumidas.
Claro
que, no mundo do capital, nada é por acaso. Não é coincidência o fato das
espécies vegetais que batem ponto na composição da maioria dos alimentos
industrializados serem justamente as que povoam nossas monoculturas Brasil
afora. Por sinal, monoculturas estas que seguem avançando no mesmo ritmo em que
avança o consumo de ultraprocessados e em que perdemos elementos de nossa
Cultura Alimentar, formada pelos saberes acumulados, durante milênios, por
povos que nos constituíram como Estado Nacional, conceito em si já bem
problemático.
Aqui,
deixo um exercício para quem se sentir tentado a cair no mundo ilusório criado
pela indústria alimentícia: olhe o rótulo dos produtos e, ao perceber os
ingredientes de sempre, lembre-se dos nossos biomas sendo destruídos pelo
avanço do Ogronegócio – a engrenagem venenosa que produz e fornece essas
espécies vegetais aos seus fabricantes. Provavelmente, eles não vão parecer
assim, tão apetitosos. Ou assista o documentário Comida de Mentira, produzido
pelo Coletivo Bodoque, ACT Promoção da Saúde, O Joio e o Trigo e IDEC –
Instituto de Defesa do Consumidor. Um tapa com classe na cara de pau
corporativa.
• (Des)colorindo o alimento
Voltemos
a nos imaginar em outros cenários. Visualize-se em uma floresta tropical.
Perceba a variedade de seres vivos que convivem dentro dela. Com certeza, você
será capaz de encontrar cores das mais diversas, seja no alto dos galhos ou
entre as folhas caídas no solo. Mesmo se observar os tons de verde das folhas,
poderá ver que formam uma paleta extremamente ampla e que a uniformidade passa
longe desse ambiente.
Ao
imaginar a reunião dos frutos comestíveis nativos que se espalham pelos nossos
ecossistemas, nós teremos uma verdadeira obra de arte multicolorida. Dos
alaranjados do pequi e do jerivá até o roxo amarronzado do açaí e da
jabuticaba, passando pelo verde vivo do cambuci e pelo amarelo vibrante da
cagaita, não há como não se encantar com o arco-íris que a Pachamama espalhou
em nossos territórios de Abya Yala.
Mas
esse tesouro biológico – bem como os saberes culturais acumulados a partir do
contato com suas jóias comestíveis – está sendo exterminado em várias regiões
do país. A voracidade da elite agrária e das empresas do setor agroalimentar
parece aumentar ano a ano, e os seguidos recordes na produção de commodities,
como a soja e o milho, mostram que cada vez mais terras estão sendo totalmente
alteradas em suas características naturais, para virarem desertos verdes, nos
quais um só tipo de planta pode existir. É o cenário perfeito para um
cataclismo ambiental – nos colocando, ao mesmo tempo, como agentes
desencadeadores do caos climático e vítimas absolutamente vulneráveis aos seus
efeitos.
E o
tingimento monocromático, que esse modelo de des-envolvimento tem aplicado às
paisagens, também se estende ao nosso circuito de preparos alimentares. Mesmo
aquelas pessoas que ainda têm acesso ao tomate e à alface que compõem os PFs de
todo dia, já perderam uma imensa gama de cores de suas refeições, pois comem o
mesmo tipo de tomate e o mesmo tipo de alface rotineiramente, quando eles
poderiam ser de muitas outras variedades, com muitas outras cores, das tantas
que os seres humanos já cultivaram dessas espécies.
E o
mesmo pode se dizer da batata frita ou do purê de batata, sempre feitos com a
variedade que ficou conhecida como inglesa (embora as batatas sejam um alimento
originário da América e tenham viajado para a Europa após o processo de
colonização que sofremos). Muita gente nem sabe que existem versões laranjas,
roxas, avermelhadas e brancas de tubérculos que poderiam ser usados para
preparar essas receitas.
A
realidade nos mostra que, nos espaços urbanos, onde residem cerca de 85% da
população brasileira (índice que sobe para 93% no Sudeste), o que os mercados
vendem como alimentos in natura é relativo a uma parte ínfima da biodiversidade
comestível dos nossos territórios. E que boa parte do povo não tem acesso nem a
essa pequena variedade, já que frutas, legumes e verduras (os tais FLVs) não
estão disponíveis em muitas quebradas ou costumam ter preços inacessíveis aos
bolsos da classe trabalhadora precarizada. São os chamados desertos e pântanos
alimentares, que andam de mãos dadas com os desertos verdes do ambiente rural
que já mencionamos.
Em
compensação, é cada vez mais raro encontrar um local nas cidades, por mais
periférico que seja, que não tenha um cantinho em que se vende, a valores bem
mais em conta, pão de forma industrializado, salsicha, biscoito, salgadinhos do
tipo chips… e tudo o que parece muito colorido e variado, mas que costuma ser
feito de algum tipo de massaroca monocromática como as que descrevemos –
oriunda diretamente das plantações de commodities que descolorem nossos
ecossistemas, – com o acréscimo de aditivos dos mais diversos.
• A cor proibida
Se, por
terem sempre os mesmos ingredientes, os produtos gerados pela indústria
alimentícia irão parecer repetitivos em relação aos seus sabores, é só tascar
aromatizantes artificiais na hora de fabricá-los, que é possível criar gostos
que imitam quase tudo o que existe. Estão aí os sabores cuscuz com calabresa do
lamen instantâneo e cupuaçu do refresco em pó para não deixarmos dúvidas no ar.
Caso o problema seja a falta de coloração, é a vez dos corantes entrarem em
cena. Vale combinar os que existem disponíveis no mercado, muitos deles
totalmente sintéticos, para obter algodão doce azul, refrigerante cor de rosa,
carne vermelha…
Ôpa,
carne vermelha? É isso mesmo, até produtos que deveriam ser feitos com carne
bovina ou suína – e ter sua coloração avermelhada típica -, por vezes, são
feitos com boa quantidade de soja, temperada com um toque de um dos corantes
disponíveis na praça. No embalo do aumento do veganismo no mundo, empresas que
querem surfar nas ondas das tendências de consumo vêm lançando “coisas
engolíveis” das mais variadas, com a promessa de tornar possível a obtenção do
prazer de comer carne… sem comer carne!
Como
alguém que não come carne, nem sente vontade de comer, essa ideia me parece bem
inapetecível, mas sei que muita gente adepta do vegetarianismo tem larica de
comer receitas que normalmente são feitas com o sacrifício de animais. O fato é
que, independentemente de ideologias ou preferências gustativas, sabemos bem
que não é possível cada ser humano do planeta devorar proteína animal,
sobretudo carne vermelha, como se fosse um/a estadunidense médio/a. Reduzir é
preciso, e ponto.
Mas, se
o vermelho da carne bovina vem se tornando proibitivo na atual situação de
colapso climático, não é se entupindo de versões veganas de embutidos
ultraprocessados que vamos construir sociedades mais resilientes, tanto do
ponto de vista ambiental como do ponto de vista econômico ou o de saúde
pública. Somente transformando substancialmente o atual modelo agropecuário,
associado às indústrias alimentícias e farmacêuticas na dominação de nossos
territórios, nossos pratos e nossos corpos, é que teremos alguma possibilidade
de reverter o processo de “degringolação” civilizacional que nos atropela. Será
que estamos agindo para isso?
No
começo deste ano, a Agência de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos
(FDA) anunciou que, a partir de 2027, o uso do corante vermelho eritrosina, um
dos mais usados pelas empresas de “coisas engolíveis”, será proibido no
território do país. Os motivos são os que já sabíamos há décadas: essa
substância é potencialmente cancerígena e já havia sido alvo de restrição na UE
e no Japão. Agora, quando não dá mais para disfarçar esse “potencial” – e já
existem outras opções no mercado -, as autoridades responsáveis por ditar o que
deve e o que não deve nos envenenar vêm a público soar as trombetas contra sua
presença nos alimentos e suplementos.
É algo
a celebrar? Pode até parecer que sim, mas é só uma casquinha em uma cebola que
tem camadas e mais camadas de manipulação mercadológica. Além disso, aqui no
nosso país, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) ainda não
acompanhou esse movimento de sua “colega” gringa e é provável que sejamos
novamente alvos do lixo tóxico decorrente da circulação seletiva das
substâncias no globo terrestre, processo bem definido – em seu livro mais
recente – pela pesquisadora Larissa Bombardi como Colonialismo Químico.
• A disputa pelo vermelho
Não
deixa de ser curioso que, na sociedade capitalista, a “cor do morango” seja um
fetiche no mundo da alimentação. Balas, jujubas, pirulitos, sorvetes,
gelatinas, pudins, sucos, geleias… as crianças (de todas as idades) têm bastante
inclinação a preferir guloseimas de tonalidade vermelha, que costumam ser
associadas à alegria e ao sabor doce ou azedinho-doce.
É algo
que pode estar associado à busca ancestral por um alimento calórico, que veio
da época em que éramos caçadores-coletores e frutinhos vermelhos maduros eram
tesouros energéticos dentro de uma realidade em que gastávamos muitas calorias
para prover nossa alimentação. O fato é que as indústrias produtoras de
ultraprocessados sempre abusaram dessa “suscetibilidade” humana, ou mesmo a
estimularam, de modo a extrair lucros polpudos do bolso dos/as consumidores/as
desses produtos e enriquecer proficuamente seus grandes acionistas.
Só que
a cor vermelha também representa algo diametralmente oposto ao fenômeno
gustativo que leva ao enchimento dos bolsos capetalistas. Ela é símbolo do
sangue derramado pelos povos que a sanha imperialista por dinheiro vem atacando
ao longo de séculos. Ela está nas bandeiras levantadas por pessoas que lutaram
e seguem lutando por justiça social, por um modo de viver mais solidário, pelo
fim da exploração da vida, seja de que tipo de vida for. Ela está no urucum
usado pelas populações indígenas para pintar suas peles já avermelhadas e
praticar seus rituais ancestrais para que o céu não desabe e a terra não fique
estéril.
E o mês
de abril é especialmente simbólico para quem tanto resiste ao extermínio físico
e espiritual perpetuado pelas elites nacionais e internacionais, em sua aliança
despudorada pelo acúmulo de riquezas e privilégios. É um período de mobilização
pelos direitos campesinos e indígenas, sobretudo pelo direito à terra e ao
território. É o Abril Vermelho, que ganha vida em todos os cantos do país,
empunhando a mensagem da Reforma Agrária aos quatro ventos. É o tempo do
Acampamento Terra Livre, reunindo milhares de indígenas em Brasília, para
reivindicar sua existência plena enquanto povos originários destes nossos solos
sagrados – que tanto vêm sendo sugados por homens brancos de classes histórica
e economicamente privilegiadas.
Durante
este período, o Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais Sem
Terra, impulsionado pelo Dia Internacional da Solidariedade e Ação para as
Comunidades Camponesas, que também é o Dia Nacional da Luta pela Reforma
Agrária, promove uma agenda consistente, que inclui marchas, protestos, doações
de alimentos e as tão necessárias ocupações, que são instrumentos legítimos de
pressão sobre os governantes e, também, gritos de alerta à população para a
realidade de exclusão no campo. Ocupando áreas dominadas por vários
ogronegoceiros – que mastigam os elementos vitais dos ecossistemas e cospem
seus bagaços venenosos sobre nossas cabeças -, os povos campesinos denunciam
violações inaceitáveis contra a natureza e a sociedade.
É que a
data acima referida, o dia 17 de abril, faz referência aos 29 anos do que ficou
conhecido como Massacre dos Carajás, uma chacina cometida pela polícia militar
do estado do Pará, ceifando a vida de 21 integrantes de acampamentos Sem Terra
que protestavam por seus direitos. O sangue de quem tombou na luta serviu de
impulso para que o mês se tornasse o tradicional Abril Vermelho, e fosse
reverenciado ano após ano, como símbolo da coragem de tantos outros lutadores e
lutadoras assassinados/as, ao redor do mundo, em função da ganância da minoria
que se julga senhora do universo.
Este
ano, o lema Direitos dos Camponeses, Soberania Alimentar e Fim da Guerra e do
Genocídio, adotado pela Via Campesina, maior movimento de agricultores/as do
planeta, faz uma referência à situação inaceitável em Gaza. Também encorpa a
luta para que a UNDROP – Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos
Camponeses -, promulgada em 2018 após décadas de mobilização ativista, seja
finalmente implementada.
Aqui,
onde quem é indígena, preto/a, pobre e periférico/a também costuma ser alvo de
genocidas, o lema escolhido para 2025 foi Ocupar para o Brasil alimentar,
reforçando o elo indissolúvel entre o acesso à terra e o combate à fome,
inclusive para frear a especulação e o boicote que vêm insuflando a carestia
dos alimentos.
• Liberdade multicolorida
Se a
voz dos povos originários segue ecoando, mesmo frente aos mais de 500 anos de
opressão, é porque, através dela, a natureza é quem está falando, cantando e
gritando. Transformando a capital do país em uma comunidade multicor, milhares
de indígenas reivindicam muito mais do que a demarcação de seus territórios
ancestrais. Eles e elas dedicam seus esforços e seus saberes para tentar
impedir que a espécie humana, por meio da minoria ávida por dinheiro que a
domina, provoque a própria extinção, levando outras milhares de formas de vida
consigo nesse processo de ecosuicídio. E, no centro desse debate, está tanto a
disputa pelo nosso imaginário como pela materialidade que nos constitui.
É
compreendendo essa dupla chave, que afirmamos que é hora de libertar o vermelho
– que foi cooptado pelos fabricantes de corantes artificiais e pelas
identidades visuais traiçoeiras das redes de fast food transnacionais, como a
que eu mencionei no começo deste texto – das garras do capital. Também é hora
de libertar as bandeiras e os pigmentos dos povos dos campos, das águas e das
florestas da perseguição massiva e contínua por parte de quem empunha
espingardas e correntes de arrasto, ao invés de enxadas e maracás.
Queremos
e vamos lutar pelos avermelhados naturais das pitangas, das grumixamas, das
pimentas e vinagreiras. E de tantas outras espécies de vegetais e de animais
que estão sucumbindo frente ao espraiamento sem limites dos monotons do
Ogronegócio. Os avermelhados do que é e do que não é comestível. Das araras e
borboletas. Basta de esquizofrenia em relação a essa cor tão vibrante que, de
um lado, vem sendo instrumento de manipulação marqueteira para nos impor um
padrão alimentar artificial e insustentável e, de outro, vem sendo
criminalizada por sua identificação com as lutas sociais e políticas dos povos
oprimidos pelo sistema baseado na maximização dos lucros.
Mas
queremos muito mais. Queremos todos os tons do arco-íris! E os queremos muito
além das pautas da diversidade de gênero (também essenciais na busca de uma
sociedade plural) ou mesmo da esfera humana. Somos parte de uma teia de (ainda)
incontáveis tipos de seres viventes, cujas relações complexas nem sempre
vislumbramos, mas que podemos intuir, se observarmos com os olhos bem abertos –
ou bem fechados -, como fazem ancestralmente povos nativos de todas as regiões
planetárias.
Se
sentirmos seu pulsar, mesmo sob camadas de asfalto ou de solos envenenados e
compactados por máquinas agrícolas. Se abrirmos espaço para que nossos pratos
sejam novamente ocupados pelas cores das abóboras, dos milhos crioulos, das
batatas roxas e das juçaras, que repovoaríam, então, as roças campesinas e
indígenas. Se nos negarmos a aceitar o domínio corporativo sobre nossas terras,
mercados e estruturas políticas, e exigirmos Reforma Agrária Popular
Agroecológica e Demarcação de Territórios Indígenas Já!
A luta
não é fácil, mas é o único caminho. Deixar que a ditadura de mercado siga
(des)colorindo artificialmente nossas vidas, seja com suas uniformizações
biotecnológicas ou seja com suas tintas sintéticas tóxicas, é aceitar um futuro
de empobrecimento e sofrimento atrozes, que pode obrigar a nossa Gaia a nos
expulsar da única Casa Comum em que nossas vidas são possíveis. É por isso que
as vozes urbanas, camponesas, florestais, ribeirinhas, pantaneiras, caiçaras e
oriundas de todos os espaços em que a vida ainda vibra precisam se unir em
cantos regenerativos e em gritos de protesto, neste e em todos os meses do ano.
Como diz a Carta Final do Acampamento Terra Livre 2025: “Nossa luta é pela
Vida, pela Mãe Terra, pela Constituição e pelo futuro de toda a humanidade. A
resposta somos nós”.
Viva o
Abril Vermelho Campesino e Indígena! Viva a liberdade multicolorida!
Fonte:
Por Susana Prizendt, em Outras Palavras

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