Violência no campo: dois anos de aumento
recorde
O
Brasil registrou 2.185 conflitos no campo em 2024, o segundo maior índice desde
1985, segundo relatório divulgado nesta quarta-feira (23) pela CPT (Comissão
Pastoral da Terra).
Os
dados integram o “Caderno Conflitos no Campo 2024”. A publicação, que já teve
38 edições, é um dos mais importantes mapeamentos da violência e da resistência
no meio rural brasileiro.
O ano
passado só não foi mais violento do que o de 2023, quando ocorreram 2.250
casos. Na última década, o aumento de conflitos é de 57%.
As
ameaças de morte também aumentaram, segundo a CPT, passando de 219 em 2023 para
272 em 2024 (alta de 24%). Foi o maior patamar dos últimos dez anos.
O
número de tentativas de assassinato, por sua vez, chegou a 103, aumento de 43%
em comparação com o ano anterior, quando ocorreram 72 casos. Em 79% dessas
tentativas, as vítimas foram indígenas. Em 52% das ocorrências, foram
integrantes de povos originários de Mato Grosso do Sul.
Já o
total de assassinatos caiu nos últimos dois anos e atingiu o menor patamar da
década: foram 13 ocorrências em 2024. Em 2022 foram registradas 47 mortes e, em
2023, 31 ocorrências.
O
relatório destaca que a maior parte das mortes do ano passado ocorreu em áreas
de expansão do agronegócio. As principais vítimas foram indígenas, enquanto os
principais responsáveis foram fazendeiros.
“Há uma
disputa entre as comunidades, que lutam pela permanência em seus territórios, e
o capital, que busca se apropriar deles e está representado pelo agronegócio,
pela mineração e por empresas de energia e de petróleo”, explica Cecília Gomes,
da Coordenação Nacional da CPT.
·
Indígenas
e trabalhadores rurais são as maiores vítimas
Os oito
assassinatos em áreas de expansão do agronegócio – chamadas de fronteiras
agrícolas – aconteceram na Amazônia Legal e nas regiões conhecidas como Amacro
e Matopiba. O Amacro abrange um território situado na divisa entre o Amazonas,
Acre e Rondônia. Já o Matopiba se estende por zonas do Maranhão, Tocantins,
Piauí e Bahia.
“Onde
mais se mata povos e comunidades tradicionais é nas fronteiras agrícolas”,
analisa Gomes, destacando que o agronegócio cobiça as áreas de preservação,
porque ali ainda existem bens naturais. “Se tem bens naturais, é porque tem uma
proteção, muitas vezes propiciada pela permanência desses povos e comunidades
tradicionais”, analisa Gomes.
Das 13
vítimas de assassinato em 2024, 5 eram indígenas, seguidos por sem-terra (3),
assentados (2), quilombola (1), pequeno proprietário (1) e posseiro (1).
Segundo a CPT, forças policiais foram executoras ou atuaram em apoio aos
executores em quatro dos casos, todos eles sob responsabilidade de
fazendeiros.
A
indígena Maria de Fátima Muniz, a Nega Pataxó, foi uma das 13 vítimas. Liderança do povo
Pataxó Hã Hã Hãe, ela foi assassinada em 21 de janeiro em uma ação do movimento Invasão Zero, convocada por
produtores rurais para expulsar indígenas que ocupavam uma fazenda no município
de Potiraguá (BA).
Os
sem-terra Edson Silva e Silva e Adão Rodrigues de Sousa foram assassinados em outubro em uma
operação policial na Fazenda Mutamba, em Marabá. A polícia
argumentou que teria sido recebida a tiros quando chegou ao local para cumprir
mandados de prisão preventiva e de busca e apreensão contra ocupantes da
fazenda, que pertence à família Mutran.
Segundo
os integrantes da ocupação, no entanto, eles dormiam quando foram surpreendidos
às 4h da madrugada pelos gritos de “perdeu, perdeu” dos policiais, seguidos de
rajadas de tiros.
Em
abril, Hariel
Paliano, indígena do povo Xokleng, foi encontrado morto às
margens da rodovia que liga os municípios de Doutor Pedrinho e Itaiópolis, em
Santa Catarina. O corpo estava com sinais de espancamento e queimaduras.
O líder
quilombola Raimundo Bertoldo atuava contra loteamentos ilegais e
invasões no quilombo Santa Cruz quando foi morto, em 27 de maio, em
Capinzal do Norte (MA).
Em
abril, Ademi Ferreira Ribeiro, liderança do Assentamento Dorothy Stang, foi assassinado na zona rural de
Rondon do Pará.
Em Nova Olinda (TO), em junho, outro líder de um assentamento, Cícero Rodrigues
de Lima, foi executado.
No
mesmo mês, um brigadista do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis) foi morto por um tiro na porta
de casa,
na ilha do Bananal, em Formoso do Araguaia (TO). Conhecido como Neném, ele
morava na Aldeia Imotxi 2, onde vivem famílias indígenas do povo Javaé.
Em
setembro, o jovem Guarani Kaiowá Neri Ramos foi
morto a tiros durante uma ação da Polícia Militar do Mato Grosso
do Sul no município de Antônio João. Os policiais cumpriam uma decisão judicial
que determinava o acesso dos proprietários da Fazenda Barra à sede do imóvel,
ocupado pelos indígenas.
Em
Gameleiras (MG), Zaqueu Fernandes Balieiro, integrante do MST (Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra) e candidato a vereador, foi encontrado dentro do próprio
carro com marcas de tiros, em 30 de setembro.
Uma
semana depois, João Teixeira de Souza foi assassinado em Nova Mamoré (RO). Ele estava sendo
ameaçado por invasores do seu lote na ocupação da Gleba Seringal Belmont,
segundo moradores da área.
No
município de Amapá, no estado de mesmo nome, o trabalhador rural Antônio
Candeia Oliveira foi executado a tiros em razão de uma discussão a respeito da
posse de um pedaço de terra.
Já em
dezembro, Argemiro da Silva Escalante foi assassinado a facadas na Aldeia
Pirakuá,
município de Bela Vista (MS). Segundo a Aty Guasu – Grande Assembleia do povo
Guarani Kaiowá, o crime teria sido motivado por
intolerância religiosa. A vítima era “guardião da sabedoria ancestral, um
protetor de seu povo e de suas tradições sagradas”, segundo a entidade.
·
Invasão Zero fez ataques em 7 estados e se movimenta no
Congresso
Na
edição divulgada nesta quarta-feira, o “Caderno Conflitos no Campo 2024”
apresenta um levantamento sobre o movimento Invasão Zero, grupo com atuação
semelhante à de milícias armadas, de acordo com movimentos sociais, e que vem
realizando diversas ações ilegais e violentas de “reintegração de posse” em
áreas ocupadas por indígenas e trabalhadores sem-terra.
Segundo
o relatório da CPT, em 2024 ocorreram ataques violentos comprovados e/ou
assumidos como do Invasão Zero nos estados de Goiás, Maranhão, Bahia, Espírito
Santo, Paraná, Pará e Pernambuco. Além disso, aconteceram ações suspeitas de
terem sido articuladas pelo movimento em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Ceará
e Santa Catarina.
A
atuação do grupo na Câmara dos Deputados também foi monitorada. De acordo com o
levantamento, 44% dos projetos de lei ligados ao Invasão Zero apresentados são
da região Centro-Oeste, seguida por Sudeste (22%), Norte (14%), Nordeste (12%)
e Sul (8%).
De
acordo com a CPT, a maior parte das propostas é de autoria dos deputados
federais de Mato Grosso do Sul Marcos Polon (PL) e Rodolfo Nogueira (PL).
Nogueira, autointitulado “o terror do MST”, foi eleito em março deste ano para
a presidência da Comissão de Agricultura da Câmara.
·
Disputas por terra representam 80% dos conflitos no campo
Os
dados do Caderno Conflitos no Campo 2024 mostram ainda que, dos 2.185 conflitos
no campo, 1.768 envolveram disputas por terra, o maior número da última
década.
Entre
as vítimas, 29% eram indígenas, seguidos por posseiros (25%), quilombolas (13%)
e sem-terra (11%). Os fazendeiros aparecem como principais responsáveis das
disputas por terra, com participação em 44% dos casos. Empresários (15%) e
governo federal (8%) figuram em segundo e terceiro, respectivamente.
Os
conflitos pela água, por sua vez, somaram 266 ocorrências, aumento de 16% em
comparação com o ano anterior. Novamente, os indígenas são os maiores atingidos
(27%), com quilombolas (22%), ribeirinhos (11%) e posseiros (10%) vindo logo
atrás. Entre os agentes causadores dos conflitos, destacam-se empresários (24%)
e fazendeiros (22%).
Por fim
foram registrados 151 casos de trabalho escravo, com 1.622 trabalhadores rurais
resgatados. Os números representam queda de 40% nas ocorrências e de 39% no
número de resgatados, em relação a 2023.
O
Sudeste foi a região com o maior número de resgatados, com 938 pessoas
(principalmente nas lavouras de café e cebola). Em seguida, vem o Centro-Oeste,
com 234 (destaque para pecuária e cana-de-açúcar), Nordeste, com 207 (produção
de etanol e mineração), Norte, com 132 (desmatamento ilegal e garimpo) e Sul,
com 111 (cultivo de maçã e lavoura de uva).
·
Agrotóxico como ‘arma química’
Com
relação à forma como ocorrem os conflitos, chamou atenção da CPT a violência
por contaminação de agrotóxico. Foram 276 ocorrências em 2024, contra 32 em
2023, envolvendo tanto conflitos pela terra quanto por água. Essa alta é
explicada pela realização de um levantamento sistematizado sobre o uso
indiscriminado de pesticidas no Maranhão – com 228 casos – e pela
subnotificação nos demais estados.
Conforme
noticiado pela Repórter Brasil em janeiro deste ano, comunidades rurais
maranhenses afirmam que a pulverização de agrotóxicos por
drones está sendo utilizada como instrumento de intimidação e de expulsão de
agricultores familiares.
Do
total de casos de contaminação, 214 casos (94%) correspondem a esse tipo de
aplicação. As denúncias, porém, não são investigadas, segundo advogados que
acompanham os casos.
Cecília
Gomes, da CPT, concorda que a contaminação por pesticidas é utilizada como uma
das ferramentas “mais cruéis” de expulsão de comunidades do campo. “É um banho
de agrotóxico, lançado por um drone que você não sabe de onde vem nem para onde
vai, mas que que destrói vidas, comunidades, povos, territórios”, diz.
“É uma
forma silenciosa de violência e expulsão, que chamamos de arma química. É uma
maneira de expulsar sem ter um mandante, sem ter algo ou alguém que você possa
responsabilizar”, completa.
¨
“Os direitos individuais e coletivos dos povos indígenas
são inegociáveis”, diz António Guterres na ONU
O secretário-geral da ONU António Guterres
declarou nesta segunda-feira (21), durante a abertura da 24ª Sessão do
Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas (UNPFII), que “os
direitos individuais e coletivos dos povos indígenas são inegociáveis. Nem
hoje, nem nunca”.
A fala de Guterres, no contexto do Estado
brasileiro, se soma a cinco relatorias da ONU que no ano passado e neste
ano se posicionaram de forma contrária ao marco temporal e com ressalvas à
Câmara de Conciliação aberta pelo ministro Gilmar Mendes.
Nela se negocia adequações à Lei 14701/23, a
Lei do Marco Temporal, inconvenientes aos povos indígenas, obliterando o que o
STF definiu em 2023: o marco temporal é inconstitucional.
Em agosto do ano passado, a Articulação dos
Povos Indígenas (Apib) se retirou da conciliação. A entidade entendeu que
os direitos dos indígenas são inegociáveis e não há paridade no debate. Ao
mesmo tempo, a Lei do Marco Temporal sequer foi suspensa pelo ministro e sua
vigência tem promovido violações de direitos humanos e territoriais.
A vigência da Lei do Marco Temporal e a
negociação de direitos indígenas no âmbito do STF, somada à insuficiente
regularização de terras indígenas pelo governo federal, têm colocado o Estado
brasileiro em uma posição delicada diante de suas obrigações com a Declaração
das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
<><> Declaração das Nações
Unidas: um chamado urgente
O tema desta sessão é a “Implementação da
Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (UNDRIP, na
sigla em inglês) nos Estados-Membros das Nações Unidas e no sistema das Nações
Unidas, incluindo a identificação de boas práticas e a abordagem de desafios”.
Guterres lembrou ainda que a Declaração das
Nações Unidas é resultado do multilateralismo, que, em termos de relações
internacionais, refere-se à cooperação entre países para alcançar objetivos
comuns, geralmente através de organizações internacionais ou acordos.
No entendimento do secretário-geral da ONU,
houve avanços com relação à implementação da UNDRIP entre os Estados-membros.
Ocorre que para Guterres é preciso “mais participação dos povos indígenas nas
Nações Unidas. Este período se centra na aplicação da Declaração Universal. É
um chamamento urgente à ação”.
No pronunciamento, o secretário-geral da ONU
reforçou o protagonismo das mulheres indígenas na defesa dos direitos dos
povos: “as mulheres indígenas precisam ter a participação política garantida
(…) temos de garantir o acesso a direitos e meios de vida”.
“Os povos indígenas do mundo são
magnificamente diversos em termos de culturas, idiomas, histórias e tradições,
mas unidos por características e desafios comuns. Vocês são os principais
protetores da biodiversidade e do meio ambiente do mundo. Seus conhecimentos e
práticas tradicionais são modelos líderes de conservação e uso sustentável,
refletindo seu compromisso de viver em harmonia com a Mãe Terra e com o
bem-estar e os direitos das gerações futuras”, António Guterres,
secretário-geral da ONU, durante abertura do Fórum Permanente
<<> Financiar a defesa do meio
ambiente
Para Guterres, os povos indígenas estão à
frente do combate às mudanças climáticas. “São os principais defensores do meio
ambiente em compromisso com a harmonia entre os seres humanos e a terra. O
mundo precisa aprender com a sabedoria dos povos originários para fazer frente
aos desafios que existem”, disse.
“Os povos indígenas estão na linha de frente
da mudança climática, da poluição e da perda de biodiversidade”, frisou
Guterres, “apesar de não terem feito nada para criar essas crises e tudo para
tentar impedi-las”.
Para ele, em vista do papel desempenhado
pelos povos originários, é necessário ampliar as fontes de financiamento de
projetos relacionados a essa defesa realizada nas aldeias. Sobretudo diante das
demandas de cadeias produtivas em novo contexto de exploração econômica.
O secretário-geral reforçou que o assédio às
terras e aos territórios indígenas ganhou novos contornos com a transição
energética e a corrida aos minerais críticos. “Instamos os países e empresas a
colaborar conosco sobre as recomendações do Painel sobre Minerais Críticos (…)
A participação dos indígenas é essencial”, declarou.
Guterres afirmou que é preciso reforçar o
Fórum Permanente “em um alto nível de participação (…) governos precisam estar
atentos ao que afeta os indígenas e em cumprir suas obrigações de implementação
da Declaração das Nações Unidas”.
¨
ONU alerta para os
perigos da mineração em Terras Indígenas
Cerca
de mil lideranças indígenas de diversas etnias se reuniram nesta 2ª (21/4) na
sede da ONU na cidade norte-americana de Nova York para a 24ª edição do Fórum
Permanente sobre Questões Indígenas, o maior evento global do gênero. Na
abertura, o secretário-geral António Guterres fez um alerta sobre as
múltiplas e devastadoras consequências da mineração em territórios indígenas ao
redor do mundo.
O líder
português citou o Brasil como exemplo dramático por conta da contaminação por
mercúrio decorrente da mineração ilegal que envenena rios como o Tapajós na
Amazônia – que se agravou 625% no Brasil entre 2011 e 2021. Guterres destacou
ainda o paradoxo cruel da transição energética, já que os minerais essenciais
para as chamadas tecnologias verdes estão justamente em territórios indígenas,
o que gera uma nova onda de violações de direitos.
Esses
Povos sofrem os impactos das mudanças climáticas, da poluição e da perda de
biodiversidade, embora sejam os que menos contribuem para essas crises. Por
isso, Guterres afirmou que o mundo tem muito a aprender com a sabedoria e
abordagens desses grupos, que “priorizam a saúde dos ecossistemas em detrimento
de ganhos econômicos de curto prazo”.
O
secretário-geral propôs quatro ações urgentes: fortalecer o Fórum Permanente,
reconhecer direitos ancestrais, ampliar financiamentos e implementar
recomendações sobre mineração sustentável. Ele enalteceu o conhecimento
tradicional indígena como modelo de conservação – esses Povos, que representam
apenas 6% da população global, protegem 80% da biodiversidade do planeta. O
evento, que segue até 3 de maio, debaterá temas como segurança alimentar,
direitos territoriais e participação política das Comunidades Originárias.
Para as
organizações indígenas brasileiras representadas no Fórum, como o Conselho Indigenista
Missionário (CIMI),
a fala de Gutierres fortalece a luta contra o marco temporal, já corroborada em
cinco relatorias da ONU nos últimos anos. O posicionamento é contrário traz
ressalvas à Câmara de Conciliação aberta pelo ministro Gilmar Mendes, onde
estão sendo negociadas adequações à Lei 14701/23. A intenção, afirmam os
indígenas, é obscurecer a inconstitucionalidade já definida pelo STF em
2023.
Fonte:
Por Igor Ojeda, na Repórter Brasil/Cimi

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