Perguntas
na fila do banheiro feminino
Em
2016, mais de 55 anos depois da inauguração do Congresso Nacional em Brasília,
foi instalado um banheiro feminino no plenário do Senado. Antes disso, as
senadoras tinham que se deslocar para fora do plenário para usar o banheiro de
um restaurante próximo. Na época, gerou-se uma discussão sobre como isso
mostrava que os locais de decisão política não estavam preparados para mulheres
e eram pensados para e pelos homens. Isso é inegável e mostra como um
mobiliário como o banheiro pode nos ajudar a compreender a exclusão de certos
grupos em determinados espaços, inclusive espaços de decisão.
Uma vez
que os campos da engenharia, arquitetura e planejamento urbano permanecem
dominados por homens, influenciando todas as áreas de construção da cidade
(Monteiro, 2021), não há equidade na distribuição de banheiros para homens e
mulheres, no máximo igualdade – isso quando eles são construídos. No período
das reconstruções urbanas do século XX, mulheres de cidades como Londres,
Dublin e Chicago lutaram pela oferta desses serviços nos espaços públicos pois
acreditavam que esses mobiliários trariam saúde individual e coletiva, além de
gerarem mais conforto na vida urbana (Greed, 1995; Flanagan, 2014). No entanto,
para tomadores de decisão, colocar banheiros nos espaços públicos incentivaria
as mulheres a terem acesso a esses e outros espaços, algo que temiam causar
desordem social (Meller, 2007).
Mas
você pode estar se perguntando: por que a pauta do banheiro público vale um
artigo, uma pesquisa, uma luta?
O
banheiro é uma necessidade básica, um direito humano (inserido no âmbito do
direito à água e saneamento, reconhecido pela Organização das Nações Unidas em
2010 [Heller, 2019]) . Seja no contexto domiciliar, no trabalho ou nas ruas,
todas as pessoas precisam de um banheiro para satisfazer suas necessidades
fisiológicas e, mais além, é um mobiliário que atua na promoção da higiene e da
saúde. Mas imagine você ir trabalhar e não ter um banheiro próximo? Imagine ser
uma senadora e ter que sair do plenário, perder parte das discussões, para ir
ao banheiro? Ou pior, segurar a vontade de ir ao banheiro – e a longo prazo
correr o risco de desenvolver problemas no trato urinário? Essa situação se
alterou no Senado há poucos anos, e na vida cotidiana da população os desafios
persistem. Ainda são muitas as mulheres – e também homens – que sofrem com a
falta de banheiros em esferas da vida além do domicílio.
Antes
de continuar, é importante dizer que esse texto não pretende entrar no mérito
se a melhor solução é a construção de banheiros separados por sexo ou a
disponibilização de banheiros sem gênero/unissex. Essa discussão tem sido
desenvolvida por pesquisadores, militantes e especialistas de estudos de
gênero, que trazem argumentos relevantes para o uso de ambas as alternativas
(Moreira et al., 2021). Dessa forma, esse texto é desenvolvido em torno da
existência de uma necessidade básica humana, que demanda a existência de
instalações sanitárias nos espaços de uso comum, em qualidade e quantidade.
Catadores
e catadoras de materiais recicláveis, camelôs, ambulantes, pessoas em situação
de rua, feirantes, motoristas de aplicativo, entregadores e entregadoras, entre
outros trabalhadores que passam a maior parte de seu tempo pelas ruas das
cidades, são grupos que raramente têm acesso a banheiros. A maior parte das
pessoas que compõem esses grupos fazem parte da “pobreza urbana”, representada
principalmente por pessoas não brancas. Dito isso, a falta de banheiros nos
espaços públicos contribuiu para a reprodução das desigualdades sociais
existentes, uma vez que, como consequência da falta de banheiros, essas pessoas
podem ter sua saúde, trabalho e, consequentemente, sua renda afetados.
O
acesso a banheiros está relacionado com diversos direitos, como o direito a uma
vida digna e o direito ao trabalho. Em casos de pessoas em situação de rua,
essa violação está vinculada também ao direito à moradia. Mas não precisamos
trabalhar ou morar na rua para sofrer a violação do direito ao banheiro. Quem
nunca pensou em evitar beber água antes de sair de casa porque na rua não tem
aonde ir ao banheiro, ou consumiu em uma lanchonete para pedir para usar o
banheiro do lojista? Além da esfera do trabalho, a vida social e cultural nas
cidades também é impactada, limitando o acesso ao lazer e o desfrute dos
espaços públicos pela população.
Mas
afinal, por que as mulheres são as mais afetadas? As necessidades biológicas
das mulheres em relação aos sanitários são diferentes das dos homens,
principalmente durante a gravidez (quando a micção é mais frequente) e durante
a menstruação – que também são questões importantes para outros corpos que
menstruam e engravidam além da mulher cis (Greed, 2016). Além disso, mães que
estão com seus filhos e filhas nos espaços públicos também sofrem com a
ausência de banheiros ou com o mau planejamento e/ou má gestão desse
mobiliário. Na falta de banheiros públicos, recorremos a alternativas privadas
ou “seguramos a vontade”.
Há
também inconvenientes relacionados à limpeza e conservação. Para urinar, as
mulheres devem sentar na bacia sanitária. Pelo fato de banheiros coletivos
estarem frequentemente sujos, nos agachamos ou corremos o risco de nos
contaminar. No segundo caso, no entanto, há diversos mitos disseminados como a
contaminação por doenças sexuais (gonorreia, HIV, etc) no uso do banheiro
público. É importante reiterar que já é há muito comprovado que isso não
acontece (Moreira et al, 2021). As questões de higiene, no entanto, são um
aspecto conflitante no uso de banheiros públicos já que o banheiro é um espaço
potencial de proliferação e disseminação de doenças infectocontagiosas como
diarreias e disenterias (Moreira et al, 2021). E daí quando seguramos a vontade
de urinar porque não queremos nos “contaminar” usando um banheiro, estamos
também favorecendo o desenvolvimento de uma infecção urinária ou a doenças do
trato urinário inferior (Moreira, 2021).
Essa é
uma questão, como dito antes, não só das mulheres. Entretanto, os homens têm
maior facilidade em encontrar alternativas e muitos vão mesmo atrás de uma
árvore ou em qualquer esquina (Moreira, 2021). Além disso, outras camadas de
vulnerabilidade podem potencializar a violação do direito ao uso de espaços
públicos por grupos como pessoas que usam cadeira de rodas ou possuem alguma
outra deficiência, pessoas idosas, crianças e pessoas transgênero.
Das
filas intermináveis para usar um banheiro a questões de segurança, higiene e
privacidade, são muitos os fatores inconvenientes na atual provisão de
banheiros públicos (isso quando eles existem). Na inexistência de alternativas,
as mulheres seguem sendo as mais prejudicadas, desde limitações nos espaços de
trabalho, ou na fruição de espaços públicos e coletivos nas cidades. Porém, a
disponibilização de banheiros públicos não é tarefa simples, por si só, uma vez
que o uso desses mobiliários deve proporcionar segurança física, qualidade,
acessibilidade física e econômica. Mulheres e pessoas transgêneros são mais
vulneráveis quando os banheiros públicos não possuem segurança adequada
(Heller, 2019).
Por
isso, a luta pelo banheiro público de qualidade também é uma pauta sobre os
direitos das mulheres. Queremos estar em espaços sem nos preocuparmos em ir
embora ou em pensar na opção menos pior para nossas necessidades básicas e
nossa saúde. O banheiro público, assim, representa mais que uma comodidade,
simboliza como atender nosso direito de ir, vir e estar usufruindo dos espaços
públicos e coletivos. O importante – embora absurdamente atrasado – passo dado
no Senado, relativamente recente, nos diz sobre as barreiras ainda a serem
superadas. A luta deve continuar. Afinal, nossas necessidades básicas são
inegociáveis.
Fonte:
por Fernanda Deister Moreira e Laura Magalhães Rocha e Silva

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