Grande
sertão, sem veredas: ‘aço verde’ que brilha na Europa seca o Jequitinhonha
AOS 85
ANOS, João Gomes de Azevedo lembra do tempo em que as águas corriam fartas pelo
Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Havia peixes no
rio, o gado pastava livre pelas veredas e a terra dava mandioca, milho e feijão
em abundância.
Hoje,
ele olha para o chão seco ao redor de sua casa, na comunidade de Poço d’Água,
em Turmalina (MG), e vê apenas poeira. “A água foi embora. E a gente foi
ficando para trás”, lamenta. Diante da secura, o nome do povoado, distante 500
quilômetros de Belo Horizonte, tornou-se uma ironia.
Enquanto
Seu João luta para encontrar água, na fazenda vizinha
crescem florestas de eucalipto a perder de vista. A dona das terras é a Aperam,
a maior produtora de aço inox da América Latina. A
empresa ostenta certificados de boas práticas ambientais, ao produzir aço com
carvão vegetal de “florestas renováveis”, como ela nomeia o cultivo.
Quem
discorda chama de “deserto verde”, pois as fazendas de eucalipto estão secando
o solo, conforme relatam moradores de comunidades tradicionais e quilombolas.
As denúncias são respaldadas por pesquisas científicas e levaram a uma revisão
do selo de sustentabilidade da Aperam – o que pode virar um problema para os
negócios da gigante europeia.
“Os
eucaliptos secaram as nascentes. O que antes dava para plantar, agora virou
terra morta”, conta João Batista, agricultor de Veredinha, município vizinho a
Turmalina. Ao redor da casa dele, estendem-se plantações com árvores de 20
metros de altura.
A
Aperam tem 124 mil hectares no Vale do Jequitinhonha, sendo 76 mil de
eucalipto, uma área plantada equivalente à soma dos territórios de Porto Alegre
(RS) e Belo Horizonte (MG). A maior parte dessas terras foi repassada na década
de 1970 durante a ditadura militar para uma estatal, a Acesita. Nos anos 1990,
a companhia foi privatizada e comprada pelo grupo ArcelorMittal, maior
acionista da Aperam.
Os
militares consideravam as terras devolutas (sem uso) e desejavam desenvolver a
região. Com isso, as chapadas que antes eram de uso comum, onde as comunidades
criavam o gado solto, foram destinadas à monocultura de eucalipto.
A
madeira obtida é queimada para produção de carvão vegetal, que abastece os
altos-fornos da siderúrgica em Timóteo (MG), no Vale do Aço. A operação também
possibilita a venda de créditos de carbono na Nasdaq (EUA), o segundo maior
mercado de ações do mundo, a partir da produção do biochar – um subproduto do
eucalipto capaz de sequestrar dióxido de carbono (CO2) da atmosfera.
A
Aperam nega ser responsável pela escassez hídrica e diz que os eucaliptos consomem a
mesma quantidade de água das árvores nativas. Porém, estudos demonstraram os
impactos da floresta comercial.
Um
grupo de pesquisadores da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e do
IFNMG (Instituto Federal do Norte de Minas Gerais) estimou o balanço hídrico da
chamada “Chapada das Veredas”, localizada no Alto Jequitinhonha.
A
substituição da vegetação nativa pelo eucalipto reduziu a recarga dos lençóis
freáticos em 31 milhões de metros cúbicos de água por ano, segundo o estudo.
Notou-se ainda que o nível da água subterrânea baixou cerca de 4,5 metros em 45
anos, segundo o pesquisador Vico Mendez Pereira Lima, do IFNMG. “O problema não
é a falta de chuva. O volume de precipitação na região praticamente não mudou
nos últimos 70 anos. O que mudou foi o uso da terra”, explica.
Originário
da Austrália, o eucalipto cresce rapidamente e, além de ser usado na produção
de carvão vegetal e biochar, é matéria-prima para a indústria de papel e
celulose. “As plantações podem parecer belas florestas verdes, mas,
ecologicamente, são como desertos”, afirma Daniel Montesinos, pesquisador da
Universidade James Cook, na Austrália. Ele classifica a espécie como “altamente
prejudicial” à biodiversidade, pois grandes áreas plantadas criam um ambiente
hostil para a fauna e a flora locais.
Na
Chapada das Veredas, os pesquisadores estimam que mais de 60% da área estejam
cobertas por eucalipto. Eles destacam também grande impacto nas veredas – áreas
úmidas das chapadas que recarregam os lençóis freáticos e estabilizam o fluxo
dos rios. Com os ciclos naturais de água interrompidos, no entanto, várias
nascentes da região secaram.
Os
moradores defendem a retirada das plantações de eucalipto das encostas das
veredas, onde as nascentes se formavam. “Se plantarmos árvores nativas lá, a
água pode voltar. Esse é o único recurso que temos”, afirma Salete Cordeiro,
presidente da Associação de Mulheres Agricultoras do Córrego da Lagoa e Beira
do Fanado, comunidades reconhecidas como quilombolas.
Enquanto
isso não acontece, Salete usa água de um poço artesiano que vem da casa da
irmã. Muitas outras famílias, porém, tiveram de abandonar a agricultura e
migraram para a cidade. As que permaneceram passaram a depender de cisternas
comunitárias e caminhões-pipa.
“É
muito injusto. Nossa família não pode mais viver junta porque aqui não há
condições. Temos terra, mas sem água não conseguimos plantar nem criar nossos
animais”
Salete
Cordeiro, presidente da associação de mulheres agricultoras
- Certificação ambiental sob
questionamento
Os
impactos socioambientais colocaram a certificação da Aperam sob escrutínio. O
selo FSC (Forest Stewardship Council), que atesta boas práticas florestais,
está em revisão por uma auditoria internacional após denúncia do CAV (Centro de
Agricultura Alternativa Vicente Nica), ONG que reúne agricultores da região
desde 1994.
A
partir do questionamento, a ASI (Assurance Services International) –
responsável pela fiscalização do selo – identificou falhas no processo. Um
relatório da entidade afirma que a Aperam não comprovou que suas plantações não
afetam a disponibilidade de água. O documento também sustenta que comunidades
quilombolas da região não foram consultadas.
Depois
da publicação do relatório, a certificadora inicial da operação foi afastada e
o Imaflora assumiu a reavaliação. O novo certificador deve apresentar um plano
de ação corretivo, além de evidências de sua implementação antes do fim do
segundo trimestre de 2025, explica a ASI.
Se a
Aperam não comprovar a sustentabilidade, a companhia pode perder o selo FSC.
Isso pode dificultar suas exportações de aço para a Europa, onde as exigências
ambientais são cada vez mais rigorosas.
Em nota
enviada à Repórter Brasil, a Aperam diz que a ligação entre escassez
hídrica e plantações de eucalipto foi descartada por diferentes pesquisas,
como estudos da Embrapa e de uma
revista jurídica da UFMG. “O eucalipto, quando gerenciado de forma responsável,
não esgota os recursos hídricos. Pelo contrário, ele pode contribuir para a
manutenção do equilíbrio hidrológico e para a proteção do solo contra a
erosão”, diz a nota.
Na
resposta de 12 páginas, a Aperam enfatiza que tem compromisso com a
sustentabilidade na produção de aço, destacando a utilização de energia
renovável e a preservação de 50 mil hectares de vegetação nativa. A empresa
ressalta seu engajamento com as comunidades por meio de diversos programas e
alega adotar medidas de mitigação de impactos, como reservatórios de coleta de
chuva, e priorizar o plantio em períodos chuvosos.
“Enquanto
viola um direito humano fundamental, que é o acesso à água, a empresa continua
se promovendo como modelo sustentável. Isso é um selo de fachada”, critica o
coordenador do CAV, Valmir Soares de Macedo. Na avaliação dele, a movimentação
da Aperam é um exemplo de greenwashing (ou “lavagem verde”,
expressão usada para denunciar operações falsamente sustentáveis).
Macedo,
contudo, tem pouca esperança de uma mudança significativa: “Mal fomos
envolvidos nas discussões. Esses relacionamentos são, antes de tudo,
comerciais. A empresa paga para obter as certificações que deseja e depois as
usa para promover seus produtos”, opina.
- ‘Ouro negro’ vai para Canadá, Suíça e
Suécia
A
revisão do selo de sustentabilidade tem grande potencial de impactos nos
negócios da companhia. Isso porque, além de buscar o selo para tornar seu aço
“verde” e palatável ao mercado europeu, a filial da Aperam no Brasil vendeu
créditos de carbono associados ao biochar.
De
aparência semelhante à terra preta, esse subproduto do eucalipto sequestra
dióxido de carbono (CO2) da atmosfera e melhora a qualidade do solo, segundo a
Aperam. Chamado internamente de “ouro negro”, o biochar rendeu R$
40 milhões à companhia em um ano.
A
primeira venda de créditos de carbono foi para a canadense Invert Inc., seguida
pela Nasdaq, que adquiriu mais de 7 mil toneladas em 2024 para compensar suas
próprias emissões. Outras empresas também adquiriram esses créditos, como o
grupo financeiro sueco Skandinaviska Enskilda Banken AB, a consultoria Bain
& Company, e o banco suíço Banque Pictet também compraram os créditos. As
negociações ocorreram no marketplace Puro.earth, controlado pela Nasdaq.
Em seu
relatório de sustentabilidade, a Nasdaq destaca que o biochar ajuda a melhorar
as propriedades do solo e a retenção de água, e que o projeto da Aperam apoia
programas de desenvolvimento social para agricultores locais.
O selo
de sustentabilidade é importante também para a Aperam se adequar à Regulação
Europeia de Remoções de Carbono. Aprovada em fevereiro de 2024, ela exige que
créditos de carbono sejam concedidos apenas a empresas que comprovem não
prejudicar a biodiversidade nem os recursos hídricos.
A
eventual perda de certificação pode afetar outros interesses na Europa. A
Aperam solicitou isenção de um imposto que taxa produtos com base nas emissões
de CO2. Se aceita, a isenção concedida pelo Mecanismo de Ajuste de Carbono na
Fronteira reduziria as tarifas ambientais sobre seu aço na Europa, tornando-o
mais competitivo.
- Histórico de conflitos fundiários
A
história da Aperam no Vale do Jequitinhonha remonta aos anos 1970, quando a
siderúrgica Acesita, então estatal, recebeu terras da União e do governo
mineiro para desenvolver a produção de aço com carvão vegetal. Com o tempo, a
vegetação nativa do Cerrado, essencial para a regulação hídrica da região, foi
gradativamente substituída por monoculturas de eucalipto.
Em
1992, a Acesita foi privatizada e, em 2002, comprada pela ArcelorMittal, a
segunda maior produtora mundial de aço. Em 2011, a multinacional desmembrou sua
divisão de aço inoxidável e criou a Aperam, hoje uma das maiores siderúrgicas
da Europa, com cinco fábricas no continente e uma no Brasil, em Timóteo (MG).
Antes
da chegada da empresa, as terras eram utilizadas comunitariamente por pequenos
agricultores. “Originalmente, essa terra era para as pessoas, para
alimentá-las, para permitir que vivessem com suas famílias. A natureza não é
apenas um campo de produção”, recorda Valmir Macedo, diretor do CAV.
A
empresa enfrenta há anos na Justiça diversos questionamentos sobre a posse das
terras. Moradores afirmam que nunca assinaram documentos cedendo os
territórios.
A
Aperam nega as alegações de expropriação de terras, afirmando que a aquisição
pela Acesita na década de 1970 foi legal e autorizada pelas leis da época. A
empresa sustenta que as terras eram originalmente do estado de Minas Gerais e
estavam ocupadas ilegalmente. A empresa contesta a existência de expropriações
generalizadas, mencionando apenas disputas isoladas.
“Era
tudo do povo. Dependíamos da chapada para criar gado, colher frutos como pequi
e jaca, e buscar ervas medicinais”, recorda João Batista da Silva. “Hoje, tudo
isso acabou”, lamenta.
Mais
velho, João Gomes de Azevedo corrobora: “A água corria por valetas que fazíamos
no chão, e assim chegava até as casas. Com o tempo, isso foi mudando. Quando a
empresa chegou, a água ainda resistiu por um tempo, mas foi diminuindo até
secar.”
A
história inspirou João a compor uma música, espécie de trova, em que narra a
saga de quem resistiu na região e convive com a natureza se esvaindo e a água
rareando nas chapadas e veredas.
Fonte:
Repórter Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário