Do
‘ópio do povo’ ao ódio do povo: crise da seleção expõe autoritarismo na CBF
A
paixão nacional pelo futebol não pode ser encarada com ingenuidade – a relação
é passional, mas passa longe de parecer um carinho inocente. A história extrai
do esporte um estranho fator de mobilização para o ódio espalhado pela
sociedade.
Essas
pressões, difusas, fazem com que mudanças se precipitem, a exemplo da recente
decisão de tirar Dorival Júnior do cargo de treinador da seleção masculina. Em
2025, a instabilidade coincidiu com a reeleição de Ednaldo Rodrigues como
presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF).
Um ano
antes da Copa do Mundo na América do Norte, a CBF se esgarça publicamente. Do
ponto de vista administrativo, o pornográfico aumento dos salários dos
presidentes das federações estaduais e os recursos gastos para viagens de
aliados, denunciados em reportagem da piauí, deixam em evidência a falta de
democracia na entidade.
Esportivamente,
as derrotas e o afastamento dos torcedores, com ingressos caros e jogos
sediados fora do país, despertam um desgosto impreciso, disperso na cultura
popular. E suscitam reações.
Ainda é
comum encontrar quem o associe com a alienação, mas o esporte não esteve imune
aos conflitos na sociedade, e uma desconfortável constância reforça isso.
Quando o calendário se mostra apertado, os dirigentes escancaram os alicerces
monstruosos do futebol no Brasil: demitem técnicos, simulam mais atenção a
apelos populares e fazem reformulações na seleção.
A
pressa poderia expor apenas a falta de planejamento – comprovada, sem dúvidas,
pelas hesitações dos gestores. Mas, em pelo menos outras duas oportunidades no
passado, as trocas tumultuadas no comando da seleção ajudam a explicar as
disputas políticas: uma no fim da década de 1960 e outra no início dos anos
2000.
Esses
episódios ocorreram em períodos críticos, seja pelo autoritarismo e consequente
supressão das garantias básicas, seja através do desmonte do estado após a
concessão de empresas públicas à iniciativa privada. Em ambos, os confrontos no
legislativo, no executivo e nas ruas sutilmente se correlacionaram com a rotina
nos vestiários, campos de jogo e, principalmente, à beira dos gramados.
A
preparação para a Copa do Mundo de 1970 é ilustrativa. A edição anterior do
torneio, em 1966, havia sido a chance de um tricampeonato consecutivo, até hoje
inédito. Era, ainda, a primeira Copa da ditadura no Brasil – há relatos de que
as autoridades tentaram tirar proveito da popularidade daquela equipe, cuja
preparação foi caótica. O desempenho frustrou as expectativas com a eliminação
prematura na primeira fase.
Embora
o período autoritário já estivesse em vigor, a escalada da violência foi
disparada logo depois, em 1968, com o Ato Institucional Nº 5, o brutal AI-5. A
medida determinou, por exemplo, o fim do habeas corpus e a brutalidade da
repressão. Então, a insatisfação não poderia mais se manifestar nas formas
convencionais da política – de toda maneira, suprimidas.
Não é
exagero imaginar que a irritação tenha respingado no principal símbolo de
sucesso do país no exterior. Afinal, o bicampeonato em 1958 e 1962 arrancou
suspiros mundo afora. Sob essa paisagem trêmula, surpreendentemente, o popular
comentarista esportivo João Saldanha assumiu como técnico da seleção em 1969.
• Um técnico ‘inconveniente’ às vésperas
da Copa
Começaram
a vir a público, em ano de véspera de Copa do Mundo, as fortes ligações de
Saldanha com o Partido Comunista Brasileiro, perseguido à época; brigas
públicas com outros profissionais do futebol; e até desentendimentos com Pelé.
Com as
sucessivas crises e a repercussão na cobertura especializada, a demissão de
Saldanha foi anunciada meses antes da competição. Quem levantou o troféu do
terceiro título brasileiro foi Mario Jorge Lobo Zagallo, outro treinador –
acompanhado de uma equipe técnica fortemente militarizada.
A
vinculação com o governo era direta. A então Confederação Brasileira de
Desportos, CBD, responsável por administrar o futebol, estava atrelada ao
Conselho Nacional de Desportos – um colegiado no interior do Estado.
Foi só
a partir do fim dos anos 1970 que a modalidade se tornou gradualmente mais
privada. A criação da CBF, uma instituição particular, exemplifica esse
processo. Passou a ser comum a crítica à mercantilização de clubes e
profissionais, sob a alegação do abandono dos antigos valores do esporte.
O
futebol, contudo, continuou a despertar reações acaloradas. Principalmente,
porque permaneceu entre as tradições populares a sensação de pertencer ao
Brasil por meio daquele histórico time multicampeão.
Daí a
ambiguidade: a seleção evoca a brasilidade da população e, simultaneamente, ao
estar sob controle privado obedece a orientações excludentes – que a afastam do
povo. Esses dilemas, presentes inclusive em bate-papos cotidianos, ganham
tamanha proporção que resvalam na ordem dos trabalhos em Brasília, em especial
a partir dos anos 1990, diante da agressividade do embate entre público e
particular.
• Derrota para a França, CPI e nova crise
A
década de 1990 foi definitiva para as privatizações de empresas estatais e não
é exagero identificar ali o ponto de partida para a perda de direitos que
alcança, no século XXI, os extremos da uberização. É possível notar
consequências pouco perceptíveis no desconforto com as mudanças e suas
implicações para o futebol.
A
revolta com a decisão da Copa do Mundo de 1998, em que o time brasileiro levou
3 a 0 dos franceses, e as infundadas acusações de que a seleção havia sido
sabotada são dois exemplos disso. A circulação das suspeitas de conspiração
entre gente comum reforça essa resistência à natureza meramente comercial do
futebol.
Foi
estabelecida nesse clima até uma Comissão Parlamentar de Inquérito, CPI, em
2000 para investigar a promiscuidade da modalidade com as empresas que o
financiam, rebatizada pelos jornais de CPI da Nike. Esporte nacional, lucro
global: o futebol entrava, mais do que nunca, na mira dos megainvestidores
internacionais.
Com o
aumento do montante em circulação, as suspeitas recaíam sobre empresários,
dirigentes e treinadores de futebol. Até
o atacante Ronaldo foi questionado a respeito da influência da patrocinadora e
até sobre sua escalação na final da Copa de 1998.
Assim,
somadas aos insucessos esportivos, as consecutivas alterações na equipe técnica
conduziram Luiz Felipe Scolari ao cargo de treinador no ano que antecedeu o
mundial da Coreia do Sul e do Japão – onde o Brasil conquistou o
pentacampeonato, em 2002.
A
despeito de ser chamado de ópio do povo por supostamente inebriar a população e
apartá-la dos problemas sociais, o futebol parece condensar descontentamentos
no Brasil.
Na
crise atual da CBF se empilham questões históricas como o autoritarismo,
representado por eleições com candidatos únicos e sem oposição nas urnas desde
1989, e pelo avanço de um restritivo poder privado, capaz de pagar viagens a
familiares de um parlamentar aliado para conservar boas relações com as
federações.
Há,
também, insatisfações disformes, que ressoam em gritos de torcida, mas
ultrapassam o próprio esporte.
Fonte:
Helcio Herbert Neto, em The Intercept
Nenhum comentário:
Postar um comentário