sexta-feira, 11 de abril de 2025

O fim da globalização como a conhecemos

“A inveja do mundo”. Era assim que Simon Rabinovitch e Henry Curr, editores da publicação inglesa The Economist, descreveram o estado da economia dos Estados Unidos em outubro do ano passado. Na série de sete artigos, os jornalistas tecem loas à pujança econômica estadunidense. Afinal, a economia crescia quase 3% em 2024. No agregado, o PIB do país nunca tinha sido tão alto, deixando para trás a retração da pandemia. O trabalhador norte-americano seguia sendo o mais produtivo do mundo e a concentração crescente de riqueza, argumentavam, era apenas o preço a ser pago por uma economia vigorosa.

O crescimento foi possível tendo em vista a revolução energética do petróleo de xisto, cuja extração foi permitida por tecnologia nova, o fracking. Os combustíveis fósseis extraídos por fraturação hidráulica de rochas profundas trouxeram aos Estados Unidos a soberania energética que permitiu o deslanche econômico. A soberania do dólar e de Wall Street nas finanças internacionais permanecia inconteste frente ao yuan e ao mercado acionário chineses. Apenas obstáculos internos poderiam atravancar a situação econômica norte-americana. Apesar de encontrarem problemas no plano econômico de Kamala Harris, Rabinovitch e Curr viam mais defeitos no de Trump.

Para o dissabor dos editores do Economist, cujos textos foram tirados do ar, o resultado da eleição de novembro daquele ano implicou um cavalo de pau na política econômica de Washington. À frente de uma coalizão eleitoral que incluía amplas parcelas da população do Cinturão da Ferrugem, área cujo setor industrial foi dizimado com o processo de globalização e acirramento da competição comercial nos anos 1990, Donald J. Trump foi alçado pela segunda vez à presidência.

Os empresários e plutocratas que compareceram à posse de Trump na Rotunda do Capitólio em fevereiro deste ano não pareciam estar contentes com a situação econômica deixada por Biden. Talvez na esperança de serem poupados de medidas econômicas nefastas, puseram-se a bajular Trump com doações recordes ao fundo que financiara a cerimônia de posse. Custava US$ 1 milhão sentar-se à frente até mesmo dos membros do gabinete que seriam logo empossados, preço prontamente pago por figuras como Elon Musk, Jeff Bezos e Mark Zuckerberg.

Se Musk já colhia os resultados negativos de imiscuir-se nos mais altos níveis da política do país com o boicote à Tesla, agora foi a vez não só de Bezos, Zuckerberg e diversos outros, mas de todo o mercado pagar o preço de alçar Trump a uma nova presidência. O anúncio de um tarifaço global sem precedentes nos últimos cem anos, a que o governo Trump batizou “Dia da Libertação”, levou o mercado financeiro ao colapso. O S&P500, índice composto de quinhentos ativos negociados nas bolsas de Nova York (NYSE e NASDAQ), perdeu US$ 2 trilhões em capitalização em 20 minutos, principalmente concentrados nos setores têxteis e de tecnologia, dependentes de cadeias de valor internacionais.

Michael Feroli, do JP Morgan, estima que as tarifas podem sobretaxar os consumidores norte-americanos em quase US$ 400 bilhões, acelerando significativamente a inflação e reduzindo a renda disponível, o que aumenta a chance de uma recessão. O Federal Reserve de Atlanta já projetava antes do anúncio das tarifas crescimento negativo da ordem de -3,7% no primeiro trimestre de 2025.

O que chama a atenção, no entanto, é a quase absoluta ausência de quesitos técnicos nas tarifas anunciadas. Os agentes econômicos levaram um tempo para processar qual teria sido o critério que a equipe econômica de Trump havia escolhido para atribuir as alíquotas a cada país.

Para começar, a lista de jurisdições tarifadas inclui peculiaridades geográficas dignas de jogos de curiosidade. O primeiro-ministro Anthony Albanese ficou surpreso porque territórios australianos como as ilhas Norfolk (população: 2188 habitantes), ilhas dos Cocos (ou Keeling) (população 630) e ilha do Natal (1692 habitantes) receberam alíquotas diferentes do território continental da Austrália, que se encontra na faixa tarifária mais baixa de 10%. Era como se Fernando de Noronha tivesse uma alíquota tarifária diferente do resto do Brasil.

Mais surpreendentemente ainda, as ilhas Heard e McDonald, também território australiano no inóspito Oceano Antártico e, portanto, não habitadas, receberam menção independente e tarifa de 10%. É desconhecida a reação dos pinguins que habitam a região e o impacto econômico da medida…

As tarifas também pareciam alheias a qualquer caráter geopolítico, até então aliados de Washington como Israel (17%), Japão (24%), Taiwan (24%) e Coreia do Sul (25%), receberam tarifas maiores que o Irã (10%) e Venezuela (15%), não só rivais, mas objetos de sanções da Casa Branca. Foi notada a ausência da Rússia e da Coreia do Norte da lista dos tarifados, enquanto a Ucrânia recebeu uma alíquota de 10%. Os únicos outros poupados dessa rodada de taxação foram os sócios do USMCA, acordo que sucedeu o Nafta, Canadá e México.

Ao desenrolar da noite confusa que sucedeu o anúncio, internautas curiosos conseguiram decifrar o enigma e revelaram o algoritmo por trás do plano de Trump. Os territórios economicamente irrelevantes na lista devem sua presença ali ao fato de que contam com um código de domínio na internet (como o .br que encerra sites brasileiros, ou o .uk dos britânicos). Descarta-se assim a possibilidade de que a lista foi previamente organizada por um departamento técnico, como o Tesouro ou Comércio, mas por assim dizer “agentes” mais afeitos ao mundo digital. A não soberania, status autônomo, ou até mesmo presença de população permanente não é requisito para ostentar as duas letrinhas. Mesmo a Antártida conta com o código (.aq) e é possível registrar um site com esse código apesar da ausência de governo organizado no território. Não se sabe porque o governo Trump decidiu não tributar o continente gelado.

O anúncio do governo associava as alíquotas atribuídas a cada país a uma proporcionalidade, atenuada pela magnanimidade de Trump, do nível de tarifas e outras barreiras não tarifárias impostas às importações de produtos Made in USA. Os números simplesmente não batiam. Singapura, campeã em abertura comercial, recebeu os mesmos 10% do que o Brasil, que tem mercado sabidamente mais fechado aos produtos estrangeiros.

Tuiteiros (usuários do X?) começaram a levantar a hipótese de que as tarifas não tinham nada a ver com a abertura ou fechamento dos mercados às importações norte-americanas, mas sim alguma relação rudimentar com o déficit que os Estados Unidos apresentavam com cada país. Para aqueles com o quais os norte-americanos apresentavam superávit, tarifa mínima de 10%. De hipótese esdrúxula, a possibilidade sustentada por engenharia reversa, a alegação foi posteriormente confirmada pelo escritório do Representante de Comércio dos Estados Unidos (USTR), agência responsável pela negociação de acordos comerciais. Para dar ar científico à coisa foi publicada uma fórmula assim como citados alguns artigos. A única diferença para o que havia sido desvendado pelas redes eram dois fatores (representados pelas letras gregas ε e φ) cujos valores multiplicados anulam-se mutuamente (uma conta pueril de 4 × 0,25).

Um usuário do Twitter/X desenvolveu a fórmula utilizada pelo USTR para chegar às alíquotas de tarifas para cada país, demonstrando que as tarifas eram proporcionais ao déficit comercial sobre as importações (Crédito: @IO_Leo_mmg / Twitter/X).

O rumor agora não era apenas que a abordagem do tarifaço era “crua” e que “carecia de lógica econômica abrangente”, focando apenas nos déficits comerciais de bens sem considerar o panorama econômico completo, como avaliou o economista George Saravelos, do Deutsche Bank. Todo o débâcle econômico parecia ter sido gerado por um plano criado de forma pouco sofisticada utilizando inteligência artificial. O ChatGPT e outras IAs retornam fórmulas muito parecidas quando perguntadas algo como “Qual seria uma maneira fácil de calcular as tarifas que deveriam ser impostas a outros países para que os Estados Unidos estejam em igualdade de condições quando se trata de déficit comercial? Defina o mínimo em 10%”. Caso não acredite, confira por si mesmo.

O tarifaço anunciado no “Dia da Libertação” não só surpreendeu pela forma improvisada, quase amadora, com que foi desenhado – mas também pelo grau de desconexão entre os seus objetivos declarados e os efeitos mais prováveis. A ideia de aumentar a produção industrial dos Estados Unidos e reduzir o déficit comercial em US$ 600 bilhões pode até funcionar no PowerPoint, mas na realidade das cadeias globais de valor, das interdependências logísticas e das estruturas produtivas transnacionais, ela parece deslocada no tempo.

Mais do que isso: ela ecoa uma estratégia que quase um século atrás teve consequências desastrosas. A Smoot–Hawley Tariff Act, sancionada em 1930 por Herbert Hoover, aumentou drasticamente as tarifas de importação norte-americanas em plena crise. O resultado foi um colapso do comércio internacional e a intensificação da Grande Depressão. A história, como se sabe, não se repete – mas às vezes rima. A diferença agora é o mundo em que se insere o novo protecionismo americano. Se nos anos 1930 os Estados Unidos ainda hesitavam em assumir o papel de hegemon global, hoje parecem, deliberadamente, abdicar dele. Desde 1945, os Estados Unidos foram os principais arquitetos – e garantidores – da ordem liberal internacional. Aceitaram os custos disso: abriram mercados, financiaram reconstruções, toleraram déficits bilaterais com aliados estratégicos, como Japão e Alemanha. Não por benevolência, mas porque entenderam que estabilidade global e liderança andavam juntas.

Essa lógica começou a ruir nos anos 2000. A OMC estagnou, a Rodada Doha fracassou, e os Estados Unidos passaram a mirar países como China, Índia e Brasil, exigindo que deixassem de ser tratados como “em desenvolvimento”. A crise de 2008 marcou um novo momento: do G7 ao G20, da unipolaridade à multipolaridade emergente. O comércio seguiu, mas com mais fricção. E agora, com Trump de volta, o que se vê é menos um ajuste e mais uma tentativa de desmontar as engrenagens do sistema.

A reação internacional à nova cruzada tarifária revela os limites da política de força bruta. Sem critério técnico, sem lógica estratégica clara, e com uma execução que parece ter saído de um prompt mal calibrado de IA, o plano gerou mais perplexidade do que temor.

A China, alvo preferencial da retórica trumpista, já não é mais a mesma de 2017. Aprendeu a jogar com as regras do sistema – e agora desenvolve ferramentas próprias para responder. Um novo kit de “coerção econômica”, nos moldes norte-americanos e europeus, foi anunciado por Pequim. Já no campo político, a China começa a costurar encontros com Coreia do Sul e Japão, dois parceiros estratégicos dos Estados Unidos, mas que se viram repentinamente tarifados com alíquotas de 24% e 25%, respectivamente. A simples imagem desses três países sentados à mesma mesa, como aconteceu recentemente em Seul, já é uma rachadura no bloco ocidental.

A Índia, que vinha se aproximando de Washington, também acusou o golpe. É um dos poucos países emergentes com crescimento sólido e ambições globais. Não aceitará ser tratada como ameaça econômica e, ao mesmo tempo, como aliada militar. Nova Délhi já iniciou conversas com a União Europeia e com os Brics sobre alternativas comerciais. E o Vietnã, outro país que Washington cortejava com afinco, se viu atingido em cheio. Sua indústria leve, centrada em manufaturas para exportação, é especialmente vulnerável a esse tipo de tarifação. Há sinais de reaproximação com a China, inclusive em temas sensíveis, como tecnologia e energia. Um realinhamento silencioso, mas significativo.

Entre os que escaparam do tarifaço com a alíquota mínima de 10%, o Brasil talvez tenha sido o maior beneficiado. A capitalização da bolsa disparou, o real se valorizou e as exportadoras brasileiras comemoraram. A primeira reação do governo foi de contenção: conseguiu a aprovação pelo Congresso o direito de retaliar nos setores em que se sentir vulnerabilizado. Ainda assim, dado o contexto geral, é provável que o governo busque estabelecer novas negociações com os norte-americanos e manter o objetivo de diversificar a pauta exportadora. A estratégia parece ser ocupar o espaço deixado por parceiros tradicionais dos Estados Unidos. A reabertura do diálogo com a União Europeia, inclusive no âmbito do acordo Mercosul-UE, provavelmente ganhará novo impulso.

No entanto, a bonança pode ser enganosa. Isso porque as tarifas desorganizam o comércio internacional, tornam as relações bilaterais mais imprevisíveis e expõem o Brasil a pressões por alinhamento político. Já se fala nos bastidores de Washington sobre condicionar a manutenção da alíquota reduzida à adoção de compromissos diplomáticos – o que colocaria Brasília em uma posição delicada, entre a neutralidade pragmática e a barganha geopolítica.

Nesse sentido, o Brasil se alinha à linha adotada pelo México de Claudia Sheinbaum: explorar oportunidades sem comprometer a estabilidade. Mas enquanto o México conta com a blindagem do USMCA, o Brasil precisa navegar com mais astúcia – e entender que sua posição vantajosa pode não durar. A questão é se o país conseguirá transformar esse momento em alavanca para maior protagonismo internacional ou se apenas assistirá à crise norte-americana como espectador privilegiado.

É tentador decretar o fim da globalização. Mas talvez o que esteja em curso não seja o seu colapso – e sim uma mutação. A crise deflagrada pelas tarifas de Trump não é exatamente um ponto fora da curva. Ela está mais para um ponto de inflexão dentro de um processo mais longo, iniciado há pelo menos uma década e meia. A verdade é que o ordenamento liberal construído no pós-1945 já vinha se esgarçando. Seu apogeu talvez tenha sido nos anos 1990, com a consolidação da OMC, a expansão dos tratados bilaterais e regionais, e a promessa de um mercado global cada vez mais integrado, onde normas, instituições e previsibilidade compensariam as assimetrias. Os Estados Unidos lideravam esse processo, com ganhos tangíveis: exportavam produtos, mas também regras, modelos de governança, contratos e valores.

A crise de 2008 abalou as fundações desse sistema. O colapso do Lehman Brothers, a quebra de bancos na Europa e a resposta coordenada do G20 expuseram tanto o poder de articulação dos Estados Unidos, quanto os limites da sua capacidade de manter a estabilidade por meios exclusivamente liberais. Foi ali, no epicentro de Wall Street, que a globalização revelou sua face mais assimétrica. Por isso, para muitos países emergentes, 2008 foi menos uma crise e mais uma revelação: o sistema era instável e enviesado, e mesmo os que o desenharam não conseguiam controlá-lo. Foi nesse contexto que começaram a germinar os primeiros sinais de multipolaridade sistêmica: a criação dos Brics, o fortalecimento do G20, a ascensão da China como investidora alternativa do mundo em desenvolvimento.

Desde então, o que se viu foi uma crescente dissonância entre os discursos em defesa da ordem e as práticas de seus principais fiadores. A OMC estagnou. A Rodada Doha fracassou. Os acordos plurilaterais perderam tração. E os Estados Unidos – que sempre alternaram protecionismo seletivo com retórica liberal – passaram a agir cada vez mais de forma unilateral, impondo sanções, abandonando tratados e esvaziando instituições.

A volta de Trump à Casa Branca apenas leva essa tendência ao extremo. O tarifaço não é só uma política econômica. É uma declaração de abandono das regras que sustentavam a hegemonia americana, não por falta de poder, mas por escolha. Em vez de liderar com instituições, os Estados Unidos ensaiam liderar pelo choque. E isso tem consequências. No mundo do pós-Guerra Fria, a hegemonia norte-americana não se baseava apenas em tanques e dólares. Ela dependia da percepção de legitimidade. As instituições – FMI, Banco Mundial, OMC, ONU – funcionavam como extensões do poder norte-americano, mas revestidas de uma capa de multilateralismo. Quando Washington desrespeita ou ignora essas mesmas regras, sinaliza que a ordem é apenas um instrumento, não um fim. E com isso, abre espaço para alternativas.

A China, hoje, não busca necessariamente destruir o sistema – mas moldá-lo à sua imagem. Lança bancos paralelos (como o AIIB e o Novo Banco de Desenvolvimento – do BRICS), consolida sua moeda como instrumento de trocas regionais, e oferece infraestrutura e crédito a países que já não veem no Ocidente sua única opção. A Índia, o Vietnã, a Indonésia e mesmo países africanos também emergem como polos de estabilidade relativa, com peso demográfico, crescimento econômico e capacidade de articulação regional. E para fechar a história, Japão e Coreia do Sul se encontram em Seul com representantes chineses para buscar alternativas para a abertura comercial conjunta.

O mundo pós-2025 pode não ter um hegemon claro. Mas terá centros de poder, interesses cruzados e coalizões flexíveis. A fragmentação da ordem liberal não significa o retorno ao caos — mas sim um novo tipo de ordenamento, mais contingente, mais regionalizado, menos hierárquico. A globalização não acabou. Mas deixou de ser dirigida por um só maestro.

 

Fonte: Por Lucas Silva Amorim e Lucas Leite, no Le Monde

 

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