O fim da globalização como a
conhecemos
“A
inveja do mundo”. Era assim que Simon Rabinovitch e Henry Curr, editores da
publicação inglesa The Economist, descreveram o estado da economia
dos Estados Unidos em outubro do ano passado. Na série de sete artigos, os jornalistas
tecem loas à pujança econômica estadunidense. Afinal, a economia crescia quase
3% em 2024. No agregado, o PIB do país nunca tinha sido tão alto, deixando para
trás a retração da pandemia. O trabalhador norte-americano seguia sendo o mais
produtivo do mundo e a concentração crescente de riqueza, argumentavam, era
apenas o preço a ser pago por uma economia vigorosa.
O
crescimento foi possível tendo em vista a revolução energética do petróleo de
xisto, cuja extração foi permitida por tecnologia nova, o fracking.
Os combustíveis fósseis extraídos por fraturação hidráulica de rochas profundas
trouxeram aos Estados Unidos a soberania energética que permitiu o deslanche
econômico. A soberania do dólar e de Wall Street nas finanças internacionais
permanecia inconteste frente ao yuan e ao mercado acionário chineses. Apenas
obstáculos internos poderiam atravancar a situação econômica norte-americana.
Apesar de encontrarem problemas no plano econômico de Kamala Harris,
Rabinovitch e Curr viam mais defeitos no de Trump.
Para o
dissabor dos editores do Economist, cujos textos foram tirados do
ar, o resultado da eleição de novembro daquele ano implicou um cavalo de pau na
política econômica de Washington. À frente de uma coalizão eleitoral que
incluía amplas parcelas da população do Cinturão da Ferrugem, área cujo setor
industrial foi dizimado com o processo de globalização e acirramento da
competição comercial nos anos 1990, Donald J. Trump foi alçado pela segunda vez
à presidência.
Os
empresários e plutocratas que compareceram à posse de Trump na Rotunda do
Capitólio em fevereiro deste ano não pareciam estar contentes com a situação
econômica deixada por Biden. Talvez na esperança de serem poupados de medidas
econômicas nefastas, puseram-se a bajular Trump com doações recordes ao fundo
que financiara a cerimônia de posse. Custava US$ 1 milhão sentar-se à frente
até mesmo dos membros do gabinete que seriam logo empossados, preço prontamente
pago por figuras como Elon Musk, Jeff Bezos e Mark Zuckerberg.
Se Musk
já colhia os resultados negativos de imiscuir-se nos mais altos níveis da
política do país com o boicote à Tesla, agora foi a vez não só de Bezos,
Zuckerberg e diversos outros, mas de todo o mercado pagar o preço de alçar
Trump a uma nova presidência. O anúncio de um tarifaço global sem precedentes
nos últimos cem anos, a que o governo Trump batizou “Dia da Libertação”, levou
o mercado financeiro ao colapso. O S&P500, índice composto de quinhentos
ativos negociados nas bolsas de Nova York (NYSE e NASDAQ), perdeu US$ 2 trilhões em
capitalização em 20 minutos, principalmente concentrados nos setores têxteis e
de tecnologia, dependentes de cadeias de valor internacionais.
Michael
Feroli, do JP Morgan, estima que as tarifas podem sobretaxar os consumidores
norte-americanos em quase US$ 400 bilhões, acelerando significativamente a
inflação e reduzindo a renda disponível, o que aumenta a chance de uma
recessão. O Federal Reserve de Atlanta já projetava antes do anúncio das
tarifas crescimento negativo da ordem de
-3,7% no
primeiro trimestre de 2025.
O que
chama a atenção, no entanto, é a quase absoluta ausência de quesitos técnicos
nas tarifas anunciadas. Os agentes econômicos levaram um tempo para processar
qual teria sido o critério que a equipe econômica de Trump havia escolhido para
atribuir as alíquotas a cada país.
Para
começar, a lista de jurisdições tarifadas inclui peculiaridades geográficas
dignas de jogos de curiosidade. O primeiro-ministro Anthony Albanese ficou surpreso porque
territórios australianos como as ilhas Norfolk (população: 2188 habitantes),
ilhas dos Cocos (ou Keeling) (população 630) e ilha do Natal (1692 habitantes)
receberam alíquotas diferentes do território continental da Austrália, que se
encontra na faixa tarifária mais baixa de 10%. Era como se Fernando de Noronha
tivesse uma alíquota tarifária diferente do resto do Brasil.
Mais
surpreendentemente ainda, as ilhas Heard e McDonald, também território
australiano no inóspito Oceano Antártico e, portanto, não habitadas, receberam
menção independente e tarifa de 10%. É desconhecida a reação dos pinguins que
habitam a região e o impacto econômico da medida…
As
tarifas também pareciam alheias a qualquer caráter geopolítico, até então
aliados de Washington como Israel (17%), Japão (24%), Taiwan (24%) e Coreia do
Sul (25%), receberam tarifas maiores que o Irã (10%) e Venezuela (15%), não só
rivais, mas objetos de sanções da Casa Branca. Foi notada a ausência da Rússia
e da Coreia do Norte da lista dos tarifados, enquanto a Ucrânia recebeu uma
alíquota de 10%. Os únicos outros poupados dessa rodada de taxação foram os
sócios do USMCA, acordo que sucedeu o Nafta, Canadá e México.
Ao
desenrolar da noite confusa que sucedeu o anúncio, internautas curiosos
conseguiram decifrar o enigma e revelaram o algoritmo por trás do plano de
Trump. Os territórios economicamente irrelevantes na lista devem sua presença
ali ao fato de que contam com um código de domínio na internet (como o .br que
encerra sites brasileiros, ou o .uk dos britânicos). Descarta-se assim a
possibilidade de que a lista foi previamente organizada por um departamento
técnico, como o Tesouro ou Comércio, mas por assim dizer “agentes” mais afeitos
ao mundo digital. A não soberania, status autônomo, ou até mesmo presença de
população permanente não é requisito para ostentar as duas letrinhas. Mesmo a
Antártida conta com o código (.aq) e é possível registrar um site com esse
código apesar
da ausência de governo organizado no território. Não se sabe porque o governo
Trump decidiu não tributar o continente gelado.
O
anúncio do governo associava as alíquotas atribuídas a cada país a uma
proporcionalidade, atenuada pela magnanimidade de Trump, do nível de tarifas e
outras barreiras não tarifárias impostas às importações de produtos Made
in USA. Os números simplesmente não batiam. Singapura, campeã em abertura
comercial, recebeu os mesmos 10% do que o Brasil, que tem mercado sabidamente
mais fechado aos produtos estrangeiros.
Tuiteiros
(usuários do X?) começaram a levantar a hipótese de que as tarifas não tinham
nada a ver com a abertura ou fechamento dos mercados às importações
norte-americanas, mas sim alguma relação rudimentar com o déficit que os
Estados Unidos apresentavam com cada país. Para aqueles com o quais os
norte-americanos apresentavam superávit, tarifa mínima de 10%. De hipótese
esdrúxula, a possibilidade sustentada por
engenharia reversa,
a alegação foi posteriormente confirmada pelo escritório do
Representante de Comércio dos Estados Unidos (USTR), agência responsável pela
negociação de acordos comerciais. Para dar ar científico à coisa foi publicada
uma fórmula assim como citados alguns artigos. A única diferença para o que
havia sido desvendado pelas redes eram dois fatores (representados pelas letras
gregas ε e φ) cujos valores multiplicados anulam-se mutuamente (uma conta
pueril de 4 × 0,25).
Um
usuário do Twitter/X desenvolveu a fórmula utilizada pelo USTR para chegar às
alíquotas de tarifas para cada país, demonstrando que as tarifas eram
proporcionais ao déficit comercial sobre as importações (Crédito: @IO_Leo_mmg
/ Twitter/X).
O rumor
agora não era apenas que a abordagem do tarifaço era “crua” e que “carecia de
lógica econômica abrangente”, focando apenas nos déficits comerciais de bens
sem considerar o panorama econômico completo, como avaliou o economista George
Saravelos, do Deutsche Bank. Todo o débâcle econômico parecia
ter sido gerado por um plano criado de forma pouco sofisticada utilizando
inteligência artificial. O ChatGPT e outras IAs retornam fórmulas muito
parecidas quando perguntadas algo como “Qual seria uma maneira fácil de
calcular as tarifas que deveriam ser impostas a outros países para que os
Estados Unidos estejam em igualdade de condições quando se trata de déficit
comercial? Defina o mínimo em 10%”. Caso não acredite, confira por si mesmo.
O
tarifaço anunciado no “Dia da Libertação” não só surpreendeu pela forma
improvisada, quase amadora, com que foi desenhado – mas também pelo grau de
desconexão entre os seus objetivos declarados e os efeitos mais prováveis. A
ideia de aumentar a produção industrial dos Estados Unidos e reduzir o déficit
comercial em US$ 600 bilhões pode até funcionar no PowerPoint, mas na realidade
das cadeias globais de valor, das interdependências logísticas e das estruturas
produtivas transnacionais, ela parece deslocada no tempo.
Mais do
que isso: ela ecoa uma estratégia que quase um século atrás teve consequências
desastrosas. A Smoot–Hawley Tariff Act, sancionada em 1930 por Herbert Hoover,
aumentou drasticamente as tarifas de importação norte-americanas em plena
crise. O resultado foi um colapso do comércio internacional e a intensificação
da Grande Depressão. A história, como se sabe, não se repete – mas às vezes
rima. A diferença agora é o mundo em que se insere o novo protecionismo
americano. Se nos anos 1930 os Estados Unidos ainda hesitavam em assumir o
papel de hegemon global, hoje parecem, deliberadamente, abdicar dele. Desde
1945, os Estados Unidos foram os principais arquitetos – e garantidores – da
ordem liberal internacional. Aceitaram os custos disso: abriram mercados,
financiaram reconstruções, toleraram déficits bilaterais com aliados
estratégicos, como Japão e Alemanha. Não por benevolência, mas porque
entenderam que estabilidade global e liderança andavam juntas.
Essa
lógica começou a ruir nos anos 2000. A OMC estagnou, a Rodada Doha fracassou, e
os Estados Unidos passaram a mirar países como China, Índia e Brasil, exigindo
que deixassem de ser tratados como “em desenvolvimento”. A crise de 2008 marcou
um novo momento: do G7 ao G20, da unipolaridade à multipolaridade emergente. O
comércio seguiu, mas com mais fricção. E agora, com Trump de volta, o que se vê
é menos um ajuste e mais uma tentativa de desmontar as engrenagens do sistema.
A
reação internacional à nova cruzada tarifária revela os limites da política de
força bruta. Sem critério técnico, sem lógica estratégica clara, e com uma
execução que parece ter saído de um prompt mal calibrado de IA, o plano gerou
mais perplexidade do que temor.
A
China, alvo preferencial da retórica trumpista, já não é mais a mesma de 2017.
Aprendeu a jogar com as regras do sistema – e agora desenvolve ferramentas
próprias para responder. Um novo kit de “coerção econômica”, nos moldes
norte-americanos e europeus, foi anunciado por Pequim. Já no campo político, a
China começa a costurar encontros com Coreia do Sul e Japão, dois parceiros
estratégicos dos Estados Unidos, mas que se viram repentinamente tarifados com
alíquotas de 24% e 25%, respectivamente. A simples imagem desses três países
sentados à mesma mesa, como aconteceu recentemente em Seul, já é uma rachadura
no bloco ocidental.
A
Índia, que vinha se aproximando de Washington, também acusou o golpe. É um dos
poucos países emergentes com crescimento sólido e ambições globais. Não
aceitará ser tratada como ameaça econômica e, ao mesmo tempo, como aliada
militar. Nova Délhi já iniciou conversas com a União Europeia e com os Brics
sobre alternativas comerciais. E o Vietnã, outro país que Washington cortejava
com afinco, se viu atingido em cheio. Sua indústria leve, centrada em
manufaturas para exportação, é especialmente vulnerável a esse tipo de
tarifação. Há sinais de reaproximação com a China, inclusive em temas
sensíveis, como tecnologia e energia. Um realinhamento silencioso, mas
significativo.
Entre
os que escaparam do tarifaço com a alíquota mínima de 10%, o Brasil talvez
tenha sido o maior beneficiado. A capitalização da bolsa disparou, o real se
valorizou e as exportadoras brasileiras comemoraram. A primeira reação do
governo foi de contenção: conseguiu a aprovação pelo Congresso o direito de
retaliar nos setores em que se sentir vulnerabilizado. Ainda assim, dado o
contexto geral, é provável que o governo busque estabelecer novas negociações
com os norte-americanos e manter o objetivo de diversificar a pauta
exportadora. A estratégia parece ser ocupar o espaço deixado por parceiros
tradicionais dos Estados Unidos. A reabertura do diálogo com a União Europeia,
inclusive no âmbito do acordo Mercosul-UE, provavelmente ganhará novo impulso.
No
entanto, a bonança pode ser enganosa. Isso porque as tarifas desorganizam o
comércio internacional, tornam as relações bilaterais mais imprevisíveis e
expõem o Brasil a pressões por alinhamento político. Já se fala nos bastidores
de Washington sobre condicionar a manutenção da alíquota reduzida à adoção de
compromissos diplomáticos – o que colocaria Brasília em uma posição delicada,
entre a neutralidade pragmática e a barganha geopolítica.
Nesse
sentido, o Brasil se alinha à linha adotada pelo México de Claudia Sheinbaum:
explorar oportunidades sem comprometer a estabilidade. Mas enquanto o México
conta com a blindagem do USMCA, o Brasil precisa navegar com mais astúcia – e
entender que sua posição vantajosa pode não durar. A questão é se o país
conseguirá transformar esse momento em alavanca para maior protagonismo
internacional ou se apenas assistirá à crise norte-americana como espectador
privilegiado.
É
tentador decretar o fim da globalização. Mas talvez o que esteja em curso não
seja o seu colapso – e sim uma mutação. A crise deflagrada pelas tarifas de
Trump não é exatamente um ponto fora da curva. Ela está mais para um ponto de
inflexão dentro de um processo mais longo, iniciado há pelo menos uma década e
meia. A verdade é que o ordenamento liberal construído no pós-1945 já vinha se
esgarçando. Seu apogeu talvez tenha sido nos anos 1990, com a consolidação da
OMC, a expansão dos tratados bilaterais e regionais, e a promessa de um mercado
global cada vez mais integrado, onde normas, instituições e previsibilidade
compensariam as assimetrias. Os Estados Unidos lideravam esse processo, com
ganhos tangíveis: exportavam produtos, mas também regras, modelos de
governança, contratos e valores.
A crise
de 2008 abalou as fundações desse sistema. O colapso do Lehman Brothers, a
quebra de bancos na Europa e a resposta coordenada do G20 expuseram tanto o
poder de articulação dos Estados Unidos, quanto os limites da sua capacidade de
manter a estabilidade por meios exclusivamente liberais. Foi ali, no epicentro
de Wall Street, que a globalização revelou sua face mais assimétrica. Por isso,
para muitos países emergentes, 2008 foi menos uma crise e mais uma revelação: o
sistema era instável e enviesado, e mesmo os que o desenharam não conseguiam
controlá-lo. Foi nesse contexto que começaram a germinar os primeiros sinais de
multipolaridade sistêmica: a criação dos Brics, o fortalecimento do G20, a
ascensão da China como investidora alternativa do mundo em desenvolvimento.
Desde
então, o que se viu foi uma crescente dissonância entre os discursos em defesa
da ordem e as práticas de seus principais fiadores. A OMC estagnou. A Rodada
Doha fracassou. Os acordos plurilaterais perderam tração. E os Estados Unidos –
que sempre alternaram protecionismo seletivo com retórica liberal – passaram a
agir cada vez mais de forma unilateral, impondo sanções, abandonando tratados e
esvaziando instituições.
A volta
de Trump à Casa Branca apenas leva essa tendência ao extremo. O tarifaço não é
só uma política econômica. É uma declaração de abandono das regras que
sustentavam a hegemonia americana, não por falta de poder, mas por escolha. Em
vez de liderar com instituições, os Estados Unidos ensaiam liderar pelo choque.
E isso tem consequências. No mundo do pós-Guerra Fria, a hegemonia
norte-americana não se baseava apenas em tanques e dólares. Ela dependia da
percepção de legitimidade. As instituições – FMI, Banco Mundial, OMC, ONU –
funcionavam como extensões do poder norte-americano, mas revestidas de uma capa
de multilateralismo. Quando Washington desrespeita ou ignora essas mesmas
regras, sinaliza que a ordem é apenas um instrumento, não um fim. E com isso,
abre espaço para alternativas.
A
China, hoje, não busca necessariamente destruir o sistema – mas moldá-lo à sua
imagem. Lança bancos paralelos (como o AIIB e o Novo Banco de Desenvolvimento –
do BRICS), consolida sua moeda como instrumento de trocas regionais, e oferece
infraestrutura e crédito a países que já não veem no Ocidente sua única opção.
A Índia, o Vietnã, a Indonésia e mesmo países africanos também emergem como
polos de estabilidade relativa, com peso demográfico, crescimento econômico e
capacidade de articulação regional. E para fechar a história, Japão e Coreia do
Sul se encontram em Seul com representantes chineses para buscar alternativas
para a abertura comercial conjunta.
O mundo
pós-2025 pode não ter um hegemon claro. Mas terá centros de poder, interesses
cruzados e coalizões flexíveis. A fragmentação da ordem liberal não significa o
retorno ao caos — mas sim um novo tipo de ordenamento, mais contingente, mais
regionalizado, menos hierárquico. A globalização não acabou. Mas deixou de ser
dirigida por um só maestro.
Fonte:
Por Lucas Silva Amorim e Lucas Leite,
no Le Monde
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