O que significa dizer “camarada” no mundo
de hoje?
“Camarada” dá nome a uma relação
caracterizada por uma condição comum, pela igualdade e pela solidariedade. Para
os comunistas, a condição comum, a igualdade e a solidariedade são utópicas,
rompendo as determinações da sociedade capitalista.
Em seus escritos sobre prostituição, sexo e
família dos primeiros anos da revolução bolchevique, Aleksandra
Kollontai apresenta a camaradagem e
a solidariedade como sensibilidades necessárias para a
construção de uma sociedade comunista. Ela associa a camaradagem a um
“sentimento de pertencimento”, uma relação entre trabalhadores comunistas
livres e iguais. No capitalismo, os trabalhadores não são automaticamente
camaradas. O capitalismo tenta separá-los e torná-los competitivos, egoístas e
temerosos. O comunismo abole essas condições. “Em vez da família individual e
egoísta, desenvolver-se-á uma família de trabalhadores, na qual todos os
trabalhadores, homens e mulheres, serão, sobretudo, camaradas”, escreve
Kollontai. “Camarada” aponta para um modo de pertencimento oposto ao
isolamento, à hierarquia e à opressão das formas burguesas de relação,
particularmente do trabalho e da família sob o capitalismo. Trata-se de
uma modalidade caracterizada por igualdade, solidariedade e respeito; a
coletividade substitui o egoísmo e a presunção. A palavra russa para
“camarada”, tovarish, é masculina, mas seu poder é tal que liberta
as pessoas das amarras da gramática. Um livro soviético sobre linguagem
literária publicado em 1929 dá o exemplo de uma “camarada irmã”, formulação que
soa engraçada em russo, mas evoca a nova linguagem e as novas emoções da
revolução.
Para Kollontai, a camaradagem é um princípio
fundamental da moralidade proletária; ela constitui a chave para a “reeducação
radical de nossa psique” sob o comunismo. A camaradagem engendra novos
sentimentos, de modo que as pessoas deixam de se sentir desiguais e compelidas
a se submeter. Agora, elas são “aptas à liberdade em vez de estarem limitadas
por um senso de propriedade, aptas à camaradagem em vez de desigualdade e
submissão”.
Maksim Górki tem um conto do início do
século XX, publicado em inglês em 1906 no Social Democrat,
intitulado simplesmente “Camarada”. A história atesta o poder vivificante do
termo. Górki apresenta “camarada” como uma palavra que “veio para unir o mundo
inteiro, para erguer todos os homens aos cumes da liberdade e atar com novos
laços, os laços fortes do respeito mútuo”. A história retrata uma cidade
sombria e “torturante”; uma cidade de hostilidade, violência, humilhação e
raiva onde os fracos se submetem ao domínio dos fortes. Em meio a esse
sofrimento miserável, uma palavra ressoa: “camarada”! As pessoas deixam de ser
escravas. Recusam-se a se submeter. Tomam consciência de sua
força. Reconhecem que elas próprias são a força da vida.
Quando as pessoas dizem “camarada”, elas
mudam o mundo. Um dos exemplos de Górki é a prostituta que sente a mão de
alguém em seu ombro e depois chora de alegria ao se virar e ouvir a palavra
“camarada”. Com essa palavra, ela é interpelada não como um objeto que se vende
enquanto mercadoria a ser usufruída por outro, mas como uma igual na luta comum
contra as próprias condições que exigem a conversão de tudo em mercadoria.
Outros exemplos apresentados são um mendigo, um cocheiro e um grupo de jovens
combatentes – para todos eles, “camarada” brilha como uma estrela que os guia
para o futuro. Assim como Kollontai, Górki associa “camarada” à liberdade
em relação à servidão e à opressão, associa “camarada” à igualdade. Ambos
apresentam o camarada em oposição à exploração egoísta, à hierarquia, à
concorrência e à miséria próprias do capitalismo. E, assim como Kollontai,
Górki vincula a camaradagem a uma luta por (e a uma visão de) um futuro em que
todos serão camaradas.
Celebrações igualmente românticas das
relações entre camaradas também animam as páginas do jornal estadunidense The
Comrade, publicado entre 1901 e 1905. The Comrade era uma
publicação mensal ilustrada voltada a socialistas de classe média dotados de
consciência ética. Trazia poemas, contos, artigos sobre a indústria e as
condições das classes trabalhadoras, traduções de socialistas europeus e
ensaios autobiográficos como “How I Became a Socialist” [Como me tornei
socialista]. Inspirado em parte pelo “masculino amor dos camaradas” de Walt
Whitman, o jornal ecoa o homoerotismo, a homossocialidade e o
aspecto queer celebratório de Whitman. Relações camaradas
são relações de novo tipo, relações que rompem as amarras da família, do
heteropatriarcado e do binarismo de gênero. Um dos contos do jornal, “The
Slave of a Slave” [O escravo de um escravo], é um bom exemplo disso: no
vernáculo da época, a protagonista é uma tomboy que tenta
salvar uma pobre mulher de seu marido brutal e, ao fracassar, expressa gratidão
ao perceber que ela mesma nunca será uma mulher. Hoje, quem sabe
poderíamos reconhecer a protagonista como uma orgulhosa pessoa trans.
O periódico The Comrade trazia
poemas enaltecendo o camarada e a camaradagem. No poema “A Song of To-Morrow”
[Uma canção do amanhã], George D. Herron sonha que o “amor-camarada inundará o
mundo”. O poema de Edwin Markham, “The Love of Comrades” [O amor de
camaradas], evoca abelhas-camaradas. Outro poema de Herron transforma camarada
em sufixo: dia-camarada, casa-camarada, marcha-camarada, futuro-camarada,
estrelas-camarada.10 […] O escritor soviético Andrei Platónov
também acena para um sol e umas estrelas camaradas, plantas camaradas, para o
lombo camarada de um cavalo. Como observa Oxana Timofeeva: “Nos
escritos de Platónov, não só os humanos, mas todas as criaturas vivas,
incluindo as plantas, são inundados pelo desejo por comunismo”.
Esses exemplos colhidos de autores soviéticos
e do periódico The Comrade vinculam a camaradagem a
um futuro caracterizado por igualdade e pertencimento, por
um amor e um respeito entre iguais tão grande que não podem
ser contidos nas relações humanas e transbordam para incluir insetos e galáxias
(abelhas e estrelas) e os próprios objetos. “Camaradas” marca a divisão entre o
mundo de miséria que existe e o mundo comunista igualitário que existirá.
Tal como a história revolucionária soviética
e o homossocialismo de inspiração anglo-americana de Whitman do início do
século XX, a palavra chinesa para camarada, tongzhi, também
substitui as designações hierárquicas e de gênero da relação por um “ideal de
igualitarismo e utopismo”. No chinês contemporâneo, tongzhi também
significa “gay”. De acordo com Hongwei Bao, tongzhi é
intrinsecamente queer:
o termo mapeia as relações sociais de uma
forma nova, uma forma que abre a estrutura tradicional de família e parentesco
para relações e conexões entre estranhos que compartilham as mesmas
perspectivas políticas, transformando intimidade privada em intimidade
pública”.
Os camaradas queer de Bao
ressoam com a leitura que Jason Frank faz do éthos de
camaradagem presente nos poemas do Cálamo [conjunto de poemas no interior
de Folhas na relva] de Whitman, nos quais relações eróticas de
camaradagem desestabilizam e superam “diferenças identitárias de localidade,
etnia, classe e ocupação, sexo, raça e sexualidade”.
Kollontai, Górki e seus camaradas queer inspiram
a minha primeira tese sobre o camarada: camarada é uma figura genérica e
igualitária – e, para comunistas e socialistas, utópica – de relação política.
A dimensão igualitária do camarada nomeia uma relação que perpassa as
determinações do presente. Esse sentido de “camarada” transparece na conclusão
de Os condenados da terra, quando Frantz Fanon interpela repetidamente seus leitores como
camaradas: “Vamos, camaradas, o jogo europeu está definitivamente
terminado, é necessário encontrar outra coisa”; e, na última frase do
livro: “Pela Europa, por nós mesmos e pela humanidade, camaradas, temos de
mudar de procedimento, desenvolver um pensamento novo, tentar colocar de pé um
homem novo”. “Camarada” é a forma de tratamento apropriada para essa
empreitada. Forma igualitária, genérica, abstrata e, em um contexto de
hierarquia, fragmentação e opressão, utópica.
Os comunistas não são os únicos a sublinhar a
dimensão utópica do camarada. Em Homenagem à Catalunha, George
Orwell descreve Barcelona em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola, em termos
de uma camaradagem utópica. No cenário anarquista revolucionário de
Barcelona, ele nos diz: “As formas servis e até mesmo cerimoniosas de
tratamento tinham desaparecido temporariamente. Ninguém mais dizia ‘señor’, ou
‘don’, ou mesmo ‘usted’; todos chamavam uns aos outros de ‘camarada’ e ‘tú’,
depois diziam ‘salud!’ em vez de ‘buenos días’”.
Hoje, em um ambiente cada vez mais
nacionalista e autoritário, intensamente competitivo, desigual e miserável, em
um mundo de exaustão antropocênica, é difícil recapturar a esperança, a
futuridade e o sentido de luta compartilhada que faziam parte de uma tradição
revolucionária anterior. O que é, então, a camaradagem para nós? Minha
aposta ao longo deste livro é a de que um ensaio especulativo-compositivo da
camaradagem, que destila elementos comuns de vários usos do termo como forma de
tratamento, figura de pertencimento e recipiente para expectativas
compartilhadas, pode nos fornecer uma visão da relação política necessária para
o presente. Camaradas são mais que sobreviventes e mais que aliados. São
aqueles que se encontram do mesmo lado de uma luta por um mundo igualitário
emancipado.
Fonte: Por Jodi Dean, no Blog da Boitempo
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