Marilia
Pacheco Fiorillo: A fraqueza de Deus
Os
primeiros cristãos, muito antes da consagração dos evangelhos ditos canônicos
(havia dezenas em circulação, que foram expurgados) e rapidamente derrotados
pela oficialização do catolicismo como religião oficial do Império Romano
(século IV) sabiam disso. Sabiam muito bem que, se havia uma mensagem
prometendo boas-novas, era preciso antes responder (e resolver) uma pergunta
originária: Unde malum, isto é, de onde viria o mal.
Foram
chamados de gnósticos pela sua repugnância ao dogma e hierarquias e pela
convicção de que a resposta estava na gnose (o conhecimento íntimo, intuitivo e
pessoal da divindade), não na fé obediente. Foi fácil aniquilá-los, pelo seu
anarquismo avant la lettre, pela mania de revezar funções (bispo hoje, amanhã
na plateia; nenhum cargo era vitalício e até mulheres podiam oficiar um culto)
e principalmente por jamais se fixarem num lugar, perambulando de vilarejo a
vilarejo, andarilhos que espalhavam as palavras ao vento.
Mas o
que sabiam os gnósticos a ponto de torná-los tão incômodos, indesejáveis, e
mesmo ameaçadores? Não eram segredos ocultos, fórmulas mágicas, amuletos
encantados, abracadabras – a calúnia que prevaleceu na história oficial da
Igreja. Nem eram exatamente místicos, outra vertente que as religiões
entronizadas detestam, vide o sufismo para o islamismo salafista. O que os
gnósticos conheciam e cultivavam era o poder da imaginação – inventar e
pavimentar um caminho próprio, rejeitando a superstição recém promovida a
verdade universal (aliás, católico é a tradução do grego ‘universal’).
Conheciam e punham em prática. Pois o gnosticismo é tudo, menos um quietismo.
As
nuances das doutrinas gnósticas são tantas que, até hoje, atrapalha-se quem
tenta classificá-las. Falar em gnosticismo é falar de combinações de ideias,
permutações, mesclas, improvisações. “Tantas sentenças quantas forem as
cabeças”, como zombava um de seus grandes adversários, o cioso padre da Igreja
Tertuliano de Cartago. Por sorte, esse caminho torto (heterodoxo) teve um
intérprete à altura, igualmente imaginativo, mas superlativamente mais claro: o
filósofo Hans Jonas (1903-1993), autor do insuperável The Gnostic Religion.
O judeu
alemão Hans Jonas estudou com o filósofo Martin Heidegger e com o teólogo
Rudolph Bultmann na década de 1920, época em que conheceu Hannah Arendt (famosa
por sua análise do totalitarismo), de quem ele se tornaria amigo e com quem
compartilharia uma ‘ética da responsabilidade’, ela ressaltando a política, ele
enfatizando o futuro. Nos anos 1930, como tantos intelectuais que fugiam da
ascensão do nazismo, emigrou para a Inglaterra, e em seguida para a Palestina,
o Canadá e Nova York, onde ensinou filosofia na New School of Social Research.
Sua
obra Gnosis und spätantiker Geist, publicada em 1934 na Alemanha, é um clássico
sobre o tema, pois sua original abordagem permitiu, enfim, decifrar a esfinge:
Hans Jonas trata o gnosticismo não como um fato historicamente circunscrito,
mas como um fenômeno existencial. Mais tarde, em seu livro Mortality and
Morality, a search for the good after Auschwitz (“Mortalidade e moralidade, uma
investigação sobre o bem após Auschwitz”), Hans Jonas esboçaria uma peculiar
teologia, segundo a qual Deus está longe de ser o criador onipotente, como
querem (exigem!!) as religiões monoteístas.
Ao
contrário, é um ser vulnerável, desorientado, no limite do exílio. Isso porque
doou tanto de si para arquitetar o Cosmos que se esgotou. Um tanto para
estrelas e planetas, outro tanto para este mundo, a vida mais manejável das
plantas e bichos, e, finalmente, como último gesto de auto-doação, o conturbado
e incontrolável ser humano. Estava quase sem forças quando moldou o homem que
este escapou-lhe ao controle – e começou, lamentavelmente, a investir contra os
propósitos da divindade.
Este
Deus ainda possui certo poder de persuasão sobre alguns episódios humanos, mas
já não possui mais a energia e a capacidade de coibir ou proibir abusos e
deformações. Às vezes, pode até influenciar, mas é incapaz de decidir o que
quer que seja. Anêmico, desvitalizado, se exila em si próprio enquanto
gradualmente exila-se de suas criaturas.
Não
está morto, como disseram, mas perplexo e paralisado, em coma. A essa perda de
potência soma-se outra desvantagem: o próprio Deus pode ser vitimado pelo que
ocorre no universo, aí compreendidas, sobretudo, as ações humanas. Ou
presenteado, se o homem justo prevalecer, ganhando a luta contra as
abominações.
O tema
da criatura capaz de regenerar o criador é retomado por Hans Jonas em O
conceito de Deus após Auschwitz. Monstruosidades como as que aconteceram em
Auschwitz, ele escreve (a velha questão do mal, tão cara aos gnósticos), não
podem ser explicadas pelos argumentos tradicionais, e nenhuma teodiceia, ou
tratado sobre a bondade de Deus, conseguiria justificar tais abjeções, por mais
piruetas intelectuais que empreenda.
Horrores
como os ocorridos em Auschwitz – ou, agora, na Palestina, Afeganistão, Ucrania,
Yemen, Congo, Sudão, El Salvador, como os que ocorreram em Kosovo, Sarajevo,
Ruanda, Darfur, Libéria, Síria; lista cada vez mais extensa – nos convencem de
que o mundo, se um dia foi criação divina, já há muito deixou de ser. Ou Deus
não era feito só de bondade, ou não participou do último ato da Criação.
Assim,
caso se queira restaurar sua presença, é preciso redefinir seu papel. Se Ele
existe, não tem nenhuma responsabilidade pelo curso da história. Seria
inimaginável que, em sua onipotência e onisciência, e, sobretudo, onipresença,
sancionasse tantas atrocidades.
É a
cara feia da própria história, pois, que nos obriga a redefini-Lo, já que Ele
não pode e nem deve ser associado ao Senhor da barbárie.
• No início era a queda
Mas
como manter Deus, ou pelo menos o devaneio de Sua existência, se Ele se lançou
para fora do mundo?
A
solução de Hans Jonas é mais ou menos aquela de Kant, quando este “despertou do
sono dogmático” da metafísica graças à terapêutica leitura do cético Hume. Kant
salvou a metafísica acrescentando a ela o filtro do empirismo – estava
inventada a “metafísica transcendental”, cujo grande proveito foi o de resolver
a eterna angústia sobre a validade do conhecimento estipulando que a verdade de
uma coisa sempre estará condicionada aos óculos de nossa percepção.
Hans
Jonas fez parecido: manteve Deus, como Kant manteve a metafísica, mas o
relativizou. As prerrogativas continuavam lá, apenas temporariamente suspensas.
Em vez do Deus que havia concebido e continua interferindo nos negócios do
cosmos, como querem os monoteísmos, Hans Jonas sugere um Deus que, justamente
porque concebeu e interferiu, acabou perdendo seu lugar.
Foi
gradativamente se debilitando ao se envolver demais em seu próprio trabalho. O
Deus transcendental, portanto, desapareceu no meio do caminho: hoje é um Deus
no ostracismo, divorciado de sua Criação, expulso por suas próprias criaturas,
e tremendamente necessitado da ajuda delas para voltar à ativa.
A
definição tem sabor claramente gnóstico. A triste sina do Deus de Hans Jonas é
a mesma vivida pelo Deus dos valentinianos, sethianos, marcionitas e outros
heréticos dos primeiros séculos. O esquema se repete: havia um ser de absoluta
perfeição que, por generosidade, resolveu dar parte de si para criar o
universo; sua decisão mostrou-se uma temeridade, como a do incauto rei Lear ao
dividir seus domínios entre as filhas ingratas.
Assim,
o Deus original, fonte de tudo, que havia abdicado de seu sossego por um
impulso de doar-se à infinita variedade do vir-a-ser, isto é, para ceder algo
dele que materializasse as estrelas, os planetas, plantas e bichos e,
equivocadamente, pessoas, este Deus, ao abandonar seu repouso, condenou-se a
vagar eternamente, longe dos seus.
No
início, pois, foi a Queda. Esse o erro primordial, a Queda inaugural: ao deixar
seu lugar, a divindade aventurou-se nos até então inexistentes tempo e espaço,
no acidente e na circunstância, no efêmero e no imprevisível. Mergulhou com
tanto ímpeto no propósito da Criação que esqueceu a rede de segurança.
Concentrado em seus afazeres, Deus não tomou a precaução de deixar de reserva
alguma porção de Si, para qualquer eventualidade. Entregou-se totalmente, como
fazem os jovens apaixonados.
Mas,
como em todo romance, cedo ou tarde a realidade se impõe. E a realidade com que
Deus se viu às voltas, no finalzinho de seu projeto, foi a de que sua obra se
desgovernava, tomava rumos inesperados e, pior, estava totalmente
irreconhecível.
A
divindade havia se comprometido tanto com o destino de sua Criação, havia gasto
tanto de si, que não tinha mais potência para corrigir os erros de rota. O Lear
de Shakespeare não teve alternativa a não ser enlouquecer e morrer. Deus tinha
duas: podia desfazer o equívoco num piscar de olhos, destruindo o mundo, ou
podia, por pura compaixão, permitir que o mundo, mesmo disparatado, continuasse
existindo. Escolheu a segunda: preferiu poupar o mundo, mesmo que com isso
esgotasse seu último fôlego. Dito e feito: o Cosmos sobreviveu, mas Deus não se
reconheceu mais nele. Desalojado, renunciou.
Na
teologia mito-poética de Hans Jonas, o tempo, o mundo e a vida desfiguraram a
integridade divina. Deus se recusou a continuar sendo quem era para que o mundo
pudesse existir. Esse esfacelamento do poder divino se agravou com a
complexidade da evolução biológica. O aparecimento do homem no topo da escala
evolutiva foi o golpe de misericórdia na autoridade divina: com o homem veio o
livre-arbítrio, e com isso o mundo ficou à mercê das sandices humanas.
O
irônico, talvez, é que o projeto divino inicialmente imaginado se perderá no
esquecimento do tempo, o mesmo tempo que havia corroído e corrompido sua
integridade. Essa tragédia só não acontecerá se os próprios homens, por uma
decisão moral, retomarem o plano original. Essa seria a função da ética: trazer
de volta a justiça não só para os homens, mas para que Deus possa se sentir de
novo à vontade em sua obra. Os justos vão restaurar o mundo para que, nele,
haja lugar para Deus.
Evidentemente,
o Deus de Hans Jonas não precisa enviar seu Filho, já que Ele mesmo está
padecendo com o espetáculo que involuntariamente montou ao presenciar um circo
de horrores tão pouco afeito à sua natureza. Ao Deus de Hans Jonas, também,
repugnam por princípio banhos de sangue, e o assassinato de seu próprio Filho
lhe pareceria um sadismo e uma futilidade. Este Deus abomina a luxúria do
sofrimento – o que, diga-se de passagem, já é uma heresia e tanto. Pode
agonizar, mas estoicamente, sem estardalhaço.
Seu
ressurgimento, se houver, será circunspecto e discreto, sem fantasmagorias,
penitencias, imolações, sem aquela encenação mórbida e sadomasoquista (a
representação do sacrifício) que, na Igreja, acompanha esse cortejo.
Será um
resgate, não uma ressurreição. Difícil, lento, porém, quem sabe, mais
duradouro. Pois caberá aos justos da Terra provar-Lhe que o bem só enfrentará o
mal se cada homenzinho, homúnculo, partícula de humanidade fizer a sua parte.
Sem alarde. Com a compostura devida e merecida.
Fonte:
A Terra é Redonda

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