A captura simbólica das polícias brasileiras
pelos discursos religiosos, conservadores e de extrema direita
O policial deixa de ser mero executor da lei
e torna-se o braço armado do “senso comum honesto”, dispensando intermediação
judicial
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A ascensão simultânea do neopentecostalismo e
da extrema direita no Brasil inaugurou um ciclo inédito de sobreposição entre
moral religiosa, militarismo e política de segurança. A interpenetração desses
domínios tornou-se particularmente visível dentro das polícias, especialmente
nas polícias militares estaduais, que concentram quase meio milhão de
profissionais armados. Embora a presença de capelanias seja antiga, o que se
observa desde meados dos anos 2010 é um salto qualitativo, não se trata apenas
de prestação de assistência espiritual, mas de um processo de formação de
identidade corporativa tutelado por pastores e líderes políticos que convertem
valores confessionais em doutrina operacional e visão de mundo.
Diversos fatores favoreceram esse quadro.
Primeiro, o pacote de políticas sociais provocado por restrições orçamentárias
empurrou a segurança pública para o centro de debate eleitoral, criando terreno
fértil para atores que prometem “resgatar” a ordem a qualquer preço. Segundo, a
própria estrutura militar das polícias militares, hierárquica, fechada à
sociedade civil e marcada por rituais de coesão, facilita que narrativas
maniqueístas prosperem sem contestação interna. Terceiro, o bolsonarismo, ao
amalgamar símbolos cristãos, nacionalismo e culto às armas, ofereceu um
repertório pronto que passou por uma circular em grupos de WhatsApp
institucionais, tornandose parte do cotidiano dos quartéis. A reportagem da
revista Piauí sobre cultos e jejum de oficiais em batalhões é ilustrativa: ali,
a tropa não se vê apenas como agente do Estado, mas como “escolhida” para uma
guerra espiritual contra o mal encarnado no crime e, por extensão, em
opositores ideológicos.
Esse fenômeno ganha densidade política quando
se converte em votos. O Instituto Sou da Paz detectou um registro de
candidaturas de policiais nas eleições municipais de 2024, movimento descrito
como “policialismo eleitoral”. Esses candidatos chegam ao parlamento sob a
promessa explícita de fortalecer a corporação, de flexibilizar regras de uso da
força e de ampliar o porte de armas. O resultado é um círculo virtuoso para o
conservadorismo, a lei, antes instrumento de limitação do poder policial, passa
a ser moldada por quem carrega a mesma farda. No âmbito federal, as bancadas da
bala e da Bíblia firmaram alianças que bloquearam projetos de controle de
armamentos e engavetaram propostas de desmilitarização, evidenciando como a
captura simbólica para transbordar a arena legislativa.
O estopim que tornou visível o perigo
institucional foi o ataque golpista de 8 de janeiro de 2023. Relatórios do
Gabinete de Segurança Institucional e da Polícia Federal descrevem tanta
omissão quanto à conivência ativa de segmentos da Polícia Militar do Distrito
Federal, alguns dos quais entoavam cânticos religiosos entre os invasores. A
lacuna de comando naquele domingo foi revelada: quando a identificação
ideológica se impõe sobre uma disciplina constitucional, a cadeia de autoridade
civil se desfaz. A democracia depende, no limite, da conformidade das armas ao
veredito das urnas; ao negarse a reprimir os golpistas, parcelas da tropa
sinalizaram que autorizaram uma autoridade transcendental (Deus, pátria ou
líder messiânico) acima do Estado laico.
No plano cotidiano, a captura se manifesta em
práticas seletivas de policiamento. Estudos qualitativos com cadetes da
Universidade de Brasília mostram que a figura do “inimigo” é construída com
base em critérios morais: moradores de rua, usuários de drogas, defensores de
diretrizes identitárias ou religiões afro-brasileiras são percebidos como
ameaças não apenas legais, mas espirituais. O passo seguinte é o afrouxamento
do filtro da legalidade — se o oponente é visto como demoníaco, a violência
letal se converte em exorcismo. Não surpreende, portanto, que os três estados
com maior proporção de policiais evangélicos (Rio de Janeiro, Goiás e Pará)
apresentem altos índices de letalidade policial, ainda que fatores
socioeconômicos também concorram para explicar o quadro.
A literatura internacional sobre
securitização moral fornece lentes úteis para compreender esses processos.
Buzan, Wæver e de Wilde (1998) demonstram que, ao transformar um tema em ameaça
existencial, o Estado legitimará medidas protetoras. No Brasil, a moral
evangélica faz esse papel: crimes contra a família, contra “pessoas de bem” ou
contra “valores cristãos” são elevados a categoria de anomia total,
justificando o emprego ilimitado da força. À securitização somase o populismo
punitivo, conceito que articula a noção de justiça à antipolítica. O policial
deixa de ser mero executor da lei e tornase o braço armado do “senso comum
honesto”, dispensando intermediação judicial. Portanto, não apenas o uso
ampliado das armas, mas a recusa crescente dos mecanismos de controle externo,
sejam corregedorias, ouvidorias ou Ministério Público e até mesmo o uso de
câmeras corporais.
A captura religiosa, entretanto, não se
esgota no discurso. Ela inclui infraestruturas institucionais que avançam sobre
a laicidade. Em 2021, o Ministério da Justiça inaugurou o programa “Assistência
Espiritual para Profissionais de Segurança Pública”; o objetivo era o “cuidado
integral da alma do guerreiro”, linguagem que rompe a neutralidade republicana
para abraçar uma visão messiânica da função policial. Além de boinas e bíblias,
as viagens passaram a ostentar adesivos com versículos; em redes sociais, oficiais
orgulham-se da “racha de Satanás” promovida por suas operações. Muito antes de
se institucionalizar, porém, o ideário já circulava em vídeos de funk gospel
que retratam policiais fardados invocando “o sangue de Jesus” antes de entrar
na favela. Esse imaginário performativo cimenta laços de solidariedade entre fé
e farda, tornandoos quase indissociáveis aos olhos da tropa e da comunidade
religiosa de origem.
A convergência com a extrema direita opera em
três níveis. No simbólico, ambos unidos a retórica do “nós versus eles”,
fortalecendo a gramática do inimigo interno. No programático, defendem agendas
de persistência penal, armamentismo e combate a temas tidos como “ideologia de
gênero”. Não organizacional, articula campanhas políticas e redes de
financiamento que abastecem templos, influenciadores e associações de classe. O
resultado é uma rede de poder que combina capital religioso, eleitoral e
bélico, capaz de obstruir qualquer tentativa de reforma que ameace sua
hegemonia.
Os efeitos sobre a democracia são profundos.
Ao se infiltrar em organizações dotadas de monopólio de violência legítima,
esse movimento minimiza o custo de contestar decisões civis. Não se trata mais
de lobby tradicional, mas de potencial veto armado a políticas que frustram sua
visão moral do mundo. A política deixa de ser espaço de negociação para se
converter em arena de redenção e, como recorda Carl Schmitt, quem define o
inimigo decide sobre a exceção. No Brasil de 2025, as audiências públicas sobre
câmeras corporais evidenciaram a dificuldade de implantação de sistemas de
supervisão imparciais, associações policiais evocam “autonomia de culto” para
emitir sensores que captem áudio enquanto repetem slogans bolsonaristas contra
“advogados de bandidos”.
Vencer esse impasse exige estratégias
multissetoriais. A primeira é fortalecer os controles externos independentes,
cegos contra a pressão corporativa. A segunda envolve redirecionar a formação
policial para uma ética laica de direitos humanos, na qual liberdade religiosa
seja direito individual e não diretriz institucional. A terceira passagem pela
diversificação interna: mulheres, negros e não cristãos precisam ocupar
posições de comando para romper a homogeneidade ideológica que facilita uma
captura. Há experiências de polícia comunitária em Pernambuco e no Ceará,
capitaneadas por oficiais civis, reduziram a letalidade sem sacrificar
autoridade, provando que a profissionalização não enfraquece a corporação, mas
ela lhe devolve legitimidade.
No plano cultural, é preciso disputar
narrativas nas mesmas plataformas onde a captura avança. Projetos audiovisuais
que retratem policiais defendendo a Constituição e não podem o “pecado zero”
ressignificar heroísmos. Iniciativas de mediação comunitária que envolvem
terreiros, coletivos LGBTQIA+ e conselhos de segurança ampliam o repertório
ético da tropa, mostrando que a função policial é proteger a pluralidade
democrática, não um conjunto particular de valores.
Nada disso, contudo, surtirá efeito sem
vontade política de alto nível. As eleições de 2026, já anunciadas como
plebiscito entre continuidade e ruptura, colocarão o tema no centro do debate
público. Se as forças conservadoras lograrem ampliar a bancada armada, uma
janela de oportunidade para reformas pode fecharse por uma geração. Em
contrapartida, uma coalizão democrática capaz de unir partidos de
centro-esquerda, movimentos sociais e parcelas da sociedade civil religiosa
comprometida com os direitos humanos talvez reabra o caminho para a
desmilitarização tão adiada.
A cooptação das polícias brasileiras por
discursos religiososconservadores e de extremadireita não tem representação
periférica, mas é um epicentro de riscos à democracia. Quando as armas se unem
às convicções de salvação e ao populismo punitivo, o projeto republicano de
neutralidade se desfaz, e o Estado se transforma em instrumento de cruz moral.
Se a sociedade não reagir com firmeza, poderemos observar a consolidação de um
complexo policialreligiosoautoritário que, sustentado por legitimidade eleitoral
e amparo espiritual, minará as instituições por dentro. O Brasil já provou em
2023 quão frágil pode ser a linha que separa a ordem democrática de aventura
golpista. Evitar que essa experiência se converta em norma histórica depende,
em última instância, de nossa capacidade de resgatar a laicidade, democratizar
a segurança pública e reafirmar que, em uma república, não há espada que pese
mais do que a soberania civil.
Fonte: Por Roberto Uchôa, no Le Monde

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