REDEMOCRATIZAÇÃO:
Quarenta anos de uma democracia
fundada por ditadores
Não
houve ruptura, apenas a imposição liberal do projeto militar que tem como
objetivo central a não participação popular na condução do país
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Era
2009, 24 anos depois da transição democrática, que os pesquisadores do
CPDOC/FGV entrevistaram o ex-ministro das Relações Exteriores, Saraiva
Guerreiro. O último chanceler do Regime, ou da “Revolução”, como muitos deles
falavam em ambientes internos, mostrou seu depoimento e sua memória sobre a
transição. Ele diz: “(…) eu não vejo na Nova República, como é chamada, uma
quebra propriamente com o passado, mas sim uma busca de refazer tudo de acordo
com o que eram ideais do passado que nunca conseguimos efetivar”.
O
historiador Tiago Monteiro inicia seu artigo na saudosa Revista de
História da Biblioteca Nacional, destacando um ponto central para
entendermos o processo de redemocratização: “A eleição de janeiro de 1985, que
muitos insistem em apresentar como uma derrota das Forças Armadas, constitui,
na verdade, a própria vitória da Revolução de 1964, através da consolidação do
processo político brasileiro”. O que nos faz pensar que a democracia
inaugurada pela chamada “Nova República” foi fundada por ditadores. Um paradoxo
curioso.
A ideia
de que o povo nas ruas, que as manifestações pelas diretas já etc. levaram à
redemocratização não é confirmada pelos fatos. Até porque, em 25 de abril de
1984, a emenda das Diretas foi derrotada por escassez de deputados. Deste modo,
o professor Marcos Napolitano questiona: “Como milhões de pessoas nas ruas não
conseguiram derrotar um regime isolado e desprestigiado, nem dobrar seus
representantes no Congresso?”
Os
militares queriam uma democracia controlada pelas Forças Armadas. O objetivo
era manter o poder militar via Estado de direito. O que vemos aqui é o que
Maria Celina D’Araújo, Gláucio Soares e Celso Castro chamaram, tendo como
objeto a cultura política do período ditatorial brasileiro, de “utopia
militar”. Essa utopia “estava claramente fundada na ideia de que os militares
eram, naquele momento, superiores aos civis em questões como patriotismo,
conhecimento da realidade brasileira e retidão moral”. Para Carlos Fico, a
utopia militar trata-se da “crença de que seria possível eliminar quaisquer
formas de dissenso (comunismo, ‘subversão, ‘corrupção’) tendo em vista a
inserção do Brasil no campo da ‘democracia ociedental cristã’”. De acordo
com essa ideologia, o sistema de valores ocidentais só seria “salvo” por meio
de uma utópica “democracia militar ocidental”.
No
início planejava-se “a constitucionalização do regime, mas não o retorno do
país à democracia liberal”. No entanto, quatro fatores prejudicaram esse
projeto: a vitória do MDB nas eleições parlamentares de 1974; a crise
econômica; o fato do presidente Jimmy Carter iniciar uma política de direitos
humanos que não tolerava mais ditaduras no continente; e os assassinatos em
quartéis, com as mortes do jornalista Vladimir Herzog e de Manuel Fiel Filho.
Contudo,
o projeto militar encontrou uma solução: Tancredo Neves. O candidato civil era
“diplomado na ESG e frequentador das reuniões de ex-alunos da
instituição”. Tancredo se comprometeu com o projeto de Distensão – então
chamado de Abertura – e de não punir nenhum militar envolvido na repressão.
Escolheu para ministro generais “esguianos” – formados pela ESG – como os
generais Ivan Mendes e Leônidas Gonçalves.
O que
ocorreu foi uma transição pelo alto. Talvez por isso, a morte de Tancredo
ganhou uma cobertura ampla, que o transformou em um verdadeiro mito pela
imprensa que apoiou a ditadura militar. O Fantástico da Rede Globo dedicou
quatro horas transformando o presidente eleito em mártir; “claramente
representado pelo mito cristão da redenção pela morte do messias”.
Tancredo
faleceu em 21 de abril de 1985 e o primeiro presidente civil acabou sendo o seu
vice, José Sarney, político vindo da Arena – partido ligado ao regime militar.
Sarney
assumiu a posse antes de Tancredo morrer, que só autorizou a cirurgia (que não
viria a ter sucesso) ao saber que Sarney seria empossado.
O
historiador Jorge Ferreira mostra um episódio emblemático: “O general João
Figueiredo, desafeto político de Sarney, negou-se a passar-lhe a faixa
presidencial e saiu pela porta dos fundos do Palácio do Planalto. Ninguém
parecia perceber e nem se preocupar com o episódio. Os militares, que entraram
no Palácio arrombando a porta da frente, saíram sem serem percebidos pela porta
dos fundos”.
Desse
modo, o povo mais uma vez viu os militares mexerem os pauzinhos e determinarem
os rumos da República enquanto assistiam tudo bestializados. Não houve ruptura,
apenas a imposição liberal do projeto militar que tem como objetivo central a
não participação popular na condução do país.
A frase
de Bolsonaro, pronunciada em 2021, perante os militares no Rio de Janeiro
descreve o plano militar: “Quem decide se um povo vai viver na democracia ou na
ditadura são as suas Forças Armadas. Não tem ditadura onde as Forças Armadas
não a apoiam”. Indiretamente, essa frase pode ser interpretada exatamente da
maneira pela qual os militares do período pensavam a redemocratização. Uma
espécie de tutela, no qual eles decidem o momento de fazer uma intervenção ou
não.
·
Os militares e o mercado financeiro
Desde
1985, os militares se retiraram da cena política com a certeza de que não iriam
ser punidos pelos crimes cometidos entre 1964 e 1985. De certa forma, eles
negociaram a transição com civis que fossem próximos do entorno militar ou que
pelo menos tivessem um sentido mais conservador. Como bem aponta o historiador
Adriano de Freixo, os militares aceitaram perder o protagonismo político,
mas não ser controlados pelas forças civis.
Durante
o período em que não estiveram no centro do poder político, as diversas
tentativas de controle dos civis causaram crises. Por exemplo, no segundo
governo FHC (1998-2002), a criação do Ministério da Defesa (MD) foi uma
tentativa de fazer um maior controle das forças, algo que sofreu críticas e
acabou não sendo bem aceito pelos militares. Depois, durante uma parte da
gestão Lula II (2006-2010) e Dilma (2011-2014), iniciou-se as discussões sobre
as reformas no ensino militar, com a possibilidade de mudar o currículo e
colocar temáticas que fossem mais próximas do debate democrático. A simples
menção a mudanças no currículo gerou muitas dificuldades para as gestões
petistas. A última tentativa de mudar o pensamento militar autoritário foi com
a Comissão da Verdade, algo que não foi aceito pelos militares que se basearam
na Lei da Anistia para não mexer naquele antigo passado.
Entretanto,
os militares, após um longo período na caserna, aproveitaram a oportunidade que
as jornadas de 2013 trouxeram. A crise econômica e política que gerou o golpe
de 2016 abriu uma oportunidade para recuperar o protagonismo político. Apesar
de não aceitarem e não respeitarem uma figura do “baixo clero” e indisciplinada
como Bolsonaro, eles entenderam que era uma possibilidade de ter alguém
comandando a Presidência da República que poderia favorecer as suas pautas.
Entre as quais estavam um constante aumento de militares nos cargos da
administração federal, valorização salarial e aumento do orçamento para as
Forças Armadas.
Para
além dessas demandas classistas, os militares da alta cúpula que cercaram Jair
Bolsonaro, eram formados pela Escola dos Agulhas Negras (Aman) e com a
mentalidade autoritária militar desde 1889. Isto é, ancorada nos três pilares
que aponta Carlos Fico: o desprezo pela política, a convicção da
superioridade dos militares em relação aos civis e a crença de que a sociedade
não está preparada para se governar. Logo, entende-se porque o alto escalão das
forças estava disposto a fomentar um golpe de Estado no país. Eles são formados
para acreditarem que são superiores moralmente na governança do país, e se
levarmos em conta que foram eles que negociaram a transição democrática em
1985, em suas cabeças eles estavam apenas fazendo o que era correto para a sociedade,
como bons tutores da nação.
Contudo,
nessa democracia forjada pelas Forças Armadas, não são elas que determinam as
medidas que serão adotadas pelo governo. Dentro do sistema neoliberal
brasileiro, quem dita as regras são o mercado financeiro e o agronegócio. E,
como nesse sistema a principal responsabilidade do Estado é a segurança, já que
a meta é privatizar tudo (educação, saúde etc.), os militares (principalmente
no Brasil onde não houve um acerto de contas com os crimes cometidos por eles
durante a ditadura) acabam adquirindo um grande protagonismo, ganhando
reconhecimento e prestígio perante a população que vê nas Forças Armadas a
solução final para combater a violência. O neoliberalismo tornou-se uma espécie
de antessala de uma ditadura em nome da segurança.
Uma
democracia fundada por ditadores e administrada pelas elites econômicas pode
ser chamada de democracia?
Nesse
sentido, é importante desconstruir essa noção de que os militares são
superiores em relação aos civis. E para tanto, o julgamento sobre a tentativa
de golpe de Estado e destruição das instituições democráticas, é um ponto
fundamental, posto que, desde 1889, não houve, em nossa história, punições para
os militares que fomentaram golpes militares.
Além
disso, seria imprescindível, em termos econômicos, compreender que o
capitalismo limita a democracia. A cientista política, Ellen M. Wood, é
enfática sobre esta questão: “Não existe um capitalismo governado pelo poder
popular no qual o desejo das pessoas seja privilegiado aos dos imperativos do
ganho e da acumulação e no qual os requisitos da maximização do benefício não
ditem as condições mais básicas de vida. O capitalismo é estruturalmente
antiético em relação à democracia, em princípio, pela razão histórica mais
óbvia: não existiu nunca uma sociedade capitalista na qual não tenha sido
atribuído à riqueza um acesso privilegiado ao poder”.
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O sonho e o voto – perigo à vista! Por Liszt Vieira
Em
época eleitoral, muita gente discute o papel da economia ou dos costumes na
captação do voto e esquece um fator tão ou talvez mais importante: a esperança.
Fazer
propaganda das realizações feitas pelo governo, ou criticar a ausência ou más
realizações dos governos adversários, é falar do passado sem dar esperança em
relação ao futuro. Além disso, dados macroeconômicos como PIB, taxa de
desemprego ou renda, não influenciam voto. O único dado econômico que pesa na
decisão da maioria do eleitorado é o preço dos alimentos. E, nesse quesito, o
governo Lula não vai bem.
As
campanhas memoráveis dos governos Lula 1 e Lula 2 foram lastreadas na
esperança. Em recente entrevista, o cientista político Marcos Nobre lembrou a
canção Lula Lá. Essa canção lavava a alma e irradiava
esperança. E no atual Governo Lula 3, o que temos em matéria de esperança? A
essência do governo é fazer aliança com a direita, em nome da governabilidade,
para barrar a extrema direita. Ficamos numa posição reativa, sem esperança
quanto ao futuro. Somos contra o bolsonarismo, mas somos a favor de que? Algumas
propostas isoladas não chegam a configurar um projeto político.
Os
partidos que apoiam o governo não têm projetos políticos, não apontam para o
futuro, não apresentam nenhuma utopia. Os bons parlamentares são aqueles que
brigam com a direita. A agenda de esquerda desapareceu e a esquerda se limita a
combater a extrema direita. Uma atitude puramente reativa, e não mais
propositiva. E apenas combater a extrema direita, por mais importante que seja,
não gera esperança.
Os
partidos de esquerda apoiam o governo que, em nome da governabilidade, faz
concessões ao mercado, aos militares e à direita parlamentar. Mas quem mais
ganha com isso é a direita que se fortalece politicamente com o abandono, pela
esquerda, de sua agenda de mudanças. A conciliação permite pequenos avanços a
curto prazo, mas contribui para um futuro enfraquecimento eleitoral. O
sociólogo Rudá Ricci, diretor do Instituto Cultiva, afirmou que “acenar para a
direita é morrer na praia”.
Usando
uma metáfora futebolística, o governo montou uma boa defesa, mas o ataque é
fraco e muitas vezes ineficaz, e o eleitorado quer ver gols. No plano interno,
Lula joga na defesa. No plano internacional, joga no meio do campo, propondo
mediação entre países em conflito. Isso é o máximo que a tradição diplomática
permite. Mas, dessa forma, deixa de atacar e dizer, por exemplo, que o
genocídio e o extermínio do povo palestino é política de Estado em Israel.
Seria um gol que receberia muito mais aplausos do que vaias da torcida
contrária, e que contribuiria para fortalecer sua imagem internacional de
estadista.
O fato
é que no Brasil, e não só, a maioria do eleitorado quer mudança. Os eleitores,
em sua maioria, são contra o “sistema”. E a esquerda tornou-se o sistema, apoia
um governo que é o sistema. Os partidos de esquerda não propõem mudança de
paradigma, não atacam o grande capital para não prejudicar o governo, não
apresentam propostas de mudanças estruturais.
Assim,
a esquerda perde votos para a direita que fala em mudança. Grande parte da
juventude na Argentina votou em Javier Milei, não por identificação política,
mas por desejo de mudança, sem ter a menor ideia do que viria a ser feito
depois.
No
Brasil, as pesquisas sobre a popularidade do presidente e do governo oscilam e,
provavelmente, vão continuar oscilando, sem apontar uma tendência definida.
Mas, mesmo nas pesquisas em que Lula aparece derrotando seus adversários, a
rejeição é maior do que a aprovação, e isso não é um bom sinal. Para
contrabalançar, a propaganda oficial do governo apela para slogans tradicionalmente
usados pela direita, como o bordão “O Brasil é dos brasileiros”. É esse tipo
de slogan que justifica a repressão aos imigrantes, na Europa
e nos EUA.
Em nome
da governabilidade, a esquerda acaba indo a reboque da direita. Ou isso muda e
voltamos a despertar no povo a esperança, ou corremos o risco de uma derrota na
próxima eleição presidencial. Nelson Mandela dizia que “a esperança é uma arma
poderosa”, mas a rotina burocrática do poder leva os dirigentes a discursos
repetitivos e monótonos que não apontam para nenhuma utopia nem despertam
esperança. Seria bom não esquecer a lição de Victor Hugo para quem, “para criar
o futuro, nada é melhor do que um sonho”.
Entre
um candidato que presta contas de suas realizações e outro que promete um
futuro melhor, mesmo com promessas duvidosas, este último tende a ter mais
votos porque trouxe a esperança para o coração e mente das pessoas. A proposta
de fazer aliança com a direita para barrar a extrema direita não deve funcionar
mais porque a extrema direita, com seu candidato natural declarado inelegível,
tenderá a acompanhar um forte candidato da direita, apoiado pela grande mídia
comercial e pelo governo americano. Isso significa enxurradas de dinheiro
e fake news em apoio ao candidato da oposição.
Precisamos
de um projeto político que traga esperanças para o futuro. Precisamos de uma
nova utopia política que nos traga de volta o sonho, esse fator poderoso na
decisão de votar
Fonte:
Por Raphael Silva Fagundes e Danilo Sorato, no Le Monde
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