O
retorno do antigo 'ouro branco' da Sicília mencionado na Bíblia
É uma manhã quente e abafada nas
montanhas Madonie, na Sicília – uma cadeia de picos escarpados a cerca de
65 km a leste de Palermo, na Itália.
Em um campo de freixos, uma voz humana
interrompe o canto das cigarras.
"Você veio na época certa", exclama
o agricultor local Giulio Gelardi, apontando para um ramo riscado de branco.
"Este é o famoso maná."
Na casca de cada árvore, é possível observar
espessas linhas de maná, uma resina branca rica em minerais mencionada 17 vezes
na Bíblia. Ela é usada há séculos como remédio e adoçante natural.
A colheita do maná – a prática de corte da
casca de árvores da espécie Fraxinus ornus para coletar sua
seiva – era uma prática comum em todo o Mediterrâneo. Mas, nos últimos 80 anos,
a urbanização e a industrialização fizeram com que ela quase desaparecesse.
Tudo mudou três décadas atrás, quando Gelardi
assumiu para si a missão de trazer este superalimento bíblico de volta para a
mesa. E, desde então, chefs de cozinha e confeiteiros passaram a empregar esta
seiva antes esquecida de formas inovadoras.
Talvez você já tenha ouvido falar em maná,
mesmo sem nunca ter provado.
A expressão "maná que veio do céu"
é uma referência a uma história bíblica sobre um alimento que caía do céu para
sustentar os israelitas que cruzavam o deserto do Sinai.
No Livro do Êxodo (16:14), o maná é descrito
como flocos finos semelhantes à geada cobrindo o solo.
Especialistas têm opiniões divergentes sobre
qual seria a substância específica a que se refere esta passagem.
Mas uma resina parecida com mel, na forma de
flocos e com a cor da geada, conhecida como maná, é extraída da casca dos
freixos na região do Mediterrâneo há mais de um milênio.
O Parque Natural
Madonie, onde ficam as montanhas, tem 40 mil
hectares. A colheita do maná na região data pelo menos do
século 9, quando a ilha estava sob o domínio dos
árabes.
A seiva doce tem sabor de cana de açúcar, com
notas de amêndoas. Durante o Renascimento, produtores sicilianos costumavam
coletar o maná e vendê-lo para comerciantes de todo o Mediterrâneo.
O comércio do maná se tornou tão lucrativo
que o reino de Nápoles decidiu criar impostos sobre o produto no século 16.
Até a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o
cultivo do maná era uma forma de ganhar a vida para muitas famílias
sicilianas. Imagens de 1936 mostram os agricultores locais colhendo a
substância.
Ela era vendida regularmente para empresas
farmacêuticas, que extraíam manitol, um álcool de açúcar usado como adoçante e
diurético.
Nos anos 1950, cientistas encontraram uma
forma de sintetizar o manitol. E, nas décadas que se seguiram, a colheita do
maná virtualmente desapareceu.
Mas, em 1985, Gelardi retornou à sua cidade
natal de Pollina, na Sicília, depois de 15 anos de ausência. Ele percebeu
que aquela técnica – um dos principais elementos da sua cultura local – estava
desaparecendo.
"Quando eu era criança, todos sabiam
extrair maná", ele conta. "Quando voltei, havia menos de 100
agricultores que ainda conheciam a técnica."
Pollina é uma cidade medieval de 3 mil
habitantes que parece ter sido esculpida junto com os morros de calcário ao seu
redor.
Quando era criança, Gelardi aprendeu com seus
pais a colher maná durante o verão. "A colheita de maná envolvia toda a
família", explica ele.
Os homens usavam ganchos artesanais para
fazer cortes finos ao longo da casca. As mulheres coletavam a seiva
transbordante usando talos secos de pera espinhosa e as crianças transformavam
aquele néctar pegajoso em cones cilíndricos, chamados em italiano de cannoli, devido à sua similaridade com o popular doce siciliano.
Para Gelardi, a parte mais difícil da
colheita de maná é saber quando cortar a casca. O freixo produz seiva o ano
inteiro, mas só há resina suficiente para a colheita durante os dias mais
quentes do ano.
Gelardi explica que, se você cortar a casca
cedo demais, pode fazer com que as árvores parem de produzir o maná por
completo.
"Descobrir quando chegou o momento do
corte é uma técnica única, baseada na observação e na intuição", ele
conta. "[É preciso] ouvir cada planta."
Folhas que perdem sua coloração verde escura
e ficam mais claras com marcas de amarelo, por exemplo, podem indicar que a
árvore atingiu o pico da produção de maná.
Identificar rachaduras no solo perto das
raízes também pode significar que a árvore está pronta para a colheita. As
plantas produzem seiva em excesso para compensar os períodos secos.
Quando a árvore parece estar pronta, os
produtores de maná produzem um corte raso na casca e observam a reação da
planta. Se uma planta estiver suficientemente madura, uma pequena quantidade de
resina irá pingar do corte.
Os produtores podem então começar a fazer
talhos mais profundos – e pequenos fluxos de maná pegajoso irão fluir em
direção às raízes.
"A colheita de maná não é algo que você
possa aprender com um livro", explica Gelardi. "Se não passarmos
estes conhecimentos para a geração seguinte, perderemos séculos de
conhecimentos dos produtores locais."
Alguns meses depois de voltar para Pollina,
Gelardi se pôs a reviver a tradição decadente. Mas, no início, a maioria dos
moradores locais não recebeu com entusiasmo o seu "renascimento do
maná".
"Meus amigos achavam que eu estava
louco", relembra ele. "Eles diziam que o maná era algo do
passado."
Mas Gelardi não se abateu e passou meses
aprendendo tudo o que podia sobre aquela seiva. Ele passava o tempo com
produtores mais idosos, para aperfeiçoar sua técnicas de colheita, e visitava a
biblioteca pública de Palermo para estudar o maná.
"Eu sabia que o maná era usado
localmente como adoçante, hidratante e diurético", ele conta. "Mas
aprendi que ele também poderia ser usado para tratar intoxicações
alimentares, diversas condições da pele, artrite e sintomas do resfriado."
Gelardi também começou a perceber como o maná
definiu a geografia e a cultura local. Um exemplo é o morro próximo de
Gibilmaná, que abriga um famoso santuário. Seu nome vem das palavras árabes gibil ("montanha") e maná.
O maná também deu origem a expressões locais,
como a frase vivere di mieli e manna – "viver de mel e
maná", ou seja, viver uma vida de abundância.
Em 1986, Gelardi começou a distribuir
panfletos com informações sobre o maná para os turistas que se hospedavam em um
resort próximo.
"As pessoas ficaram fascinadas com as
propriedades curativas do maná e seu impacto sobre a cultura local",
relembra ele.
Nos anos 1990, Gelardi promovia tours
demonstrando aos turistas internacionais como colher maná. "Eles começaram
a considerar o maná o nosso superalimento local", ele conta.
O maná é composto
principalmente de manitol, um composto em forma de
cristais naturalmente doce, e minerais como potássio, magnésio e cálcio.
Segundo a professora de botânica Vivienne
Spadaro, da Universidade de Palermo, a resina branca espessa pode ser usada
como suplemento alimentar para reintegrar minerais, especialmente potássio, e
como base de diversas medicações.
"O maná é usado para tratar prisão de
ventre, tosse, dor de garganta e feridas na pele, devido às suas propriedades
suavizantes e descongestionantes", explica ela.
E, devido ao seu baixo índice glicêmico,
Spadaro afirma que é possível usar uma pequena quantidade de maná como adoçante
para pessoas diabéticas ou com dieta hipocalórica.
·
Inovações e
popularização
Enquanto liderava tours de maná, Gelardi
desenvolveu uma forma mais eficiente de colher a substância, com muito menos
risco de contaminação da casca ou por insetos.
Ele criou uma técnica de "maná
limpo", fixando um pequeno bico de alumínio à árvore. Com este método, o
maná pode fluir para longe do tronco, por meio de uma linha de pesca fixada ao
bico.
Esta inovação permitiu que Gelardi
praticamente dobrasse sua produção da substância.
Nos anos que se seguiram, Gelardi começou a
vender maná para panificadores e chefs de confeitaria. Eles incorporaram maná
em tudo, desde cannoli e wafers até flocos e chocolates.
Ele também vendeu maná para farmácias, para
produzir laxantes, suplementos minerais e produtos para a pele. E, nos últimos
anos, as empresas francesas de produtos para a pele Biotherm e Yves Roche passaram a usar maná para produzir hidratantes.
Em 2002, o maná das montanhas Madonie foi
declarado ingrediente protegido pela organização internacional Slow Food, que promove tradições alimentares ameaçadas.
E, em meados dos anos 2000, o maná passou a
ser um ingrediente cobiçado pelos chefs e confeiteiros locais da Sicília.
"Comecei a usar maná para produzir pandolce (bolo
de frutas) com maná e amêndoas, mas percebi que ele também vai bem com pratos
picantes", conta o chef Giuseppe Zingales, do restaurante Hostaria Cycas, na aldeia
medieval próxima de Castelbuono.
O restaurante oferece pratos como lombo de
porco com cobertura de maná; risoto com aspargos, bacon e maná; e pudim de
cardo-silvestre com fondue de maná.
No Ristorante Nangalarruni, também em Castelbuono, os chefs Peppe Carollo e sua
filha Francesca usam maná picado para criar um dos pratos característicos do
restaurante: leitão com amêndoas, pistache e cobertura de maná.
"O segredo é [usar] bem", explica
Francesca Carollo. "Uma pequena porção de maná com sabor doce oferece um
contraste agradável com o sabor da carne assada. Mas o excesso de maná pode
deixar o prato muito doce."
Os chefs de confeitaria ficaram
particularmente interessados pelo maná.
Nicola
Fiasconaro é um dos mais famosos confeiteiros da
Itália. Ele passou a produzir uma edição especial de panetone, feito com chocolate e maná em flocos.
Entre 2014 e 2016, o chef Davide Oldani, estrelado
pelo Michelin, incluiu palitos de maná cobertos com chocolate no menu do seu
restaurante D'O na região de Milão.
Nos últimos anos, o "ouro branco"
das Madonie, como às vezes é chamado, atingiu o preço de 200 euros (cerca de R$ 1,28 mil) por kg. Ele é usado para
produzir uma série de produtos assados sem açúcar, desde muffins até biscoitos.
A maior parte dos chefs compra maná do Consórcio de Maná das Madonie, uma cooperativa criada em 2015 por Gelardi e outros
produtores, para comercializar produtos de maná e promover a colheita da seiva
entre os mais jovens.
"Cresci ouvindo falar sobre o maná, mas
nunca havia aprendido como fazer a colheita", relembra Mario Cicero, um
dos membros do Consórcio.
Natural de Castelbuono, ele passou anos
trabalhando pelo mundo como chef de cozinha, até retornar às montanhas Madonie.
E, como parte do seu treinamento, Cicero passou meses com produtores mais
velhos, como Gelardi.
"Giulio me ensinou muitos truques",
ele conta. "Mas ele transmitiu principalmente uma paixão contagiosa pela
colheita do maná."
Agora, Cicero mantém 200 freixos na sua
fazenda perto de Castelbuono. Ele espera que outros jovens pratiquem a colheita
de maná.
Ver produtores jovens como Cicero se
tornarem ntaccaluori ("cortadores", em idioma
siciliano) é o maior orgulho de Gelardi.
Para ele, "cada jovem que aprende a
colher maná irá garantir a sobrevivência de uma tradição secular".
Fonte:
BBC Travel

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