Mulheres estão sendo vigiadas por apps
espiões e isso não é coisa de Black Mirror
Imagina só: você recebe um e-mail, ou uma
mensagem em seu celular, com ameaças de divulgação de alguma informação ou
imagem sua que é particular e você gostaria que continuasse assim. Ou, então,
descobre que alguém tem acompanhado cada passo seu pela localização do seu
celular, a partir de um aplicativo que você mesmo baixou para usar no seu
dia-a-dia e sequer sabia que poderia ser usado por um stalker.
Não é papo de futuro distópico: isso é real e
tem ocorrido em muitos relacionamentos abusivos por meio de aplicativos que não
imaginamos que são utilizados para essa finalidade – os chamados dual-use apps
(aplicativos de uso duplo).
Os casos de violência de gênero, incluindo
stalking e abuso cibernético, têm se tornado cada vez mais comuns, nos
relembrando que a distopia roteirizada na série norte americana Black Mirror,
na qual a tecnologia causa impactos perturbadores na vida coletiva, não é
apenas uma projeção futurista, mas um lembrete de que formas conhecidas de
violência se renovam em práticas renovadas pela tecnologia.
Segundo dados do Anuário Brasileiro de
Segurança Pública de 2024, por exemplo, as ocorrências de crime de stalking
aumentaram 34,5% entre 2023 e 2024, e os casos de divulgação de cenas de
violência sexual aumentaram em 47,8% no mesmo período.
A gestão dos nossos dados por terceiros (seja
uma empresa ou um parceiro) pode facilitar violências, nos lembrando a
importância de nos protegermos o ano inteiro. Mas mais do que isso: é
fundamental pensar sobre formas de resistência que podem promover um ambiente
digital mais seguro.
<><> Dual-use apps: quando a
ferramenta se disfarça
A vigilância sobre mulheres em
relacionamentos íntimos abusivos pode ser facilitada pelo controle de
informações pessoais, como senhas, localização em tempo real, imagens, agenda,
conversas, e tantos outros dados que revelam aspectos sobre sua vida íntima.
E o que temos observado nas pesquisas do
projeto Vaza, Stalker! é que ter acesso a essas informações online pode ser
mais fácil do que se imagina: monitoradas por diversos aplicativos, basta que
um agente malicioso consiga se infiltrar em algum desses apps que o estrago
está feito, como explicam
pesquisadoras estadunidenses em um estudo sobre
práticas online de parceiros abusivos.
Tratando-se de IPV (intimate partner
violence ou violência por parceiro íntimo, em português), esse
problema se complexifica: como lidar com a invasão de privacidade quando o
perigo está tão próximo, na forma de um parceiro íntimo (ou ex) e em
aplicativos digitais tão usados? Assim como a violência em relacionamentos
abusivos pode vir mascarada em uma fantasia de amor perfeito, os aplicativos
utilizados pelos perpetradores desse tipo de abuso também podem ser
camuflados.
Embora aplicativos explicitamente invasivos
também sejam utilizados, os chamados “dual-use apps” são ferramentas
frequentemente mobilizadas para espionagem. Esses “aplicativos de uso duplo”
são apps que podem ter suas funções manipuladas para atingir finalidades
diferentes daquelas previstas em sua programação: nesse caso, para a violência
de gênero.
Mesmo que não seja sua função inicial, esses
apps podem ter suas aplicabilidades utilizadas para fins de espionagem ou
perseguição do seu usuário, e não dependem do acesso do perpetrador da
violência ao dispositivo da vítima para operar depois de instalados, já que
suas funcionalidades são automáticas.
É aí que mora o perigo: diferentemente da
ideia que muitas vezes se tem de que a espionagem e a invasão de dados se
dariam por agentes externos, desconhecidos e maliciosos (o que também pode
ocorrer), nesse caso, a ameaça está em apps que, dentro de suas
funcionalidades, já deixam explícitas capacidades como as de localizar o
dispositivo, gravar fotos, áudios e vídeos, registrar comunicações, monitorar
dados e tantas outras funções que, nas entrelinhas, são um prato cheio para os
abusadores.
É o que mostra um estudo global sobre
os riscos de vigilância por aplicativos da Play Store. Reaproveitados para a
violência dentro de casa, os dual-use apps fornecem acesso a informações que
permitem o monitoramento da vida das usuárias sem que elas percebam, tais como
dados de geolocalização, comunicação por áudio e texto, fotos e vídeos,
histórico de busca, informações bancárias, dados sobre a vida afetiva e sexual,
rotina e até informações sobre a saúde.
Um aplicativo de ciclo menstrual, que
monitora sintomas, uso de métodos contraceptivos e periodicidade de relações
sexuais, pode ser usado para controlar a vida íntima da usuária. Um parceiro
abusivo poderia querer saber como e onde a mulher gasta seu dinheiro, com quem
ela conversa e seus interesses. Tudo isso é facilmente encontrado em
aplicativos cotidianos.
Pesquisas feitas em vários países já mostram
quais são os aplicativos mais usados para esse tipo de violência. Assim como o
agressor pode estar dentro de casa, a vigilância também pode estar no seu
celular.
- Redes
sociais como Instagram, Facebook, TikTok, Twitter etc –
fornecem dados como localização, registros de comunicação e interações
sociais.
- Aplicativos
de rastreio e de controle parental: como Life360, Find My Kids, MMGuardian
e Google Maps – permitem acesso à localização em tempo real do
dispositivo, bem como destinos visitados e trajetos percorridos. Ainda,
muitos desses apps permitem monitorar a localização do indivíduo em tempo
real via bluetooth.
- Aplicativos
anti-furto:
como Encontre Meu Dispositivo, Apple AirTags e Track My Phone, que
permitem localizar o dispositivo em tempo real e, assim, localizar o
usuário
- Aplicativos
de mensagens:
Gmail, Whatsapp, SMS, (fornecem dados como contatos, mensagens e ligações
íntimas e, no caso do e-mail, pode permitir acesso a outras contas e
aplicativos, como agenda)
- Aplicativos
de relacionamento: como o Tinder e o Bumblee: permitem acesso a
registros de comunicação, fotos e interações online, que podem ser usadas
para intimidar ou chantagear a vítima, além de controle sobre a vida
sexual do indivíduo e, possivelmente, localização;
- Femtech: como os apps
de ciclo menstrual e gravidez (a categoria é mencionada nas pesquisas, mas
não houve citação de nomes de aplicativos específicos) que fornecem dados
relativos à saúde e aos detalhes da vida íntima da usuária.
Utilizar softwares complexos e aprimorados
para espionagem pode ser uma opção para a perpetuação dessa violência. No
entanto, alguns apps já suprem essa função de espionagem, não são reconhecidos
por antivírus, muitas vezes são instalados pelas próprias mulheres e, quando
não o são, sequer despertam suspeita.
<><> Como se proteger da
espionagem
Existem formas de se proteger e enfrentar a
violência de gênero em ambientes online:
● Verifique onde os dados são armazenados
antes de criar uma conta: Antes de se cadastrar em um aplicativo, procure saber
onde as informações que você fornecer serão guardadas. Isso é fundamental para
proteger seus dados pessoais contra possíveis vazamentos ou usos indevidos.
● Leia as políticas de privacidade (ou,
ao menos, procure por alertas como “compartilha dados com terceiros”): As
políticas de privacidade explicam como seus dados serão tratados. Fique atento
a menções que indicam o compartilhamento de suas informações com outras
empresas, o que pode afetar sua privacidade.
● Limite as permissões dos aplicativos –
evite conceder acesso a contatos, calendário, microfone ou localização, a menos
que seja essencial. Revise as permissões solicitadas e permita apenas o que for
necessário para o funcionamento do aplicativo. Isso ajuda a evitar o
compartilhamento desnecessário de dados sensíveis.
● Desinstale aplicativos que não usa para
reduzir riscos: Manter aplicativos que não são mais utilizados pode aumentar a
exposição dos seus dados. Elimine os desnecessários para diminuir as chances de
comprometimento da sua segurança.
● Desative os serviços de localização, a não
ser que esteja utilizando o app: Muitos aplicativos pedem acesso à sua
localização, mas nem sempre isso é necessário. Desative essa função quando não
for essencial para o uso do app, para evitar o rastreamento constante.
● Cuide o uso de aplicativos dual-use: Ao
instalar um app, esteja atenta às suas funcionalidades e às possíveis
manipulações maléficas do seu uso.
● Além disso, tenha cuidado com quem
você compartilha essas informações: apesar de talvez não haver desconfiança,
lembre-se de valorizar sua privacidade, mesmo em relacionamentos amorosos. Nem
todas as suas informações, como senhas e localização, precisam estar sempre à
disposição do seu parceiro.
● Esteja atenta aos sinais e lembre-se
de que limites são bem-vindos. Algumas estratégias interessantes para a
proteção da privacidade em apps são o uso de autenticação de multifatores, a
escolha de senhas seguras e diferentes e a atenção para não manter apps e
contas logadas em outros dispositivos.
● Denuncie: Se você for vítima de qualquer
tipo de violência de gênero online, denuncie imediatamente à plataforma e
bloqueie o agressor. Também denuncie contas falsas que podem ser usadas para
spamming, phishing ou para se passar por outra pessoa. Denunciar uma conta
falsa ajuda as plataformas de mídia social a identificar e remover a ameaça,
protegendo outras usuárias de conteúdos potencialmente prejudiciais ou
enganosos.
● Além disso, se você for vítima ou conhecer
alguém que esteja sofrendo com algum desses tipos de violência, não deixe de
reportar o caso às autoridades competentes, registrando um boletim de
ocorrência na Delegacia da Mulher, em uma Delegacia especializada em Crimes
Cibernéticos (se houver na sua cidade) ou em uma Delegacia comum da Polícia
Militar.
Fonte: Por Ana BárbaraGomes Pereira, Luisa
Melo Meslouhi e Luiza Dutra, em The Intercept

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