A amiga de Anne Frank que sobreviveu ao
Holocausto
Um broche. Esse foi o singelo presente que
Nanette Blitz Konig, hoje com 96 anos, deu a Anne Frank (1929-1945) em 12 de
junho de 1942, em sua festa de 13 anos. As duas eram colegas de turma, tinham a
mesma idade – Nanette faz aniversário no dia 6 de abril – e se conheceram no
Liceu Judaico, em Amsterdã.
Além do broche, Anne ganhou jogos, livros,
chocolates e um quebra-cabeça. Mas o presente do qual ela mais gostou foi um
diário com capa de pano xadrez que ganhou do pai, Otto (1889-1980). Aliás,
gostou tanto que deu a ele o nome de Kitty, uma das protagonistas de Joop ter
Heul, uma série de cinco livros infantojuvenis escrita pela romancista
holandesa Setske de Haan sob o pseudônimo de Cissy van Marxveldt.
Depois de desembrulhar os presentes, Anne e
seus amigos assistiram a um filme do cachorro Rin Tin Tin e fizeram um lanche
rápido. A festa precisou terminar cedo. Desde o dia 10 de maio de 1940, quando
Hitler invadiu a Holanda, o país vivia sob toque de recolher. Às 20h, todos
tinham que estar em casa.
O dia 10 de maio de 1940 mudou a vida de
Nanette e de sua família para sempre. Antes disso, ela era uma garota holandesa
como outra qualquer de sua idade. Gostava de comer maçãs do vizinho, subir em
telhados e andar de bicicleta. "Era levada da breca", admite na
autobiografia que publicou em 2015, Eu Sobrevivi ao Holocausto. Nanette é filha
de pai holandês, Martijn, e de mãe sul-africana, Helene. E teve dois irmãos:
Willem, que morreu aos quatro anos de problemas no coração, e Bernard, dois anos
mais velho que ela.
Depois da invasão da Holanda por tropas
nazistas, sua vida nunca mais foi a mesma. Obrigada a ostentar uma estrela de
Davi amarela na roupa, Nanette não podia andar de ônibus, passear no parque ou
ir ao cinema. Muitos comerciantes tiveram que pendurar nas portas de suas lojas
placas com os dizeres: Proibido para judeus. "Lembro para viver porque
esquecer é morrer", resume Nanette na introdução de seu livro.
• "Deus
está conosco"
Numa manhã qualquer de setembro de 1943,
Nanette e sua família foram acordados por batidas violentas na porta. Eram
soldados nazistas, que os obrigaram a se vestir apressadamente e a levar alguns
poucos objetos pessoais. Os quatro foram colocados à força num bonde e levados
para a estação de trem de Amstel. Pouco depois, seguiram para o campo de
concentração de Westerbork, onde ficavam os judeus holandeses à espera de
deportação para os campos de extermínio. Lá, Nanette e Helene foram mandadas
para o alojamento feminino, e Martijn e Bernard para o masculino.
De dia, eles tomavam banho de ducha fria e
faziam suas necessidades em latrinas coletivas; à noite, dormiam em beliches
forrados com palha. Como o pai de Nanette trabalhava num banco, seus nomes
foram incluídos na "lista Palestina". Ou seja: a qualquer momento,
poderiam ser trocados por prisioneiros de guerra alemães. Nanette e sua família
permaneceram em Westerbork até fevereiro de 1944. No dia 15 daquele mês, foram
deportados para o campo de Bergen-Belsen, na Alemanha.
Os quatro foram escoltados de trem por
soldados nazistas de "olhar sombrio" e "aparência
carrancuda". Vestiam uniformes pretos, pesados coturnos e quepes
militares. No cinto deles, lia-se a inscrição: "Gott ist mit uns" ("Deus
está conosco"). "Que tipo de Deus seria esse?", pensou Nanette,
então com 14 anos. "Só se fosse um Deus maligno, como Hitler, que tanto se
empenhou em ensinar seus seguidores a servi-lo."
Em Bergen-Belsen, a família de Nanette, por
fazer parte da "lista Palestina", não teve os cabelos raspados, nem
números tatuados na pele. Mas comia da mesma comida (na maioria das vezes, a
refeição se resumia a uma sopa de nabos e a um pedaço de pão) e participava da
contagem no pátio, como todos os outros. Se um dos sentinelas perdesse as
contas, começava tudo de novo. E de novo, quantas vezes fossem necessárias, não
importando se fazia sol ou se chovia. Certa vez, no inverno, o frio era tão impiedoso
que um dos prisioneiros teve os pés congelados. "Não houve jeito: precisou
amputá-los", relata Nanette.
• Perda
da família
O que era ruim em Westerbork piorou em
Bergen-Belsen. Os prisioneiros, quando comiam, só comiam uma vez por dia. No
banheiro, não havia sabonete para tomar banho, nem toalha para secar o rosto.
As latrinas ficavam cada vez mais imundas, à medida que chegavam mais e mais
prisioneiros. Em dezembro de 1944, o campo chegou a ter 15 mil detentos. Quatro
meses depois, em abril de 1945, esse número já tinha subido para 60 mil. Em
condições desumanas, os presos pegavam piolho, tinham diarreia, contraíam tifo.
Além de judeus, havia comunistas, ciganos, homossexuais, testemunhas de Jeová e
deficientes físicos e mentais.
Em novembro de 1944, Nanette sofreu uma dura
perda: seu pai morreu de infarto. Com a sua morte, ela e sua família perderam
os poucos privilégios que tinham. Um mês depois, no dia 4, seu irmão foi levado
para Oranienburg, onde existia outro campo de concentração, e, no dia 5, sua
mãe foi transferida para Magdeburg, onde funcionava uma fábrica de componentes
para aviões. Nunca mais se viram.
Sozinha no mundo, Nanette reencontrou uma
velha amiga em janeiro de 1945: Anne Frank. Ela e a irmã, Margot (1926-1945),
tinham sido transferidas de Auschwitz, na Polônia, em outubro de 1944. Tinha os
cabelos raspados, estava enrolada em um cobertor (não aguentava mais os piolhos
em sua roupa) e tremia de frio. As duas se abraçaram e começaram a chorar.
"Éramos dois esqueletos", recorda.
"Vocês não tentaram fugir para a
Suíça?", perguntou Nanette, lembrando do tempo em que a amiga deixou de
frequentar o colégio, um mês depois do aniversário de 13 anos. "Não,
estávamos escondidos", respondeu Anne. E falou do período em que
permaneceu confinada nos fundos de um prédio de três andares, em um esconderijo
apelidado de anexo secreto, no número 263 da rua Prinsengracht. Descarga, só à
noite, para não levantar suspeitas. E banho, só aos sábados ou domingos. E,
mesmo assim, de caneca, em uma tina com água aquecida. Anne Frank morreu de
tifo, em março de 1945. Tinha 15 anos.
No dia 12 de abril de 1945, Bergen-Belsen foi
tomado por tropas inglesas. Os poucos soldados alemães que restavam tinham
fugido. "Vocês estão seguros agora. Comida e água chegarão logo.
Permaneçam em suas barracas!", gritou um oficial britânico no
alto-falante. Muitos prisioneiros, de tão desnutridos que estavam, morreram ao
comer mais do que seus corpos suportavam. Nanette, com 16 anos, pesava míseros
31 quilos.
• Sobrevivente
do Holocausto
Da Alemanha, a única sobrevivente da família
Blitz retornou à Holanda, onde passaria os próximos três anos em um sanatório
de Santpoort. Foi lá que, por intermédio de um amigo da família, confirmou que
tanto sua mãe quanto seu irmão estavam mortos. A mãe morreu a caminho da
Suécia, dentro de um trem de carga. A data oficial de sua morte é 10 de abril
de 1945. Já o irmão, suspeita Nanette, teria sido fuzilado por soldados
nazistas tão logo chegou a Oranienburg. Até hoje, não se sabe o que fizeram com
os corpos deles.
No sanatório de Santpoort, Nanette recebeu a
visita de Otto, o pai de Anne Frank. Ele disse que pretendia publicar o diário
da filha, guardado por Miep Gies (1909-2010) depois da prisão da família.
"Era triste Anne não estar viva para ver seu sonho realizado. Se tornou
uma escritora famosa como desejava", lamentou.
Da Holanda, Nanette se mudou para a
Inglaterra, onde foi morar na casa de uma tia materna em Londres. Era abril de
1949. Na capital inglesa, arranjou emprego de secretária num banco e conheceu
um rapaz de origem húngara chamado John Frederick Konig (1927-2022). Se Nanette
perdeu os pais para o nazismo, John perdeu os dele para o câncer: o pai morreu
de tumor no pulmão e a mãe, pouco tempo depois, de mama.
John e Nanette se casaram em julho de 1953 e,
em seguida, se mudaram para o Brasil. O casal teve três filhos: Elizabeth,
Judith e Martin. Hoje, Elizabeth, de 70 anos, mora nos EUA, e Judith, de 67, no
Canadá.
"Não há nada que se compare ao
Holocausto", afirma o empresário Martin Joseph, 62, que tem dois filhos e
vive em São Paulo com Nanette, que hoje sofre de Alzheimer. "Minha mãe
vive dizendo que as pessoas não aprenderam nada com a História. Inacreditável
ver pessoas que, 80 anos depois do fim da Segunda Guerra, se dizem 'nazistas'.
Pior: duvidam da veracidade do Holocausto. Essas pessoas não foram à escola?
Não estudaram o que aconteceu? Por isso é importante educar as novas gerações.
Não podemos deixar que aquilo tudo volte a acontecer de novo. Nunca mais!"
Nos anos 1980, Nanette se formou em Economia
na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e, a partir de 1999,
deu palestras sobre o Holocausto em escolas da rede pública. Em 2015, escreveu
suas memórias, Eu Sobrevivi ao Holocausto (Universo dos Livros), e foi tema do
documentário Vida Acima de Tudo, produzido pelo Instituto Plataforma Brasil
(IPB), representante da Casa Anne Frank no Brasil.
"Nanette tem compartilhado sua história
para conscientizar as novas gerações sobre os perigos do preconceito, da
intolerância e da discriminação. Sua impressionante trajetória de vida e sua
dedicação à memória histórica fazem dela uma referência no ensino sobre o
Holocausto", enaltece Joëlke Offringa, presidente do IPB. "O impacto
de suas palestras sempre foi extraordinário. Grandes plateias de jovens ficavam
em silêncio enquanto ela falava. Um silêncio tão profundo que, se uma agulha
caísse, seríamos capazes de ouvir. Era como se a própria Anne Frank estivesse
ali, presente."
Fonte: DW Brasil

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