As
milhares de crianças da Coreia do Sul separadas das famílias à força e enviadas
ao exterior para adoção
"Você
tem um novo irmão, não é verdade? Sua mãe diz que não precisa mais de você
porque, agora, ela tem um bebê. Por isso, venha comigo."
Estas
foram as palavras que a pequena Kyung-ha ouviu de uma mulher enquanto brincava
em frente à sua casa, na Coreia do Sul, quando tinha seis anos de idade.
Kyung-ha
seguiu a mulher até um trem e adormeceu. Quando acordou, havia chegado à última
estação. A mulher havia desaparecido.
Perdida
e confusa, Kyung-ha foi uma delegacia próxima e pediu ajuda para encontrar sua
mãe. Em vez disso, ela foi encaminhada para um orfanato na cidade de Jecheon.
E, cerca de sete meses depois, ela foi adotada por uma família da Virgínia, nos
Estados Unidos.
Foi
assim que Shin Kyung-ha foi separada da família em 1975. Ela desapareceu da sua
casa na cidade de Cheongju, na província sul-coreana de Chungcheongbuk-do.
Sua
mãe, Han Tae-soon, tem agora 73 anos de idade. Ela nunca conseguiu dormir em
paz depois do desaparecimento da filha.
Han
visitava delegacias diariamente e chegou a viajar por três horas de ida e mais
três de volta, para distribuir folhetos e participar de programas de rádio e
televisão.
Han
Tae-soon fez todo o possível para encontrar sua filha.
Depois
de 44 anos de busca, Han finalmente encontrou sua filha em 2019, morando nos
Estados Unidos. Isso foi possível graças a testes de DNA e ao apoio da
organização 325Kamra, dedicada a conectar pessoas adotadas e suas famílias
biológicas.
Mas o
reencontro não foi totalmente feliz.
"Por
que você roubaria a filha de outra pessoa e a enviaria para os Estados
Unidos?", perguntou Han à BBC News Coreia.
"Minha
filha acreditava que tivesse sido abandonada, sem saber que sua mãe a procurava
por toda a vida. Minha saúde está destruída por tê-la buscado por 44 anos, mas
quem me pediu desculpas por estes anos? Ninguém."
Quatro
décadas se passaram desde o desaparecimento da filha até que Han Tae-soon ficou
sabendo da verdade sobre a adoção.
• O envio de crianças para o exterior
Han não
está sozinha nesta história.
Um
relatório publicado há poucos dias por uma entidade independente chamada
Comissão da Verdade e Reconciliação da Coreia do Sul revelou que muitas
crianças enviadas para adoção em países como os Estados Unidos, Suécia e
Dinamarca, entre as décadas de 1960 e 1990, sofreram violações de direitos
humanos no processo.
O
relatório divulgou que suas identidades originais e informações familiares
foram distorcidas ou falsificadas e que não foram tomadas medidas de proteção
adequadas após o seu envio para o exterior.
A
comissão examinou os registros de adoção de 367 crianças adotadas em 11 países
e reconheceu 56 pessoas adotadas como vítimas de violações de direitos humanos.
"Muitas
famílias perderam seus filhos devido às adoções ilegais na Coreia do Sul e no
exterior", afirma Cho Min-ho, representante da Coalizão pelos Direitos da
Criança, que ajuda as pessoas adotadas no exterior a encontrar suas raízes.
Cho já
assessorou mais de 100 famílias atingidas por esta questão.
• De 'desaparecidos' para 'órfãos'
Kim
Do-hyun é diretor da Root House, um refúgio para pessoas adotadas no exterior.
Ele qualifica este caso de "desaparecimento forçado" e responsabiliza
o governo sul-coreano pelo ocorrido.
"Os
pais não perderam seus filhos", declarou ele à BBC. "Seus filhos
desapareceram de maneira forçada. Tanto as crianças quanto os pais são
vítimas."
Kim
afirma que, durante as décadas de 1970 e 1980, o governo sul-coreano criou
órfãos para satisfazer a demanda de adoções internacionais.
Segundo
o diretor da Root House, as crianças eram vendidas como mercadorias na
indústria de adoção. E os pais carregavam para o resto da vida a culpa por
terem perdido seus filhos.
A
doutora em Direito Internacional pela Universidade Nacional de Seul, na Coreia
do Sul, Lee Kyung-eun, destaca que "até a implementação da Lei de Adoção
Especial, em 2012, o número de registros de órfãos emitidos para crianças
abandonadas era claramente similar à quantidade de crianças adotadas
internacionalmente".
"Isso
levanta questões sobre a adoção internacional – se ela realmente foi um
processo para encontrar lares para as crianças órfãs que precisavam de
famílias, ou se foi a forma encontrada para criar órfãos com fins de adoção
internacional", segundo ela.
O
registro de órfãos define a criação de uma identidade para uma criança
abandonada. Ela recebe um sobrenome e origens familiares, sem nenhuma
informação sobre seus pais.
Noh
Hye-ryeon é professor honorário da Universidade Soongsil, em Seul, e ex-membro
da maior agência de adoção da Coreia do Sul, a Holt Children's Services.
Ele
especula que "as crianças foram falsamente declaradas órfãs para facilitar
o processo de adoção porque, naquele momento, era difícil enviar crianças com
pais [vivos] para adoção".
Mas o
ex-presidente da agência Holt na década de 1970, Boo Cheong-ha, nega ter criado
órfãos ilegalmente para adoção internacional.
"Na
década de 1970, 90% das crianças eram abandonadas e as crianças que tinham pais
não eram enviadas para adoção internacional", afirma ele.
• 170 mil crianças afetadas
As
adoções internacionais na Coreia do Sul começaram na década de 1950, com o
pretexto de resgatar os órfãos da Guerra da Coreia (1950-1953) e os filhos dos
soldados estrangeiros com mulheres coreanas.
Com o
rápido crescimento econômico da Coreia do Sul, o número de crianças enviadas
para adoção no exterior atingiu seu ponto máximo na década de 1980.
Apenas
em 1985, mais de 8,8 mil crianças foram adotadas internacionalmente. Este
número representa cerca de 13 a cada 1 mil recém-nascidos.
As
estatísticas indicam que, desde a década de 1950, a Coreia do Sul é o país que
mais enviou crianças para adoção no exterior. São pelo menos 170 mil crianças
adotadas fora do país até 2022.
Um
relatório da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Coreia do Sul publicado
este ano indicou que "mais de 60% dos pais adotivos receberam informações
incorretas sobre o significado e o impacto da adoção".
Em
nenhum momento, estes pais deram seu consentimento para a adoção. Eles não
abandonaram seus filhos.
• Acordo com o Estado
Depois
da Guerra da Coreia, a Coreia do Sul era um dos países mais pobres do mundo.
Poucas famílias estavam dispostas a adotar crianças.
Por
isso, o governo sul-coreano iniciou um programa de adoção internacional,
gerenciado por empresas privadas. Elas receberam amplos poderes, concedidos por
leis especiais de adoção.
Mas o
relatório indica que existia uma "falha sistêmica na supervisão e
gestão", que gerou inúmeras omissões por parte das agências.
O
relatório destaca que as agências estrangeiras exigiam uma quantidade
determinada de crianças todos os meses. As agências sul-coreanas cumpriam as
exigências, "oferecendo adoções internacionais em grande escala, com
mínima supervisão do processo".
Na
falta de regulamentações governamentais sobre as tarifas, as agências
sul-coreanas cobravam grandes valores e exigiam "doações". Com isso,
elas transformaram as adoções em uma "indústria com finalidades
lucrativas".
Além
disso, outras omissões incluem adoções realizadas sem o devido consentimento
das mães biológicas e avaliação inadequada dos pais adotivos.
• Identidades falsas
As
agências também criaram relatórios que apresentavam as crianças como se
tivessem sido abandonadas e colocadas para adoção. Elas ofereciam
intencionalmente identidades falsas para aquelas crianças.
Como
muitas crianças adotadas tinham identidades falsas na sua documentação, existe
agora dificuldade para obter informações sobre suas famílias biológicas. E o
relatório destaca que elas não contam com proteção jurídica adequada.
A
comissão recomendou ao Estado que apresente um pedido oficial de desculpas e
atenda às normas internacionais sobre a adoção de crianças no exterior.
A
pesquisadora de adoções internacionais e estudos da mulher da Universidade
Seokyeong, em Seul, Shin Pil-sik, afirma que o Estado criou os procedimentos
institucionais para adoções internacionais, mas os governos da época permitiram
que as agências de adoção conduzissem o processo.
Shin
afirma que esta situação gerou uma prolongada "relação de
culpabilização" entre ambos.
"O
governo era o capitão do barco e as agências de adoção remavam", resume
ela.
Shin
explica que o governo da época interveio nas políticas de adoção internacional,
estabelecendo quotas sobre o número de crianças que podiam ser adotadas
anualmente no exterior ou suspendendo por completo a adoção em certos países.
Mas
esta participação nas políticas não foi acompanhada pela supervisão e gestão
das práticas ilegais das agências particulares, que eram as que gerenciavam o
processo de adoção.
O
Ministério da Saúde e Bem-Estar sul-coreano respondeu à BBC sobre os problemas
do passado, em relação às adoções internacionais e à responsabilidade do Estado
sobre o ocorrido.
"Reconhecemos
profundamente o contexto histórico e social em que foram realizadas as adoções
internacionais e continuamos nos esforçando para fortalecer a responsabilidade
do Estado em termos de adoção", declarou o Ministério.
• As crianças como exportação
A
Coreia do Sul ainda é o único país da Organização para a Cooperação e o
Desenvolvimento Econômico (OCDE) que continua enviando crianças para adoção
internacional.
Em
2022, o país foi o terceiro maior "exportador" de crianças do
planeta.
Dados
compilados pelo pesquisador Peter Selman indicam que, embora muitos países
tenham interrompido as adoções internacionais devido à guerra na Ucrânia, a
Coreia do Sul foi o terceiro país a enviar mais crianças para o exterior
naquele ano, atrás da Colômbia e da Índia.
Han
Tae-soon encontrou sua filha desaparecida depois de 44 anos. Em 2024, ela
entrou na Justiça contra o Estado sul-coreano. O processo trouxe a público,
pela primeira vez, o problema da adoção ilegal de crianças desaparecidas.
O
Ministério da Saúde e do Bem-Estar do país respondeu que se solidariza
"profundamente com as pessoas que foram separadas de suas famílias por
tanto tempo e estamos profundamente consternados com a sua situação".
Muitas
das pessoas adotadas ainda estão vivas. A maioria delas está na meia-idade.
"Muitos
dos pais que se viram obrigados a dar seus filhos em adoção ainda não se
encontraram com elas", afirma Han Bun-young, uma das pessoas adotadas.
"Para
estes pais, esta pode ser a sua última oportunidade. Se não o fizerem agora,
poderá ser tarde demais."
Fonte:
BBC News Coreia
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