sexta-feira, 11 de abril de 2025

As milhares de crianças da Coreia do Sul separadas das famílias à força e enviadas ao exterior para adoção

"Você tem um novo irmão, não é verdade? Sua mãe diz que não precisa mais de você porque, agora, ela tem um bebê. Por isso, venha comigo."

Estas foram as palavras que a pequena Kyung-ha ouviu de uma mulher enquanto brincava em frente à sua casa, na Coreia do Sul, quando tinha seis anos de idade.

Kyung-ha seguiu a mulher até um trem e adormeceu. Quando acordou, havia chegado à última estação. A mulher havia desaparecido.

Perdida e confusa, Kyung-ha foi uma delegacia próxima e pediu ajuda para encontrar sua mãe. Em vez disso, ela foi encaminhada para um orfanato na cidade de Jecheon. E, cerca de sete meses depois, ela foi adotada por uma família da Virgínia, nos Estados Unidos.

Foi assim que Shin Kyung-ha foi separada da família em 1975. Ela desapareceu da sua casa na cidade de Cheongju, na província sul-coreana de Chungcheongbuk-do.

Sua mãe, Han Tae-soon, tem agora 73 anos de idade. Ela nunca conseguiu dormir em paz depois do desaparecimento da filha.

Han visitava delegacias diariamente e chegou a viajar por três horas de ida e mais três de volta, para distribuir folhetos e participar de programas de rádio e televisão.

Han Tae-soon fez todo o possível para encontrar sua filha.

Depois de 44 anos de busca, Han finalmente encontrou sua filha em 2019, morando nos Estados Unidos. Isso foi possível graças a testes de DNA e ao apoio da organização 325Kamra, dedicada a conectar pessoas adotadas e suas famílias biológicas.

Mas o reencontro não foi totalmente feliz.

"Por que você roubaria a filha de outra pessoa e a enviaria para os Estados Unidos?", perguntou Han à BBC News Coreia.

"Minha filha acreditava que tivesse sido abandonada, sem saber que sua mãe a procurava por toda a vida. Minha saúde está destruída por tê-la buscado por 44 anos, mas quem me pediu desculpas por estes anos? Ninguém."

Quatro décadas se passaram desde o desaparecimento da filha até que Han Tae-soon ficou sabendo da verdade sobre a adoção.

•        O envio de crianças para o exterior

Han não está sozinha nesta história.

Um relatório publicado há poucos dias por uma entidade independente chamada Comissão da Verdade e Reconciliação da Coreia do Sul revelou que muitas crianças enviadas para adoção em países como os Estados Unidos, Suécia e Dinamarca, entre as décadas de 1960 e 1990, sofreram violações de direitos humanos no processo.

O relatório divulgou que suas identidades originais e informações familiares foram distorcidas ou falsificadas e que não foram tomadas medidas de proteção adequadas após o seu envio para o exterior.

A comissão examinou os registros de adoção de 367 crianças adotadas em 11 países e reconheceu 56 pessoas adotadas como vítimas de violações de direitos humanos.

"Muitas famílias perderam seus filhos devido às adoções ilegais na Coreia do Sul e no exterior", afirma Cho Min-ho, representante da Coalizão pelos Direitos da Criança, que ajuda as pessoas adotadas no exterior a encontrar suas raízes.

Cho já assessorou mais de 100 famílias atingidas por esta questão.

•        De 'desaparecidos' para 'órfãos'

Kim Do-hyun é diretor da Root House, um refúgio para pessoas adotadas no exterior. Ele qualifica este caso de "desaparecimento forçado" e responsabiliza o governo sul-coreano pelo ocorrido.

"Os pais não perderam seus filhos", declarou ele à BBC. "Seus filhos desapareceram de maneira forçada. Tanto as crianças quanto os pais são vítimas."

Kim afirma que, durante as décadas de 1970 e 1980, o governo sul-coreano criou órfãos para satisfazer a demanda de adoções internacionais.

Segundo o diretor da Root House, as crianças eram vendidas como mercadorias na indústria de adoção. E os pais carregavam para o resto da vida a culpa por terem perdido seus filhos.

A doutora em Direito Internacional pela Universidade Nacional de Seul, na Coreia do Sul, Lee Kyung-eun, destaca que "até a implementação da Lei de Adoção Especial, em 2012, o número de registros de órfãos emitidos para crianças abandonadas era claramente similar à quantidade de crianças adotadas internacionalmente".

"Isso levanta questões sobre a adoção internacional – se ela realmente foi um processo para encontrar lares para as crianças órfãs que precisavam de famílias, ou se foi a forma encontrada para criar órfãos com fins de adoção internacional", segundo ela.

O registro de órfãos define a criação de uma identidade para uma criança abandonada. Ela recebe um sobrenome e origens familiares, sem nenhuma informação sobre seus pais.

Noh Hye-ryeon é professor honorário da Universidade Soongsil, em Seul, e ex-membro da maior agência de adoção da Coreia do Sul, a Holt Children's Services.

Ele especula que "as crianças foram falsamente declaradas órfãs para facilitar o processo de adoção porque, naquele momento, era difícil enviar crianças com pais [vivos] para adoção".

Mas o ex-presidente da agência Holt na década de 1970, Boo Cheong-ha, nega ter criado órfãos ilegalmente para adoção internacional.

"Na década de 1970, 90% das crianças eram abandonadas e as crianças que tinham pais não eram enviadas para adoção internacional", afirma ele.

•        170 mil crianças afetadas

As adoções internacionais na Coreia do Sul começaram na década de 1950, com o pretexto de resgatar os órfãos da Guerra da Coreia (1950-1953) e os filhos dos soldados estrangeiros com mulheres coreanas.

Com o rápido crescimento econômico da Coreia do Sul, o número de crianças enviadas para adoção no exterior atingiu seu ponto máximo na década de 1980.

Apenas em 1985, mais de 8,8 mil crianças foram adotadas internacionalmente. Este número representa cerca de 13 a cada 1 mil recém-nascidos.

As estatísticas indicam que, desde a década de 1950, a Coreia do Sul é o país que mais enviou crianças para adoção no exterior. São pelo menos 170 mil crianças adotadas fora do país até 2022.

Um relatório da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Coreia do Sul publicado este ano indicou que "mais de 60% dos pais adotivos receberam informações incorretas sobre o significado e o impacto da adoção".

Em nenhum momento, estes pais deram seu consentimento para a adoção. Eles não abandonaram seus filhos.

•        Acordo com o Estado

Depois da Guerra da Coreia, a Coreia do Sul era um dos países mais pobres do mundo. Poucas famílias estavam dispostas a adotar crianças.

Por isso, o governo sul-coreano iniciou um programa de adoção internacional, gerenciado por empresas privadas. Elas receberam amplos poderes, concedidos por leis especiais de adoção.

Mas o relatório indica que existia uma "falha sistêmica na supervisão e gestão", que gerou inúmeras omissões por parte das agências.

O relatório destaca que as agências estrangeiras exigiam uma quantidade determinada de crianças todos os meses. As agências sul-coreanas cumpriam as exigências, "oferecendo adoções internacionais em grande escala, com mínima supervisão do processo".

Na falta de regulamentações governamentais sobre as tarifas, as agências sul-coreanas cobravam grandes valores e exigiam "doações". Com isso, elas transformaram as adoções em uma "indústria com finalidades lucrativas".

Além disso, outras omissões incluem adoções realizadas sem o devido consentimento das mães biológicas e avaliação inadequada dos pais adotivos.

•        Identidades falsas

As agências também criaram relatórios que apresentavam as crianças como se tivessem sido abandonadas e colocadas para adoção. Elas ofereciam intencionalmente identidades falsas para aquelas crianças.

Como muitas crianças adotadas tinham identidades falsas na sua documentação, existe agora dificuldade para obter informações sobre suas famílias biológicas. E o relatório destaca que elas não contam com proteção jurídica adequada.

A comissão recomendou ao Estado que apresente um pedido oficial de desculpas e atenda às normas internacionais sobre a adoção de crianças no exterior.

A pesquisadora de adoções internacionais e estudos da mulher da Universidade Seokyeong, em Seul, Shin Pil-sik, afirma que o Estado criou os procedimentos institucionais para adoções internacionais, mas os governos da época permitiram que as agências de adoção conduzissem o processo.

Shin afirma que esta situação gerou uma prolongada "relação de culpabilização" entre ambos.

"O governo era o capitão do barco e as agências de adoção remavam", resume ela.

Shin explica que o governo da época interveio nas políticas de adoção internacional, estabelecendo quotas sobre o número de crianças que podiam ser adotadas anualmente no exterior ou suspendendo por completo a adoção em certos países.

Mas esta participação nas políticas não foi acompanhada pela supervisão e gestão das práticas ilegais das agências particulares, que eram as que gerenciavam o processo de adoção.

O Ministério da Saúde e Bem-Estar sul-coreano respondeu à BBC sobre os problemas do passado, em relação às adoções internacionais e à responsabilidade do Estado sobre o ocorrido.

"Reconhecemos profundamente o contexto histórico e social em que foram realizadas as adoções internacionais e continuamos nos esforçando para fortalecer a responsabilidade do Estado em termos de adoção", declarou o Ministério.

•        As crianças como exportação

A Coreia do Sul ainda é o único país da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) que continua enviando crianças para adoção internacional.

Em 2022, o país foi o terceiro maior "exportador" de crianças do planeta.

Dados compilados pelo pesquisador Peter Selman indicam que, embora muitos países tenham interrompido as adoções internacionais devido à guerra na Ucrânia, a Coreia do Sul foi o terceiro país a enviar mais crianças para o exterior naquele ano, atrás da Colômbia e da Índia.

Han Tae-soon encontrou sua filha desaparecida depois de 44 anos. Em 2024, ela entrou na Justiça contra o Estado sul-coreano. O processo trouxe a público, pela primeira vez, o problema da adoção ilegal de crianças desaparecidas.

O Ministério da Saúde e do Bem-Estar do país respondeu que se solidariza "profundamente com as pessoas que foram separadas de suas famílias por tanto tempo e estamos profundamente consternados com a sua situação".

Muitas das pessoas adotadas ainda estão vivas. A maioria delas está na meia-idade.

"Muitos dos pais que se viram obrigados a dar seus filhos em adoção ainda não se encontraram com elas", afirma Han Bun-young, uma das pessoas adotadas.

"Para estes pais, esta pode ser a sua última oportunidade. Se não o fizerem agora, poderá ser tarde demais."

 

Fonte: BBC News Coreia

 

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